RETRATOS DE UMA MISSÃO NA BÓSNIA (III)
Por Miguel Machado • 10 Abr , 2016 • Categoria: 05. PORTUGAL EM GUERRA - SÉCULO XX PrintO terceiro artigo desta série, hoje à volta da alimentação e aspectos conexos! RETRATOS DE UMA MISSÃO é um olhar muito particular sobre a primeira missão portuguesa na Bósnia e Herzegovina em 1996. O autor, José Manuel Araújo, que serviu 25 anos nas tropas pára-quedistas portuguesas, Sargento Pára-quedista desde 1984, integrou a missão e dá-nos uma visão a dois tempos descritiva mas também cómica, daquilo que viu, daquilo porque passou.
5 – A MONDA DOS DENTES
Quando perspectivamos a participação na missão IFOR, fizemos a “trouxa” com o rol de coisas que imaginávamos serem necessárias. Principalmente aquilo que, pensávamos, nos poderia dar algum conforto, num teatro de operações com condições meteorológicas adversas e muito diferentes daquelas a que estávamos habituados, ainda mais em pleno Inverno.
Por isso e porque imaginamos sempre o pior dos cenários, fizemos um enxoval completo para uma estadia prolongada no “Pólo Norte”. Eram luvas de diversos tipos, meias-calças, meias de todas as texturas, botas impermeáveis, gorros, polar etc… e neste etc inclui-se uma extensa lista de artefactos que nos deveriam proporcionar alguma comodidade e conforto…!
Seguiram ainda aquelas pequenas coisas e ícones, que nos iriam ajudar a recordar a terra natal e a manter acesa a saudade…!
Quando começamos a missão percebemos que, afinal, muitas desse material era supérfluo e que nos esquecêramos de pequenas coisas que, essas sim, faziam falta…!
Uma das pequenas coisas, que pareceria insignificante, mas cedo percebemos que afinal era essencial, eram aqueles pequenos artefactos de madeira, que utilizamos para retirar aquele irritante resto de carne, que fica entranhado entre os dentes….!
E, nos primeiros 20 dias de missão, a alimentação foi fornecida pela Brigada Italiana. Por isso, o almoço era carne com massa e o jantar, para variar, era massa com carne….
E sempre carne de vaca…. E, então, daquelas vacas italianas…………!!!
Os palitos, pois é deles que se trata, faziam uma falta terrível…
Íamos tentando superar essa falta, retirando finas lascas de madeira das paletes, mas………!!!
Há vinte anos atrás não havia correio electrónico, nem telemóveis com o raio de acção actual. A comunicação com a família era feita por telefone, ou através de carta em envelope…!
Na altura os 2500 Km, que separam Portugal da Bósnia, eram, efectivamente, um enorme fosso…
Logo no início da missão foi instalado o serviço postal militar, que transportava o correio do pessoal, no avião militar que garantia a sustentação da força, até Portugal, passando aí para o canal dos CTT. O serviço era gratuito para os militares, sendo que o Exército custeava o serviço postal dos CTT. No sentido inverso o envio de correio, para o pessoal da missão, apenas era pago até entrar no serviço postal militar.
Assim, o material que íamos descobrindo que faltava, era pedido através do correio.
Só que os palitos causavam um enorme dilema…!
É que, para além do seu significado literal, os palitos têm um significado simbólico, que causa “dores de cabeça” a muita gente….!
Não era fácil alguém escrever uma carta para a mulher, que estava em Portugal e, no final da conversa mundana e das manifestações de saudade, dizer que à sua “cara-metade” para lhe arranjar palitos……!!!
Mas a falta dos palitos era realmente “uma dor de cabeça”…
O Sargento de Reabastecimento decidiu que tinha que resolver a situação e escreveu, à sua esposa, uma carta em que lhe solicitava que, na volta do correio, lhe enviasse 10 caixas de monda-dentes…!
O sargento tinha a certeza que a sua mulher não sabia o que eram monda-dentes…Mas também sabia que, lá em casa, havia um dicionário….!
Na volta do correio lá vieram as 10 caixas dos “preciosos” monda-dentes…!
E, em Rogatica, passou-se a poder mondar os dentes………! Posteriormente os palitos haveriam de entrar no canal de reabastecimento normal.
Mas há a registar o método expedito de resolver o problema, sem constrangimentos…
É que um homem pode ter um problema com os “palitos”…
Mas nenhum homem tem problemas com os monda-dentes…!!!
6 – O QUEIJO DA SERRA
No inicio da missão IFOR os géneros, para confecção das refeições, eram fornecidos pela Brigada Italiana, situação que se manteve no primeiro mês sendo que, depois, os alimentos passaram a ser fornecidos directamente de Portugal.
