OS FANTASMAS DO ROVUMA
Por Miguel Machado • 8 Nov , 2012 • Categoria: 08. JÁ LEMOS E... PrintNesta obra o autor lembra-nos o que foi a participação portuguesa na 1.ª guerra mundial, no Norte de Moçambique, recorrendo a documentação escrita que alguns intervenientes deixaram e a vária bibliografia à muito esquecida, através de uma bem conseguida escrita que torna o livro numa leitura aliciante.
Mas é também, muitas vezes, uma leitura dolorosa tal a quantidade de desgraças que se sucedem desde o alistamento dos militares algures no Portugal da época, à sua transferência para África em condições miseráveis, depois de passagem fugaz por uma Lisboa indiferente, até ao empenhamento operacional de um modo hoje impensável, acumulando derrotas, aqui e ali pontuadas por uma ou outra vitória, um ou outro acto heróico.
Ricardo Marques, 38 anos, jornalista de profissão, começa por nos explicar como apareceu o livro – um familiar distante havia combatido na Grande Guerra em Moçambique, o Capitão Pedro Curado (*) – quais as fontes a que recorreu para escrever uma obra sobre factos dos quais já não há testemunhas vivas, e ainda, nas suas palavras “As páginas que se seguem contam a história de uma guerra de que ninguém fala. Não se comemora, não enche páginas de jornais e, salvo raras, mas boas, excepções, é tratada em meia dúzia de linhas nos livros de História.” E realmente assim é para o cidadão comum, podendo esta obra ajudar a relembrar ao todo nacional o que foi este capítulo da nossa história.
“O livro segue o calendário da guerra e da vida do capitão Curado, que recebeu a Cruz de Guerra pelos serviços na frente africana. A primeira parte conta a história das duas primeiras expedições enviadas de Lisboa, em 1914 e 1915, as que levaram a cabo a invasão de Quionga (um território português que os alemães tinham ocupado em 1884) e que pararam na trágica tentativa de travessia do Rovuma. A seguir, acompanhando a chegada de Curado a Moçambique e o envio das duas últimas expedições, entra-se na fase mais intensa do esforço da guerra: a tomada de Nevala, a fuga de Nevala, as tragédias de Negomano e Namacurra e quase tudo o que aconteceu pelo meio.”
“Fantasmas do Rovuma” presta atenção a detalhes que habitualmente os livros de história não referem, mais preocupados os seus autores – académicos – costumam estar com as visões “macro”! Ricardo Marques, seguindo diários de militares que ali combateram, relatos esquecidos em artigos e revistas, por exemplo da instituição militar (**) ou a ela ligadas (Revista Militar e publicações da Liga dos Combatentes) e bibliografia nacional e estrangeira, transmite ao leitor com o seu modo de escrever escorreito uma dimensão humana da guerra que não é vulgar entre nós. Este é desde logo um mérito do livro.
Não deixa no entanto de nos dar uma ideia das operações – as quais aliás estão em consonância geral com o que refere por exemplo o General Ferreira Martins na sua História do Exército Português, escrita em 1945 – e dá vivacidade aos combates, à doença, à derrota, mas também aquilo que poderemos chamar a vida quotidiana do soldado português naquelas paragens e ao seu relacionamento com as populações; não foge a falar sobre o modo como nesses tempos os europeus tratavam os africanos, envolvidos para sua desgraça nesta guerra europeia.
Pareceu-nos no entanto que Ricardo Marques pouco valoriza a vitória. Pode ser deformação profissional de quem lê por ser militar, ou de quem escreve habituado que está a sublinhar os aspectos negativos dos acontecimentos, mas as derrotas e as misérias surgem-nos mais vincadas do que as vitórias. Muitos escritos da época, sem omitir as derrotas dão-nos ainda assim uma imagem mais positiva dos esforço militar português em Moçambique. Não que isto tire valor ao livro, nada disso, torna é a leitura, a espaços, algo penosa.
O livro inclui algumas fotos da época, de fraca qualidade porque certamente melhores não há, mas ainda assim interessantes para completar o relato e um mapa da região que permite acompanhar as principais operações, mas não todas porque faltam, e é pena, algumas localidades referidas nos textos.
“Fantasmas do Rovuma” é um bom livro sobre um mau momento da nossa história militar. Ricardo Marques tenta dar-nos, e julgo que em grande medida consegue, uma visão da guerra “ao nível do terreno”, aquela que raramente passa à posteridade e que depois os nossos filhos e netos nunca irão ler nos livros de história.
As derrotas são uma realidade que qualquer país, qualquer exército do mundo conhece. Os povos convivem com elas de modo diferenciados. Portugal não é excepção – quantos anos se demorou por exemplo a começar a escrever sobre a última guerra que Portugal travou em África? – mas parece realmente que em relação à 1.ª Guerra Mundial a frente europeia teve sempre um olhar diferente da frente africana como o autor refere. As razões certamente poderão ser investigadas, quem sabe?
Há sempre, é uma “fatalidade”, vários olhares sobre um acontecimento mesmo por parte de quem nele esteve envolvido. Uns mais derrotistas outros mais heróicos, exemplos não faltam no estrangeiro e em Portugal.
“Fantasmas do Rovuma” é o olhar de Ricardo Marques sobre este tema da guerra em Moçambique. Mesmo não sendo os portugueses, infelizmente, muito dados a aprender com os erros do passado – lendo-se o livro não é difícil perceber algumas razões dos fracassos – esta obra é um importante contributo para trazer à luz do dia o que foi a participação portuguesa naquela guerra e até levanta pistas muito interessantes a merecer investigação, por exemplo: será que os factos ali passados, decorridas que foram 4 décadas, nada teve a ver com o modo como os habitantes locais foram tratados?
O livro tem formato 15,5×23,5cm, 256 páginas, fotos da época a preto e branco, é uma edição da Oficina do Livro, Lisboa, Junho de 2012. ISBN: 978-989-555-961-9.
* Curiosamente fazemos referência a este militar no “Operacional” através de um artigo de Manuel Ribeiro Rodrigues.
** Mais uma vez se prova a importância da imprensa militar: daqui a uns anos onde se poderá saber o que se passou com os portugueses no Afeganistão? Só na imprensa militar e em diários pessoais!
Quer ler mais no “Operacional” sobre a 1.ª Guerra Mundial em Moçambique? Clique em:
ALGUMAS ACÇÕES DA ARMADA EM ÁFRICA – MOÇAMBIQUE
A ARTILHARIA DE MONTANHA EXPEDICIONÁRIA A MOÇAMBIQUE EM 1916
GRANDE GUERRA – 1914 A 1918 (I)
GRANDE GUERRA – 1914 A 1918 (II)
GRANDE GUERRA – 1914 A 1918 (III) UNIFORMES
GRANDE GUERRA – 1914 A 1918 (IV) UNIFORMES (II)
GRANDE GUERRA – 1914 A 1918 (V) UNIFORMES (III)
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