RETRATOS DE UMA MISSÃO NA BÓSNIA (VIII)
Por Miguel Machado • 10 Ago , 2016 • Categoria: 05. PORTUGAL EM GUERRA - SÉCULO XX PrintRETRATOS DE UMA MISSÃO NA BÓSNIA, continua com mais dois episódios. José Manuel Araújo, que serviu 25 anos nas tropas pára-quedistas portuguesas, Sargento Pára-quedista desde 1984, integrou a primeira missão portuguesa na Bósnia e Herzegovina em 1996. Aqui fica a sua visão, a dois tempos descritiva mas também cómica de muito do que por lá viu e passou. Mais uma vez as relações com o Comandante de Batalhão e com o Capelão, preenchem as recordações de José Araújo.
15 – O SAL DO PEQUENO ALMOÇO
No início da missão, era a Brigada Italiana, onde o Batalhão Português estava incluído, que abonava a alimentação. O DAS – Destacamento de Apoio de Serviços, estacionado em Vogosca, arredores de Sarajevo, entregava os bens alimentares, para todo o Batalhão, na Secção de Reabastecimento, sediada em Rogatica, a cerca de 70 km de distância, já na República Srpska. Depois, o pessoal da Secção de Reabastecimento, fazia a divisão, em razão do número de militares e procedia à distribuição pelos aquartelamentos do batalhão, com excepção do destinado ao de Rogatica, que ficava depositado no seu armazém e era fornecido à equipa de alimentação conforme as necessidades.
Parte dos géneros entregues vinha a granel, pelo que era necessário usar uma balança para pesar a parte correspondente a cada aquartelamento.
O sal e o açúcar eram dois produtos que vinham em sacos de 25 Kg, sendo o pessoal da Secção e Reabastecimento que pesava e fazia a divisão, distribuindo-o por sacos de plástico. O sal fornecido era fino, pelo que apenas pelo paladar se conseguia fazer a destrinça entre os dois.
Um certo dia, já depois do jantar ter terminado, o Sargento que chefiava a equipa de alimentação foi ter com o Sargento de Reabastecimento, porque o açúcar estava a acabar e não chegava para a confecção do pequeno-almoço do dia seguinte.
O Sargento de Reabastecimento dirigiu-se ao armazém e entregou ao Chefe da equipa de alimentação um saco plástico transparente, com o produto em falta.
Na manhã seguinte a Equipa de Alimentação confeccionou o café, na panela habitual, que dava para todo o pessoal estacionado em Rogatica, e fez o normal adicionamento de sal, porque o sal era colocado no café quando este estava na panela. Depois o cozinheiro fez a habitual prova para verificar o sabor, e cuspiu imediatamente o café que levara à boca….! O Sargento de Reabastecimento entregara o saco, que se encontrava no local onde deveria estar o açúcar e não verificara, com o paladar, se era mesmo açúcar. Por lapso alguém colocara um saco de sal no local onde estava o açúcar e o Sargento entregara sal…
A Equipa de Alimentação, despejou todo o café salgado da panela, lavou-a e começou de imediato a preparar uma nova panela de café. O Chefe da Equipa dirigiu-se, rapidamente, ao Sargento de Reabastecimento e este entregou-lhe um novo saco, depois de comprovar que era mesmo açúcar…!
Só que não foi possível evitar algum atraso no início da primeira refeição.
O Comandante de Batalhão apercebeu-se do atraso e, depois de questionar a razão, foi-lhe explicado que a primeira panela de café ficara salgado e quais as razões disso ter acontecido. Tudo seria irrelevante, para o Comandante de Batalhão, se não fossem intervenientes: o Sargento de Reabastecimento e o Chefe da Equipa de Alimentação…! É que o Comandante de Batalhão não acreditava que, com esses intervenientes, a situação fosse um mero acaso! E assim fez saber que os dois sargentos, como medida punitiva, iriam ser “repatriados”!
Só que…..
Pela face risonha e satisfeita dos sargentos, ao terem conhecimento do seu regresso, antecipado, a casa, o Comandante de Batalhão percebeu que ao invés de ser uma punição, seria um prémio…! E então pensou melhor e “castigou-os” mantendo-os na missão, a desempenhar as mesmas funções…!
José Manuel Araújo
16 – A “PRISÃO” DO CAPELÃO
Decorria o mês de Junho e o pessoal, aproveitando o avião que garantia a sustentação da força e dentro da disponibilidade, ia gozando uns dias de licença em Portugal.E chegou a vez do Capelão aproveitar a boleia do “Bisonte” (C-130)!