Ora alimentação italiana é sinónimo de massa.
Por isso, durante o primeiro mês as refeições eram, invariavelmente, massa com carne e só variava a massa, cujo tipo ia do macarrão até ao esparguete, porque a carne, essa, era sempre de vaca…!
A cozinha italiana consegue confecionar massa, tal como a portuguesa o bacalhau, de mil e uma maneiras diferentes…!
Só que pôr cozinheiros, portugueses e militares, a cozinhar massa, leva a que, ao fim de três dias, se torne absurdamente repetitivo…!
Nos géneros fornecidos para confeccionar as refeições os italianos forneciam, sempre, dois tipos de queijo que, obviamente, se destinariam a condimentar a refeição…!
Só que, como na perspectiva portuguesa a massa nunca leva queijo, os queijos eram colocados numa mesa e quem quisesse pegava na faca e servia-se…!
Um dos queijos, o mais pequeno, teria cerca de 30 centímetros de diâmetro e era sempre fornecido em quantidade suficiente para dividir pelos quartéis ocupados, num total de quatro.
O outro queijo parecia uma roda, de um automóvel ligeiro e, geralmente, vinha um único para cada refeição, o que tornava difícil fazer a divisão pelos aquartelamentos.
Inicialmente o canal de reabastecimento, para todo o batalhão, passava pela Secção de Reabastecimento do Batalhão, o que transformava o DAS – Destacamento de Apoio de Serviços, a unidade de apoio, com cerca de cento e cinquenta militares, sediado em Vogosca, nos arredores de Sarajevo, numa espécie de entreposto, no canal de reabastecimento, entre a Brigada e o Batalhão. O que criava uma situação muito complicada, porquanto a Secção de Reabastecimento tinha que fazer a recepção do material, a divisão de acordo com o atribuído para cada um dos quatro aquartelamentos, em função do número de homens dos mesmos e depois fazer a entrega nos locais. Tudo isto com apenas dois sargentos e quatro praças, sendo que um sargento e uma praças estavam atribuídas ao reabastecimento de combustível. Essa situação foi depois corrigida, passando o DAS a entregar os géneros directamente nos aquartelamentos.
O excesso de massa era combatido pelo que, via postal, os familiares dos militares faziam chegar. Em que se incluíam, aquelas coisas que dizem “fazer mal à saúde”, mas faziam um enorme bem à alma, porque que traziam o cheiro e os sabores da Lusitânia, nomeadamente os queijos e os enchidos e até a Broa de Avintes…. e assim se resistiu e “sobreviveu” a um mês de “pasta” italiana…!
Um dia, quando se falava sobre “petiscos”, o Sargento de Reabastecimento disse ao Comandante da Companhia de Comando e Serviços que tinha, no armazém, “queijo da serra”!
Os olhos do Capitão reluziram ainda que incrédulos e, com ar de dúvida, foi perguntando se era mesmo verdade.
O Sargento garantiu que sim e convidou-o para ir ao armazém, para provar o queijo da serra…!
O Capitão aceitou imediatamente o convite e deslocou-se, logo de seguida, acompanhado pelo Sargento, para o armazém. Desceram as escadas de acesso enquanto o capitão ia salivando, na perspectiva de ferrar o dente no queijo da serra.
No fim das escadas ficava a porta da arrecadação, que o sargento abriu e entraram.
No armazém encontrava-se, sobre uma mesa, um queijo italiano, dos grandes…!!!
Junto da mesa dois dos soldados, da Secção de Reabastecimento, manobravam uma serra de arco, das geralmente usadas para cortar madeira e iam serrando o queijo, para o dividir pelos aquartelamentos.
Conforme serravam ia caindo na mesa uma espécie de serrim, de queijo ralado, provocado pelo corte da serra.
O sargento retirou um pouco desse queijo e mostrou-o ao Capitão, dizendo:
– Ora aqui tem o queijo da serra… este é que é o verdadeiro queijo da serra….!
O riso do Capitão não disfarçou a sua desilusão por, afinal, não poder degustar o queijo da serra, que lhe fizera criar “água na boca”.
Mas, certamente que o genuíno queijo da serra português terá acabado por chegar à boca do Capitão, porque nunca constou que ficasse aguado !!
José Manuel Araújo
Leia aqui os dois artigos anteriores desta série:
RETRATOS DE UMA MISSÃO NA BÓSNIA (I) 1 – INTRODUÇÃO; 2 – A CEIA DO COMANDANTE
RETRATOS DE UMA MISSÃO NA BÓSNIA (II) 3 – OS SEMÁFOROS DE SARAJEVO; 4 – ALBERTO O CONCERTISTA
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