UM PÁRA-QUEDISTA OBSERVADOR MILITAR
Por Miguel Machado • 14 Jun , 2018 • Categoria: 13. MEMÓRIA DAS MISSÕES DE PAZ PrintA partir de 1992 o Corpo de Tropas Pára-quedistas da Força Aérea Portuguesa enviou para a ex-Jugoslávia vários oficiais e um sargento como Observadores para integrar duas missões de organizações internacionais: a European Community Monitoring Mission (ECMM) e a United Nations Protection Force (UNPROFOR) (*). Foram os primeiros pára-quedistas portugueses a participar em missões de paz integrados em organizações internacionais, e este relato sobre a guerra é de um desses pioneiros, o Tenente-coronel na situação de reforma, António Malva Antunes que foi United Nations Military Observer .
Em Janeiro ou Fevereiro de 1992, estava colocado na BOTP2 em S. Jacinto, o então Comandante, Coronel Terras Marques, mandou reunir na Sala de Operações da Unidade todos os Capitães presentes na Unidade. No decorrer da mesma fez uma breve exposição sobre a evolução recente da situação na ex-Jugoslávia e questionou quem seria voluntário para uma missão naquele conflito porque se previa o envio de Oficiais da patente de Capitão para aquele teatro de operações embora a data e as condições não fossem conhecidas. Ofereceram-se voluntários os Capitães: Cordeiro Simões, Dias Martins, José Mendes e Malva Antunes.
Entretanto eu tinha terminado no ano anterior a minha formação na Universidade de Coimbra e ponderava iniciar um Mestrado na minha área de interesse mas ao mesmo tempo sentia que devia avançar mais um passo na minha formação areo-terrestre e decidi candidatar-me ao curso de SOGAS. Em Julho estava no Hospital da Força Aérea a completar o estágio de Fisiologia de Vôo com os restantes camaradas de curso quando, no final de vários quilómetros de corrida com dois daqueles camaradas e de algumas peripécias algo anedóticas, sou chamado à central telefónica para receber uma chamada urgente de S. Jacinto: o Comandante informou-me que teria que estar no dia seguinte no EMGFA para ser “brifado” na repartição de Informações e logo de seguida receber ordem de marcha para a ex-Jugoslávia.
Abriu-se um capítulo diferente na minha vida profissional, familiar e pessoal que haveria de deixar uma marca indelével. Ao chegar à Bósnia fui colocado em Sarajevo do lado Muçulmano ( Papa Side ) e na primeira missão haveria de conhecer um camarada Brasileiro, o Major Pára-Quedista Luís Ramos Pereira – hoje General de quatro estrelas ainda no Activo – e com quem viveria alguns momentos dramáticos e outros verdadeiramente hilariantes não só em Sarajevo mas mais tarde na península de Prevlaka.
Em meados de Setembro de 1992 fiz parte de uma equipa de quatro UNMOS (Observadores Militares das Nações Unidas) que foi discutir com o comandante do Corpo da Kraijna do Exército Sérvio a possibilidade de colocar Observadores junto do seu QG dada a dimensão da tragédia humanitária na zona de Jajce, Travnik, Novi Travnik e Mrkonic´ Grad em resultado da ofensiva sérvia sobre Jajce, que haveria de cair passadas poucas semanas. No decorrer da viagem, o comandante dos Observadores do Sector de Sarajevo, Cor. Cutler do Exército Neo-Zelandês, perguntou-me se não estava interessado em fazer parte da equipa que organizava e conduzia as missões de reparação de águas, electricidade e telefones entra as linhas da frente sérvia e croato-muçulmana. Explicou-me que risco era muito grande pela natureza da missão e pela imprevisibilidade da presença de minas e armadilhas e a certeza de sermos alvo de tiro directo não poucas vezes.
Foi um desafio tremendo mas que me permitiu ter um conhecimento bastante detalhado da situação militar e humanitária em Sarajevo naquele período mas foi também aquele em que pude perceber aquilo que vários dos meus instrutores me haviam dito acerca das suas experiências na guerra em África: a guerra traz ao de cima aquilo que há de melhor e de pior em cada ser humano.
