TROPAS A CAVALO, ANGOLA (1967-74) & MOÇAMBIQUE (1972-74)
Por Miguel Machado • 21 Mar , 2013 • Categoria: 05. PORTUGAL EM GUERRA - SÉCULO XX PrintO que foi a realidade da criação e desenvolvimento das unidades “a cavalo” no decurso da Guerra do Ultramar, constituiu uma excelente oportunidade para falar de “Adaptação em tempo de guerra”, numa “workshop” onde protagonistas desta “cavalaria a cavalo” do século XX a recordaram com entusiasmo e detalhe.
Nem todos pensam que o passado só interessa aos saudosistas e que as memórias individuais de ontem não podem ajudar os que amanhã terão altas responsabilidades. Nas Forças Armadas, em Portugal e no estrangeiro, sabe-se bem que o estudo das campanhas passadas é muito importante para preparar as que se avizinham. Esquecer isto, como infelizmente também acontece muitas vezes, mesmo na instituição militar, leva não raras vezes à perda desnecessária de tempo e recursos.
Depois do que vimos e ouvimos e do que todos os dias vemos em Portugal, não tenho dúvidas que naquelas cadeiras do auditório da Academia Militar, deviam estar mais pessoas sentadas que não só cadetes, militares dos quadros permanentes e sócios da Revista da Cavalaria.
Esta feliz iniciativa da Revista, na sequência de sugestão do Superintendente-Chefe Furtado Dias ao Professor António Telo, acolhida pela Academia Militar, permitiu dar a conhecer aos cadetes da cadeira de Táctica Geral e Operações Militares II (2.º ano), o que foram as tropas a cavalo em Angola (1967-74) e Moçambique (1972-74). Ao mesmo tempo – atrevo-me até a dizer, tão importante ou mais – este episódio singular do esforço de guerra português em África nas últimas campanhas do Império, foi previamente enquadrado naquilo que é o processo de adaptação em tempo de guerra.
Enquadramento
Na abertura o comandante da Academia Militar, Major-General Dias Coimbra, usou da palavra para referir a actualidade do tema (adaptação/mudança), e que o caso de estudo em apreço foi uma solução criativa para um problema militar que então o Exército enfrentava, e lembrou que o rever da história é sempre uma fonte de inspiração para a procura de soluções actuais.
Seguiu-se o Tenente-Coronel de Cavalaria Miguel Freire, director da Revista de Cavalaria e professor na Academia Militar, o qual fez um enquadramento do tema, tendo suportado afirmações doutrinárias de vários autores com exemplos práticos, alguns bem perto do nosso dia-a-dia, ilustrando de forma clara e sintética porque mudam e como mudam os Exércitos (Forças Armadas). Em tempo de guerra para vencer, em tempo de paz para alcançar outros objectivos, quase e sempre por imposição politica. E daí “desceu” para o caso das tropas a cavalo, referindo-se genericamente ao modo como esta modalidade de fazer a guerra anti-subversiva nasceu, como se desenvolveu. Características que o levaram a concluir que se trata de um “caso de estudo” de uma mudança/inovação que nasceu de “baixo para cima”, foi apoiada – embora com limitações várias como se veria no seguimento pelas declarações dos protagonistas – e teve resultados. O caminho seguido desde que o Capitão de Cavalaria Ferrand D’Almeida escreveu um artigo na Revista da Cavalaria em 1963, sugerindo o uso deste tipo de tropas na guerra de contra-guerrilha, até que isso se veio a concretizar e depois o seu desenvolvimento em Angola e replicação em Moçambique, foi um percurso que o TCor Freire nos mostrou em “fita de tempo”, mas que a seguir iríamos acompanhar pela voz de alguns dos principais protagonistas.
Os protagonistas
O Tenente-General Sousa Pinto, presidente da Comissão Portuguesa de História Militar, oficial de cavalaria com várias comissões no antigo Ultramar e contemporâneo de alguns dos oficiais envolvidos directamente no processo de criação destas unidades, fez a apresentação genérica do tema em relação às campanhas de África e dos palestrantes.
O primeiro orador, Coronel de Cavalaria (Reforma) Neves Veloso, então Alferes recém-chegado da metrópole a Silva Porto (actual Kuito) – exactamente no dia 19 de Março de 1967, 46 anos antes desta apresentação! – foi comandante do Pelotão Experimental a Cavalo, em Angola, e coube-lhe desbravar o caminho. Numa intervenção empolgante, não fugindo aos aspectos negativos, contou como “do zero” se formou a unidade e os inúmeros problemas que se levantavam e como os ía resolvendo, quer do ponto de vista da administração de pessoal e animais quer depois na instrução, treino e inicio da actividade operacional.
