OS ÚLTIMOS DISPAROS DO “MURO DO ATLÂNTICO” PORTUGUÊS
Por Miguel Machado • 22 Dez , 2008 • Categoria: 05. PORTUGAL EM GUERRA - SÉCULO XX, 09. ONTEM FOI NOTÍCIA - HOJE É HISTÓRIA, 14.TURISMO MILITAR PrintNota: Os artigos desta secção estão escritos exactamente como foram publicados à data dos acontecimentos
Em Setembro de 1936, marinheiros portugueses da Organização Revolucionária da Armada, sublevaram em Lisboa as tripulações de dois navios de guerra: O contratorpedeiro Dão e o Aviso de 1ª classe Afonso de Albuquerque. Tinham como objectivo inicial derrotar o governo mas por falta de apoios na capital, Lisboa, fracassaram. Pensaram então em rumar a Espanha para se unirem às tropas da República.
A artilharia de costa fiel ao governo de Oliveira Salazar entrou em acção e os navios foram atingidos. Morreram doze marinheiros e os sobreviventes içaram a bandeira branca, sem sequer ter saído do Tejo.
Foi esta a última actuação real da Artilharia de Costa. Agora, como vingança do “Império do Mal”, o fim do comunismo internacional, aquele ao qual os marinheiros de 1936 aderiram, veio trazer como uma das repercussões militares em Portugal, o fim da Artilharia de Costa portuguesa, o último dos seus inimigos declarados.
Tendo assistido a um dos últimos disparos destes “dinossauros” aproveito a experiência para fazer uma viagem pela história desta singular especialidade do Exército Português.
Hoje em dia (1998) a Artilharia de Costa integra o Regimento de Artilharia de Costa situado em Oeiras que já se encontra em processo de desactivação, e que compreende duas baterias operacionais, a 6ª e a 7ª de um conjunto de oito (com 36 peças em 11 locais), montadas nos anos 40 e 50. Estas baterias continuam a efectuar exercícios de tiro com alguma regularidade e que apenas são possíveis porque se encontram junto a áreas costeiras protegidas nas quais não são autorizadas construções de habitações. As outras baterias do RAC integradas na defesa de Lisboa e Setúbal foram progressivamente “cercadas” por áreas urbanas.
Abrir fogo com estas peças de grande calibre tornou-se impossível sem correr riscos, no mínimo de partir muitos vidros! A 6ª Bateria (denominada Raposa, junto à praia da Fonte da Telha), dispõe de 3 peças 23,4cm m/47-48 e está operacional desde 1958. A 7ª (localizada no Outão na Serra da Arrábida, junto a Setúbal), dispõe de 3 peças 15,2cm m/47-44, tendo entrado ao serviço em 1954.
A 6ª foi equipada com meios de aquisição de objectivos e de direcção de tiro electrónicos, computorizados, fixos e a segunda utiliza um sistema similar mas móvel (em contentores) que pode ser empregue em outros locais da costa.
Em Portugal, como em outros países, a manutenção destes sistemas de armas concebidos para a defesa costeira nos anos 40 foi sempre objecto de alguma polémica. Argumentos a favor e contra do seu puro e simples desmantelamento e consequente substituição por sistemas móveis, houve muitos.
O problema parece ser, como em outros sectores, uma questão de prioridades e de orçamento disponível. E tudo indica que os anos mais próximos não serão suficientes para permitir que a defesa contra operações anfíbias seja considerada uma prioridade.
Indiferentes a estas discussões as peças da Serra da Arrábida, dominando a entrada do Porto de Setúbal, continuam a fazer fogo com notável eficácia como tive oportunidade de constatar. Homens e materiais, utilizando o sistema de direcção de tiro móvel, dispararam uma centena de projécteis durante uma manhã de tiro, sobre um alvo flutuando no mar.