Ora a saída do Capelão do Teatro de Operações iria deixar o pessoal sem apoio religioso. Era o único padre português na missão e não existia ninguém com preparação para o substituir. “Preocupado” com isso o Sargento de Reabastecimento chegou a propor-se para assegurar a sua substituição e, verdade seja dita, era, indubitavelmente, a pessoa mais conhecedora da matéria de entre os militares presentes na missão. Fazia era, na opinião do Capelão, uma leitura “arrevesada” das “escrituras”! E viu, por isso, recusada a sua oferta.
O Capelão estava instalado no aquartelamento de Rogatica, num quarto no primeiro piso, ao lado do Sargento de Reabastecimento. Os quartos tinham porta mas não possuíam fechadura, teriam sido removidas aquando da vandalização do edifício, possivelmente porque valeriam algum dinheiro. Por não terem fechaduras as portas tinham visível o orifício, usado para aplicação das mesmas. Na noite que antecedia o embarque do Capelão para o gozo da licença em Portugal, alguém que, naturalmente, não quereria ficar privado, durante uma semana, do apoio religioso, passou um cabo de aço, usado para reboque de viaturas, pelo orifício da porta. Fez a outra ponta do cabo contornar o pilar de suporte da escadaria, que ficava defronte do quarto e uniu as duas pontas com um serra-cabos. Pensaria, talvez, com isso impedir o padre de chegar a horas do embarque, ao aeroporto em Sarajevo!
Ora acontece que o Capelão costumava ter umas noites diuréticas. E naquela noite, talvez antevendo a chegada a Portugal, a bexiga esteve hiperactiva. Os quartos não tinham sanitários, também eles desapareceram enquanto o edifício esteve devoluto, pelo que as únicas instalações sanitárias existentes, eram comunitárias e situavam-se na cave.
Mas a porta estava fechada com o cabo de aço e, na altura, não havia telemóveis.Na busca de alternativas o padre tentou uma garrafa de água, que era pouco prática e rapidamente esgotou a capacidade. Depois acabou por usar a janela e fazer a excreção em “chafariz” para o exterior. De manhã, quando o aquartelamento iniciou a rotina diária, alguém ouviu os apelos e se apercebeu que o padre estava “aprisionado” e, “devolveu-o à liberdade”.
Depois da higiene matutina e de se preparar para abalar, o Capelão saiu do quarto e desceu as escadas que conduziam ao átrio. No átrio estavam vários militares, os que iam na coluna para Sarajevo e outros que se preparavam para iniciar as suas funções diárias. O Capelão, de dedo apontador em riste, virou-se para o Sargento de Reabastecimento, acusando-o:
Foste tu… Só podias ter sido tu!
O Sargento, enquanto sorria, foi-se fazendo desconhecedor do que acontecera, questionando o padre ao que se estava a referir? Nunca houve confirmação de quem fora o autor do “aprisionamento” do capelão, porque ninguém assistira ao acto. Mas, para todos, era óbvio que tal acto só poderia ter sido praticado por um “agente do demo” e, se outras razões não houvesse e haviam porque a fama o precedia, bastava isso para o Sargento de Reabastecimento ser o principal suspeito!
José Manuel Araújo
Leia aqui os seis artigos anteriores desta série:
RETRATOS DE UMA MISSÃO NA BÓSNIA (I) 1 – INTRODUÇÃO; 2 – A CEIA DO COMANDANTE
RETRATOS DE UMA MISSÃO NA BÓSNIA (II) 3 – OS SEMÁFOROS DE SARAJEVO; 4 – ALBERTO O CONCERTISTA
RETRATOS DE UMA MISSÃO NA BÓSNIA (III): 5 – A MONDA DOS DENTES; 6 – O QUEIJO DA SERRA
RETRATOS DE UMA MISSÃO NA BÓSNIA (IV): 7 – O ATEU-MOR; 8 – O WHISKY ITALIANO
RETRATOS DE UMA MISSÃO NA BÓSNIA (V): 9- ADULTÉRIO; 10 – O CAMPEÃO
RETRATOS DE UMA MISSÃO NA BÓSNIA (VI): 11 – O FANTASMA DE ROGATICA; 12 – O “RATO” DO TABACO
RETRATOS DE UMA MISSÃO NA BÓSNIA (VII): 13 – AS FÉRIAS DA BULIMIA; 14 – REVISTA!
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