Julgo que a Revista da Cavalaria fará em próxima edição a transcrição das intervenções pelo que não tem muito sentido detalhar agora as apresentações, nem as conclusões, mas apenas algumas passagens que ilustram o tema. Dos militares que se voluntariaram para a unidade – os quais deviam saber montar, era uma condição – apenas 2, em 30, não tinham punições e saber montar, sabiam apenas 4 deles (um sabia mesmo bem, era campino!). Motivos? Queriam sair de zonas de guerra mais “quentes” e declaravam que sabiam montar mesmo sem nunca ter visto um cavalo, e por outro lado, os comandantes das unidades só deixavam sair os “problemáticos”. Em dois meses foi possível construir de raiz as estruturas mínimas necessárias à guarda e utilização dos animais, familiarizar os homens com os cavalos e o seu tratamento, ensinar a montar e fazer uma primeira marcha itinerária de mais de 40Km até Nova Sintra (actual Catabola), pernoitar e regressar pelo mesmo caminho. Os animais, provenientes da África do Sul e com bom carácter, foram habituados aos disparos de G-3 e explosões de petardos, além de operações com helicópteros (reabastecimento). Adoptaram-se e testaram-se diferentes formações e procedimentos tácticos. Nota diferenciadora em relação a outros tipos de tropas, o silêncio em operações difícil de “bater” e uma grande mais-valia neste tipo de guerra.
Seguiu-se o agora Superintendente-Chefe (Reforma) da PSP Furtado Dias que como capitão de cavalaria foi comandante de Esquadrão a Cavalo, também em Angola, de 1973 a 1974, ou seja já com a unidade constituída e em plena actividade. Recordou a situação do inimigo na altura em Angola e naquela área de operações, a actividade como força de intervenção do seu esquadrão em operações com outras forças, nomeadamente com unidades pára-quedistas e de comandos, operando por vezes longos períodos, com reabastecimento de cinco em cinco dias. Interessante ainda a informação prestada que o seu esquadrão foi – por decisão do comando português – empenhado em operações contra o MPLA com a finalidade expressa de aliviar a pressão sobre a UNITA. Detalhe curioso ainda o facto de só depois do 25 de Abril de 1974 terem recebido no esquadrão espingardas automáticas G-3 de coronha retráctil, uma vez que as com coronha de baquelite não seriam as ideais para uso montado. No seu tempo no Esquadrão todo o pessoal em cumprimento do serviço militar obrigatório era de recrutamento local, o que naturalmente trouxe problemas acrescidos no período da descolonização.
Sobre a actuação em Moçambique usou da palavra o Coronel Cavalaria (Reforma) Silva Guilherme, que fez uma retrospectiva das unidades a cavalo em Angola e Moçambique, detalhando neste último caso, até ao início em Agosto de 1972 com o despacho da criação de um Esquadrão em Vila Pery (actual Chimoio) e a chegada dos primeiros 36 cavalos nesse mesmo mês. Elaborou ainda sobre a Zona de Acção, bem junto à Rodésia, e as suas características e particularidades, e outros aspectos da unidade, tais como a número de cavalos adquiridos (164 no total até 1973), as instalações, o empenhamento do comandante-chefe (Kaúlza de Arriaga), as muitas limitações e contrariedades que iam surgindo, os problemas com pessoal, muitos de recrutamento local, situação sanitária dos solípedes, numa apresentação muito documentada que também abordou o empenhamento operacional e as diversas operações em que o 1.º Esquadrão de Cavalaria da Região Militar de Moçambique participou, até Setembro de 1974. Apresentou as suas conclusões sobre o emprego concreto desta unidade e as limitações, entre outras as de carácter logístico e as decorrentes do conturbado processo de descolonização.
No período de perguntas e repostas ainda foram dadas mais algumas informações, como, nem todas as unidades terem usado a espingarda G-3 em combate a cavalo, em algumas épocas usou-se apenas a pistola e outras referências, por exemplo a oficiais, já falecidos ou não presentes, que tiveram importância relevante nestes processos.
Encerrou a sessão o TGen Sousa Pinto que exortou os cadetes a nunca abdicar da sua capacidade de inovar e lembrou que os envolvidos nesta Adaptação em Tempo de Guerra nos anos 60 e 70 do século XX nunca tinham operado “a cavalo”. Sabiam tanto de cavalos como qualquer outro oficial da Academia. Tiveram que estudar, inventar e adaptar-se às circunstâncias.
Conclusão
Uma das características que transpareceu deste painel de intervenções foi a de que os oradores não tiveram medo da história, contaram tanto quanto foi possível perceber aquilo que se passou e não aquilo que gostariam que se tivesse passado! Não estiveram a “dourar a pílula” como por vezes se vê quando, passados muitos anos, alguém vem falar ou escrever sobre a guerra. Aqui não se reescreveu nada, tanto quanto nos pareceu, falou-se “terra-a-terra”, sem lamentações, mesmo com entusiasmo.
Mais do que os resultados que foram relativamente modestos, mas não inferiores a muitas outras unidades militares portuguesas e certamente superiores a muitas outras, até porque a mudança politica em Lisboa determinou o fim da guerra, e a experiência, sobretudo em Moçambique, não teve oportunidade de se desenvolver, este caso mostra que uma “nova arma” foi posta em acção para fazer frente ao tipo de guerra que então enfrentávamos, tendo por base uma iniciativa dos escalões mais baixos, mas que contou com o apoio da hierarquia.
Miguel Machado é
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