A outra bateria operacional, a da Fonte da Telha, que controla tanto a entrada do porto de Setúbal como a o rio Tejo, e que conta com um sistema de fixo de aquisição de objectivos e de direcção de tiro, telémetros laser e câmara térmica, abriu fogo com as suas três peças de 23,4cm. São armas impressionantes pelas suas dimensões e estruturas de apoio, em especial as subterrâneas, e durante o exercício que assistimos apenas visaram alvos fictícios.
Em ambos os casos o comando e controlo das operações assim como o comando das guarnições estiveram à responsabilidade de oficiais e sargentos dos quadros permanentes, sendo as guarnições das armas constituídas quer por militares contratados quer por efectivos do serviço militar obrigatório.
Além da precisão dos disparos e da ausência de incidentes de tiro e do bom ritmo em que se desenrolou o exercício também foi evidente o elevado espírito de corpo que ali reina e mesmo entusiasmo posto na execução destas sessões de fogo real. E isto é tanto mais surpreendente uma vez que se sabe não ser o futuro da artilharia de costa, pelo menos nos moldes actuais, nada seguro.
Serão estes os últimos militares portugueses especializados em Artilharia de Costa? Não se sabe mas existem fortes possibilidades que a resposta seja, sim. Talvez por isso acho que vale a pena recordar, ainda que de forma sucinta, o passado desta especialidade no século XX?
Século XX
O uso de canhões contra alvos navais remonta em Portugal, ao que se sabe, a 1381 quando D. Fernando defendia Lisboa de um ataque levado a cabo por uma esquadra castelhana. Antes disso no entanto sabe-se de acções levadas a cabo por sucessivos monarcas para a defesa da costa, sobretudo na região da capital do reino. Nos séculos seguintes são muitas as referências à defesa das zonas litorais do país e em especial de Lisboa de ataques navais. Construções e armas foram dedicadas a esta finalidade sendo hoje ainda bem visíveis fortificações junto à costa em vários pontos do país e em especial no estuário do Tejo.
A designação Artilharia de Costa individualizada surge no entanto em 1911 apenas um ano depois da implantação da República com a nova organização militar do Exército então aprovada. Com a entrada de Portugal na 1ª Guerra Mundial, a artilharia de costa teve como responsabilidade não só a defesa do território continental e dos arquipélagos como forneceu pessoal para unidades que foram combater em França: o Corpo de Artilharia Pesada do Corpo Expedicionário Português foi equipado com armamento britânico (de 9,2”, 8” e 6”); o Corpo de Artilharia Pesada Independente com material de costa francês (32cm, 24cm e 19cm), adaptado para utilização sobre carris. Em Portugal e nas ilhas da madeira, Açores e Cabo Verde, a Marinha de Guerra reforçou a defesa costeira com baterias desembarcadas, chegando a fazer fogo sobre submarinos alemães em várias ocasiões.
No período entre guerras (1918-1939) foram muitas as alterações organizacionais introduzidas na Artilharia de Costa e na Antiaérea vocacionada para a defesa costeira. Foram criadas e extinguiram-se unidades e serviços, algumas áreas de actividade foram transferidas para a Marinha e chegou-se à 2ª Guerra Mundial com material Krupp. O melhor do seu tempo quando havia sido comprado mas na iminência do conflito estava desactualizado. Portugal faz neste período um enorme esforço para defender o território nacional, participando a artilharia de costa de modo significativo na defesa do Arquipélago dos Açores e até na do porto de Lourenço Marques (Moçambique) no Índico que recebe duas baterias.
Portugal iria manter-se neutral mas durante o conflito é constituída uma comissão luso-britânica, chefiada pelo major-general inglês F.W.Barron, para efectuar um plano de defesa costeira da região de Lisboa adequado às necessidades da altura e aquisição de novos materiais. O plano, a última reorganização de fundo da Artilharia de Costa, foi faseadamente implementado – na quase totalidade – e previa: um Comando de Defesa de Costa; dois Grupos de Artilharia de Costa de Contrabombardeamento (Lisboa e Setúbal) e duas redes de telemetria e observação; dois Grupos de Artilharia de Costa de Defesa Próxima (no Tejo e no Sado) e duas defesas contra pequenas unidades navais, duas zonas iluminadas, duas zonas de projectores de descoberta, uma faixa de minas comandada, uma barreira no rio para protecção interior do porto, ancoradouros e fundeadouros para fiscalização.
