RUMO AO AFEGANISTÃO
Por Miguel Machado • 29 Set , 2012 • Categoria: 03. REPORTAGEM PrintMilitares das Forças Armadas e recentemente também da Guarda Nacional Republicana, estão empenhados no principal conflito da actualidade, o Afeganistão. O governo legítimo de Portugal assim o determinou em 2002 no âmbito da luta contra o terrorismo e, ano após ano, com um ou outro interregno, configuração e efectivo variáveis, a participação nacional mantém-se. Fomos ver parte da fase final do exercício “Kabul 122” da Brigada de Reacção Rápida, o derradeiro teste de avaliação para os que rumam ao Afeganistão em Outubro 2012.
O Afeganistão em Beja
Uma coluna de viaturas avança junto à carreira de tiro do Regimento de Infantaria n.º 3 (Beja), região por estes dias “rebaptizada” com uma série de nomes que os mais atentos costumam ouvir nas notícias e nem sempre pelos melhores motivos: Kabul, KAIA, Camp Warehouse, Wardak e outros, transportando-nos para uma realidade onde os militares portugueses, integrados na ISAF – International Security Assistance Force – combatem na guerra ao terrorismo que os países da NATO decidiram travar.
Sob a responsabilidade de um sargento, integrando militares de todos os postos – adiante já se explica porquê – os Humvees (*) avançam e por mais do que uma vez param a marcha, alguns militares desembarcam, e verificam o terreno envolvente. Sendo certo que é um exercício e todos o sabemos, nota-se, desde o “briefing” que este sargento deu a todos os oficiais, sargentos e praças envolvidos no deslocamento, que as coisas são levadas bem a sério. Dentro de um mês, será em Kabul!
Pressente-se no ar que algo estará para acontecer e numa curva da estrada…um obstáculo obriga a nova paragem. Acto contínuo a coluna fica debaixo de disparos de armas automáticas. As metralhadoras das torres dos Humvees da Companhia de Protecção são as primeiras a reagir – melhor as espingardas dos artilheiros dessas torres pois as metralhadoras, entre nós, não têm munições de instrução -, os militares saem tão rápido quanto possível do interior das viaturas e reagem ao ataque. Logo nos primeiros instantes têm que lidar com um ferido. Quando a situação o permite a força sai do local de modo coordenado, sem mais baixas. Neste momento juntam-se no meio da estrada, dois oficiais, um da direcção do exercício e outro do Centro de Tropas Comandos, e iniciam uma troca de impressões. Os capitães Lawrence e Augusto, este último regressado do Afeganistão em 2011, debatem o que viram e assinalam aspectos positivos e negativos, registando-o. E esta atitude critica, baseada naquilo que muito recentemente se viveu na primeira pessoa no Afeganistão, foi o que vimos noutras acções “tipo” criadas para treinar e testar os militares, de todos os postos, que integram as diversas componentes do Contingente.
Esta Companhia de Protecção, composta por militares do Centro de Tropas Comandos, tem como missão genérica, garantir a segurança dos militares que se deslocam no teatro de operações para cumprir as suas tarefas. E por isso se justifica o atrás referido. Quem comanda a coluna é o sargento da Companhia de Protecção, os “passageiros”, independentemente do posto, devem agir nestes casos como seus subordinados e assim vemos capitães e/ou tenentes-coronéis de espingarda G-3 nas mãos a defender a coluna, seguindo as instruções do responsável pela segurança como qualquer outro militar. E aqui está uma das características deste conflito como de outras missões exteriores, os baixos escalões de comando foram chamados a responsabilidades acrescidas em situações não raramente complexas.