Em 3 de Fevereiro de 1993, dia de aniversário da minha mãe, tivemos a alvorada às 5 da manhã para dar início a mais uma missão de reparação. Depois de umas bolachas e um pouco de chá embarquei com um camarada fuzileiro francês, o Capitão Patrick Queron, em três viaturas BTR-60 ucranianas e duas carrinhas com material de construção e trabalhadores da Companhia das Águas em direcção a Mojmilo, um monte na zona de Dobrinja (parte ocidental de Sarajevo) onde se localizava um grande depósito de filtragem, tratamento e armazenagem responsável por grande parte da área mais ocidental. Ali a questão era que as fontes estavam do lado sérvio, o tratamento era feito do lado muçulmano e sé depois redistribuído pela rede para ambos os lados pelo que ambos tinham interesse naquela missão de reparação.
O dia amanhecia com uma temperatura muito baixa, cerca de 15 graus Celsius negativos e a subida para Mojmilo iniciava-se junto a um dos prédios cujo acesso estava protegido de fogo de “sniper” por painéis metálicos colocados em cima de semi-reboques meio destruídos. Queron e eu íamos junto do Tenente ucraniano que comandava a escolta e vimos aproximar uma idosa que caminhava com dificuldade em cima do gelo, envergando um pesado casaco e protegendo-se do frio com um lenço sobre a cabeça. De repente, sem que ninguém pudesse fazer nada para o prevenir, ouviu-se um tiro isolado de uma arma de sniper (possivelmente uma “zastava”, cópia local da russa Dragunov ) e a senhora caiu imediatamente por terra com o sangue a jorrar da têmpora esquerda. Queron e eu saltámos fora da viatura e arrastámos a senhora para um local mais abrigado, alguns metros ao lado, enquanto um enfermeiro da escolta tentava fazer alguma coisa para a salvar mas em poucos segundos a senhora morreu. Um segundo disparo da mesma arma vindo da mesma direcção fez despertar uma raiva imensa em todos nós e o Oficial ucraniano dirigiu para o local estimado da origem do fogo a peça de 20 mm da torre da BTR 60 até quase esgotar a primeira fita de munições. Entretanto, pedimos silêncio rádio à rede operacional para que nos fosse dada prioridade em caso de necessidade de mais alguma ocorrência que pudesse afectar qualquer dos membros da equipa e passados talvez uns quinze minutos recebemos a ordem de nos apresentarmos no final da missão no gabinete do Comandante do Sector de Sarajevo, Coronel Valentim, um Pára-Quedista francês por quem eu tinha uma particular estima, para discutirmos os pormenores do incidente. A missão decorreu conforme o planeamento e no final do dia fomos informados pelo Coronel Valentim que o atirador tinha sido localizado e que se presumia morto pelo fogo da peça da BTR dados os ferimentos que apresentava. Mentiria se dissesse que senti qualquer pena.
A missão na Bósnia iria ter um outro capítulo cheio de experiências únicas quando, em Março de 1993, o Coronel Valentin me chama ao gabinete conjuntamente com o comandante dos Observadores em Sarajevo, Tcor O’Keefe do Exército irlandês, para me informar que me iria atribuir a missão de comandar a primeira missão dos Observadores no Monte Igman.
Para além do interesse que havia em conhecer as actividades de treino do Exército bósnio que ali tinha um campo de instrução, aquela era zona de passagem para a bolsa de Gorazde, cercada pelos sérvios e cujo impacto em todas as operações conduzidas de ambos os lados – e também pelos Croatas – na zona da Herzegovina era inegável.
Rapidamente nos apercebemos do interesse sérvio pela nossa missão mas centrámos a nossa atenção principalmente no que se passava do lado bósnio já que os campos de prisioneiros sérvios e croatas em Silos e Krupa estavam no centro das preocupações da UNPROFOR e da Cruz Vermelha. Sabia-se que ali estariam cerca de quinhentos prisioneiros, maioritariamente sérvios e uns quantos croatas – o conflito entre muçulmanos e craotas na Bósnia Central e na Herzegovina estava no auge – mas nada se sabia da sua identidade ou das condições em que se encontravam.