Em 1948 a primeira bateria deste “Plano Barron”, como ficou conhecido, estava operacional e em 1958 a última. No pós-guerra também foram montadas Baterias Independentes de Defesa de Costa, fora deste plano, no Faial, Horta e Ponta Delgada nos Açores, Funchal na Madeira e S. Vicente em Cabo Verde. A “Guerra Fria” assim o exigia e Portugal havia escolhido o seu campo ao aderir à NATO em 1949.
Mas em breve as forças armadas tiveram que responder a um dos maiores desafios da sua história: a contra subversão em África. Foi uma época em que as diferentes armas do Exército contribuíram para o esforço militar nacional fornecendo unidades que actuaram como infantaria ligeira. Isto apesar da Artilharia de Campanha ter actuado como tal na Guiné, Angola e Moçambique. Em 1974 e 1975 as forças armadas saíram das até então designadas províncias ultramarinas de África, regressando à chamada Metrópole e, como sucedera nos anos 50, voltou a prestar sobretudo atenção ao que se passava na Europa, quer dizer, à “Guerra Fria”.
Novos desafios
Em 1976 e 1977 o Exército passou por uma reorganização, ficando a Artilharia de Costa apenas com o Regimento de Artilharia de Costa, o qual além da sua missão operacional passou a ter também a componente Escola, competindo-lhe o estudo e o ensino desta especialidade em Portugal. Devido a esta missão legal, e certamente também de uma nova geração de oficiais entretanto formados, a Artilharia de Costa sofre um novo impulso. Não tão significativo como nos anos 40 e 50 porque os orçamentos o não permitiram, mas ainda assim algo inovador se foi fazendo.
O Exército seguia neste período, no essencial, a doutrina americana. Acontece que os EUA não dispunham de Artilharia de Costa e assim Portugal teve de recorrer ao que era possível saber em outros países amigos, como Espanha mas também Noruega e Suécia. Sobretudo junto dos nossos vizinhos Ibéricos não só pela proximidade geográfica mas também pelos materiais em uso. O intercâmbio entre unidades de artilharia de costa dos dois países foi frequente, participando os artilheiros portugueses em simpósios internacionais e cursos, embora, a partir de 1989, e com pesar, oficiais portugueses deixaram de ser enviados para frequentar cursos “de costa” em Espanha.
Com base nas informações obtidas junto destes países amigos o RAC concebeu, desenvolveu e introduziu equipamentos, técnicas e tácticas modernas. Foi assim possível passar a fazer a observação radar e térmica dos alvos, introduziram-se sistemas de direcção de tiro digitais e telémetros laser. Por outro lado passou a ser frequente a utilização de helicópteros da Força Aérea para o transporte de observadores aéreos da artilharia de costa e, a partir de 1985, realizaram-se exercícios conjuntos da Artilharia de Costa e a Artilharia de Campanha, actuando contra alvos navais, testando os seus equipamentos de direcção de tiro e radares móveis.
O esforço colocado pelo RAC no estudo e ensino mostrava os seus resultados sendo este um período em que o debate sobre qual o rumo que as defesas de costa deviam tomar – sobretudo à luz das experiências de Espanha, Noruega e Suécia – foi muito intenso e ocupou espaço importante na imprensa militar portuguesa.