Horas antes, na cidade de Beja, a mesma companhia vira-se envolvida num outro incidente que tem grande probabilidade de acontecer e tem acontecido, embora por cá essas notícias não cheguem…ficam para quem as viveu. Aqui, numa artéria bem movimentada da cidade, a direcção do exercício criou um acidente de viação envolvendo uma viatura civil afegã e um ferido dessa naturalidade. Pior, a vítima era do sexo feminino, e logo os problemas aumentam de forma exponencial. Pretendeu-se que os militares da coluna a três tempos pudessem: garantir a sua própria segurança (coluna e passageiros); prestar ajuda à vítima; orientar o trânsito. Qual mais difícil? Passo a explicar! Vários militares que estiveram no Afeganistão trataram de obstruir de modo muito agressivo, quase-violento, a acção dos comandos que estavam a ser avaliados, através de empurrões, ofensas, gritaria, criando uma ambiente de confusão típico daqueles paragens. Ao mesmo tempo tentava-se estabelecer comunicação com os acidentados civis – quase impossível, a coluna não transportava interprete – e o marido na vítima recusava-se terminantemente que alguém ousasse tocar na sua mulher ferida e caída na estrada. Como pano de fundo, e além da imediata comunicação para o escalão superior via rádio, havia ainda que gerir o trânsito (real) que naturalmente não podia parar em Beja, como não pode parar em Kabul. Não parece difícil imaginar a confusão armada e a necessidade da força manter a calma, não usar as armas de fogo excepto se houver uma escalada de violência e sair do local com a situação resolvida. Sobre esta situação lembra-se bem o capitão Lopes, piloto de helicóptero do Exército, aqui nas funções de avaliador, de caso muito semelhante em que se viu envolvido nas ruas de Kabul. Teve que lidar com o atropelamento de uma criança, gerir o ambiente envolvente, deixá-la no hospital e comunicar, em documento padrão que todas as forças da NATO usam, os dados necessários a eventuais indemnizações. “Nessa ocasião, apesar da delicadeza do assunto e do ambiente tenso que se criou no local, não senti ameaça directa à força, tomamos todas as precauções, fizemos o nosso melhor para ajudar a vítima, e cumprimos as formalidades legais que as forças da NATO observam“.
Depois da retirada da coluna segue-se a avaliação com grande detalhe do que se passou. Diversos militares com experiência recente do Afeganistão, os que na acção desempenharam o papel de afegãos, juntam-se ao oficial da direcção do exercício e relatam aquilo que viram de bom e de mau. Todos os detalhes são abordados, da energia (ou falta dela) com que os comandos reagiram perante os “civis”, ao facto de trancarem ou não as portas dos HMMWV, ou como tentaram socorrer a vítima, tudo um pouco foi ali tratado, e devidamente registado pelo oficial avaliador.
Missão
O comandante do 5.º Contingente Nacional, Coronel Diogo Sepúlveda Velloso, 51 anos de idade, 33 de serviço, antigo comandante do Centro de Tropas de Operações Especiais, com 5 missões exteriores já cumpridas (Bósnia, Saará, Congo Brazaville, Timor e Líbano), apresenta-nos a actual organização da força portuguesa. Esta assenta numa recente (Junho 2012) e clarificadora directiva operacional do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas. A evolução da missão e o aperfeiçoamento de aspectos organizacionais e de comando, assim o exigiram. Diz-nos Sepúlveda Velloso, «…a missão principal é a de aconselhar, assistir e assessorar as unidades das Forças Armadas Afegãs (Exército Nacional Afegão e Policia Nacional Afegã), com vista ao seu emprego operacional, ministrar instrução básica e complementar, formar formadores e assessorar as acções de formação nos Centros de Formação das suas forças armadas, com base na seguinte organização…».
Explica-nos de seguida a evolução decorrente do novo conceito de operações da ISAF no apoio às entidades afegãs, o que, em linguagem corrente se pode traduzir do seguinte modo: evoluiu-se do conceito de “mentor” (no qual existiam as OMLT’s – Operational Mentoring and Liasion Team), em que os militares e polícias da NATO estavam lado-a-lado com os afegãos para os ajudar a fazer o seu trabalho, enquanto na actualidade (o que já começou a acontecer com a força que está neste momento no Afeganistão), o conceito é o do “assessor” (adviser), em que o afegão faz sozinho e o estrangeiro observa e acompanha, ajudando se necessário.