Numa reunião com as autoridades militares muçulmanas em Tarcin em que estivemos presentes com o meu adjunto, Major Ramos Pereira (Pára-Quedista brasileiro anteriormente mencionado), fomos informados das dificuldades destes em obter medicamentos para os hospitais de Tarcin e Hrasnica. Depois de um contacto expedito com o gabinete do Cor. Valentin assegurámos um camião de medicamentos para cada um dos hospitais em troca de livre acesso aos campos de prisioneiros de Silos e Krupa. O tema era ‘explosivo’ e já tinha dado origem a fortes demonstrações por parte de civis sérvios pela inexistência de informações fidedignas quanto à real situação dos prisioneiros pelo que esta possibilidade interessava de sobremaneira à UNPROFOR e à Cruz Vermelha Internacional.
No dia seguinte, juntamente com o Major Ramos Pereira e Major Hansen (Dinamarca) entrámos primeiro em Silos e depois em Krupa acompanhados pela figura sinistra do comandante, um fulano de grande envergadura física, vestido com um casaco de cabedal até aos tornozelos e armado com dois revólveres de punhos de pérola, que julgava intimidar-nos com um aperto de mão com que tentava medir a nossa ‘força de braço’. Teve azar neste particular e logo ali foi informado que não tínhamos tempo a perder pelo que o acesso aos prisioneiros era imediato e sem restrições, conforme ordens que tinha recebido do seu comando. Poucos minutos depois entrávamos no local onde estavam os prisioneiros e os relatos e as condições levariam muitas páginas a descrever. Abreviando, falámos com todos os prisioneiros, mulheres incluídas, recolhemos os seus relatos sob a forma de relatórios preliminares e depois relatórios mais circunstanciados conforme a nossa avaliação quanto ao grau de relevância para memória futura, recolhemos a lista dos nomes que foi de imediato entregue à Cruz Vermelha (CV) e enviada para o Conselho de Segurança em Nova Iorque, os campos passaram a ser visitados pela CV e os hospitais receberam os medicamentos solicitados. EM 1996 haveria de encontrar no Hotel Fontana, em Bratunac dois desses prisioneiros – um homem e uma mulher, a Sra Pandurevic – sendo que só os reconheci pelo olhar e porque foram eles a reconhecer-me primeiro. Soubemos mais tarde que os nossos relatórios haveriam de servir de mais tarde de elemento de prova no Tribunal Internacional de Haia em que esse comandante do campo foi julgado por crimes de guerra.
Muitas outras missões se seguiriam até que em Janeiro de 2001 fui para Timor Leste como Oficial de Operações do Sector Central naquela que seria a minha última missão enquanto militar e Pára-Quedista. No regresso decidi que tinha tido muita sorte em ter feito na minha carreira tudo aquilo que sempre gostaria de ter feito – comando de tropa essencialmente, precursor, professor no Instituto de Altos Estudos Militares e Oficial de Operações num sector de Timor onde residiam mais de trezentas mil almas – e por isso estava na hora de me retirar e cumprir outros objectivos.
Aprendi muito ao longo de todos aqueles anos no Páras porque ao tempo aquela era uma verdadeira escola de virtudes militares. Aprendi com os meus comandantes mas principalmente com os Sargentos e Praças que comigo serviram e em jeito de balanço posso dizer que só não beneficiei mais desses ensinamentos por culpa própria porque tive neles exemplos magníficos de amor à Pátria e espírito de servir para além do dever.
(*) Dos 42 Observadores Militares que Portugal enviou para a UNPROFOR entre 1992 e 1995, 14 eram oriundos do Corpo de Tropas Pára-quedistas da Força Aérea Portuguesa e destes, 6 eram oficiais do Serviço-Geral Pára-quedista, então um dos quadros técnicos da Força Aérea Portuguesa.
Sobre esta temática leia também no Operacional: A GUERRA NA ANTIGA JUGOSLÁVIA VIVIDA NA PRIMEIRA PESSOA
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