Fim Anunciado
O Exército Português como muitos dos seus congéneres europeus, tem estado empenhado em muitas missões internacionais no âmbito OTAN e ONU e ainda na Cooperação Técnico Militar com as antigas províncias ultramarinas. Juntam-se a estas tarefas os exercícios OTAN e EUROFOR, dentro e fora de Portugal e, nos últimos dois anos, o envio de militares do Exército, com carácter de urgência, para países africanos onde, conjuntamente com a Marinha e a Força Aérea, tiveram a missão de repatriar cidadãos nacionais do antigo Zaire e da Guiné-Bissau. Por outro lado, o Exército encontra-se em processo de profissionalização. Isto é devido a decisões políticas já tomadas e anunciadas e que será uma realidade dentro de 3 a 5 anos. São de prever grandes dificuldades em termos de efectivos, visto que actualmente são insuficientes mesmo para as unidades consideradas prioritárias, as 3 brigadas.
A criação de um sistema de defesa costeira novo com real capacidade de dissuasão, ou em alternativa, a actualização do existente em Lisboa e Setúbal, exigirá elevados recursos, no primeiro caso ou de alguma monta no segundo. Parece pois evidente que não existe actualmente a possibilidade real de qualquer destas opções ser adoptada, tendo ainda por cima em linha de conta outros processos de modernização em curso no Exército.Sendo a defesa das zonas costeiras só possível com a perfeita integração de meios aéreos, navais e terrestres, e tendo ainda em linha de conta que as potenciais ameaças não são prováveis, seria no entanto interessante e útil a manutenção de uma capacidade terrestre mínima para a defesa da costa. Será possível?
Nota Final:
Em 10 de Dezembro de 1998 a Artilharia de Costa, mais concretamente a 6ª Bateria da “Fonte da Telha” (23,4cm), executou os últimos disparos da Artilharia de Costa em Portugal. O destino a dar às várias baterias do Regimento de Artilharia de Costa e às suas armas ainda não foi anunciado, mas sabe-se que é intenção do Exército conservar uma delas para futuro Museu da Artilharia de Costa.
Quadros:
1 – Materiais de artilharia de costa em serviço no ano de 1998 no Exército Português
Material |
Peça 15,2/47 |
Peça 23,4/47 |
Descrição |
m/44 |
m/48 |
Missão |
Defesa próxima |
Defesa intermédia |
Alcance |
24.000 jardas |
36.000 jardas |
Cadência de tiro |
4 disparos p/ minuto |
2 dpm |
Sistema de disparo |
Precursão e eléctrica |
Precursão e eléctrica |
Peso do projéctil |
45,3Kg |
173,726Kg |
Carga |
Manual |
Hidráulico |
Sector de tiro vertical |
-5º a+45º |
-5º a +35º |
Sector de tiro horizontal |
360º |
360º |
Peso total da peça |
7.600Kg |
16.600Kg |
Guarnição |
1 Chefe e 8 serventes |
1 Chefe e 10 serventes |
2 – Países europeus com artilharia de costa
País |
Materiais |
Ramo |
Bulgária |
Canhões e mísseis |
Marinha |
Chipre |
Mísseis |
Guarda Nacional |
Croácia |
Canhões e mísseis |
Marinha |
Dinamarca |
Canhões, mísseis e lanchas |
Marinha |
Espanha |
Canhões e mísseis |
Exército |
Finlândia |
Canhões e mísseis |
Exército |
Letónia |
Canhões |
Marinha |
Noruega |
Canhões, mísseis, torpedos e minas |
Marinha |
Polónia |
Canhões e mísseis |
Marinha |
Portugal |
Canhões |
Exército |
Roménia |
Canhões e infantaria de marinha |
Marinha |
Rússia |
Canhões e mísseis |
Marinha |
Suécia |
Canhões, mísseis, lanchas e infantaria de marinha |
Marinha |
Turquia |
Canhões |
Exército |
– Do conjunto dos países da OTAN não têm Artilharia de Costa: Alemanha (a República Democrática Alemã, tinha), Bélgica, Canadá, Estados Unidos da América, França, Grécia, Reino Unido, Islândia e Itália.
– De todos os países que possuem unidades especializadas na defesa da costa, a Suécia é sem dúvida a que maior atenção e recursos dedica a esta componente da salvaguarda do seu território, a qual mantém em permanente evolução quer em termos de doutrina quer da atribuição de materiais.
Miguel Machado é
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