O Coronel Velloso comanda o 5.º Contingente Nacional que servirá no Afeganistão com a seguinte organização:
– Célula de Informações Militares (composta por militares dos três ramos)
– Equipa de Assessores (do Exército) conhecida por “MAT” (Military Advisor Team para o Capital Division Headquarters), uma expressão que de algum modo substituiu a anterior “omelete” (de OMLT) na gíria militar, que trabalham na 111.ª Divisão Afegã (em Kabul);
– 2 Equipas de Formadores (uma da Força Aérea, na Academia da Força Aérea Afegã – PeH (Pohantoon e Hawayee), quer dizer em Phastum “Grande Escola da Aeronáutica”) – Staff Advisory Team (no Aeroporto Internacional de Kabul, e outra da GNR – no National Police Training Centre, em Wardak, a 75 Km de Kabul)
– Força de Protecção do Aeroporto International de Kabul (Exército: Policia do Exército e Marinha: Fuzileiros), uma missão que deverá terminar em 2013 na qual os militares portugueses operam integrados numa estrutura de segurança com outras nacionalidades. Trata-se de uma missão pouco – ou nada – divulgada entre nós, mas muito exigente, obrigando a serviços expostos a rotinas e perigos bem reais naquela situação como sejam, entre outros, segurança na porta-de-armas e rondas;
Militares que preenchem cargos no chamado Crisis Establishment (CE), ou seja, lugares individuais em vários departamentos da ISAF.
– Unidade de Apoio que inclui um Estado-Maior, a Companhia de Protecção composta por um Grupo de Comando e 2 Grupos de Combate do Centro de Tropas Comandos, e um Pelotão de Apoio de Serviços com uma Secção de Manutenção, uma Sanitária e uma de Comunicações. Este pelotão de apoio é composto por militares dos três ramos.
Kabul 122, fim de um ciclo
O exercício “Kabul 122” foi organizado pela Brigada de Reacção Rápida, cujo Estado-Maior estava em peso no RI 3. Durante uma semana o exercício contou com a presença de cerca de 300 militares e envolveu, em paralelo com as actividades destinadas ao 5.º Contingente Nacional, uma componente de divulgação do Exército e das sub-unidades da brigada na região de Beja. A BrigRR assinala aliás este ano o seu 7.º aniversário, exactamente nesta cidade.
O estado-maior da brigada organizou e conduziu o “Kabul 122” tendo empenhado nas diferentes tarefas um número elevado de quadros com experiência em missões exteriores e em especial no teatro de operações do Afeganistão o que naturalmente é um “valor acrescentado” na avaliação do estado de preparação da força e da sua prontidão.
A preparação desta força incluiu 3 fases principais que decorreram em diferentes pontos do país, consoante as necessidades. A primeira após a nomeação do pessoal foi essencialmente administrativa e logística e em que foram treinados os requisitos operacionais individuais (o que é que cada um deve saber fazer!), a segunda já mais alargada em termos de tempo (mais de 2 meses) em que se passou ao treino conjunto, logo parte importante da força já estava concentrada no Regimento de Infantaria n.º 3 e na qual decorre o “Kabul 122”. Nos últimos dias do exercício o 5.º Contingente nacional foi sujeito a uma CREVAL (Combat Readiness Evaluation) pela Inspecção do Exército, última etapa de um ciclo que se iniciou, 6 e 4 meses antes, consoante as componentes da força. A terceira fase será a preparação final da projecção da força para o Afeganistão, a qual, como tem sido hábito, vai ser feita em avião civil fretado.
(*) HMMWV – High Mobility Multipurpose Wheeled Vehicle
Veja aqui o clip vídeo: EXERCICIO “KABUL 122″
Miguel Machado é
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