O CAPITÃO LUÍS GONZAGA
Por Miguel Machado • 5 Abr , 2013 • Categoria: 05. PORTUGAL EM GUERRA - SÉCULO XX PrintA participação portuguesa na Grande Guerra vista pelo nosso colaborador Manuel Ribeiro Rodrigues, continua hoje com a extraordinária história de um herói português, o Capitão Luís Gonzaga. Agraciado com a Ordem Militar da Torre e Espada do Valor Lealdade e Mérito, conquistada por actos de bravura em combate nas trincheiras de França, viria a morrer cumprindo o seu sonho: voar!
Tinha chegado a França com fama de valentia. Os rapazes com que ele haviam estudado contavam façanhas e bravuras. A sua bravura nativa era essência fundamental do seu temperamento e pela qual toda a sua curta vida nada mais foi que uma constante busca de aventura.
Quando o batalhão, por alturas de Maio entrou em Ferme du Bois, logo começou a correr a sua fama de aventura e coragem.
O apelo e o mistério da “Terra de Ninguém” era para ele uma tentação à qual não sabia ou não conseguia resistir. E, a toda a hora da noite, ele era o passeante ousado com a fúria de ver, de saber, de penetrar os segredos dessa faixa de morte. Pela manhã, de regresso, aparecia na borda do parapeito a sua face viva, o monóculo rebrilhando na órbita, o cabelo salpicado de lama. Vinha da aventura: roto, encharcado, quebrado de fome e de esgotamento. Que fora ver? Que elementos trazia? Fora colocar-se em perigo, fora salvar o prestígio e a fama que eram o alimento da sua alma insubmissa.
A fama cresce. Da retaguarda pedem façanhas a troco de galões. Gonzaga é procurado insistentemente. Uma recusa formal é a resposta da sua boca orgulhosa. E, por cada oferta e a seguir a cada recusa, o Gonzaga lança-se espontâneamente e desinteressadamente em acções ofensivas. Os soldados falam dele com espanto. De Armentiers a Bethune todas as bocas portuguesas repetem orgulhosamente o seu nome. Um dia, é ferido gravemente por uma granada de mão que explode dentro do parapeito. E, ferido, entrapado, chagado, abandona o posto de socorros e regressa à primeira linha, paisagem querida dessa alma de acção. Dentro do batalhão a companhia é um cantinho onde os mais variados temperamentos se fundem ao calor do mesmo fogo heróico.
Dos subalternos Henrique Augusto é o beirão valoroso; Alípio Oliveira é o trasmontano leal, que encara a morte com uma pachorra sorridente e tranquila. Mas Gonzaga aspira a ser superior! Nomeado agente de ligação, os mapas de arame, os boletins de informação, os relatórios do estado atmosférico, provocam-lhe gargalhadas cruéis. Como recolhia tarde da Terra de Ninguém, os mapas chegavam tarde à Brigada; e a Brigada tinha em menos conta o seu serviço. E, todavia, não saíam patrulhas que ele não guiasse, que ele não conduzisse através do emaranhado inextricável de arames farpados, de estacas, drenos e valados a caminho do parapeito inimigo…
O seu espírito bizarro tinha singularidades inesperadas. Passava do sono mais profundo, de chofre, à actividade mais viva. As vigílias da linha não o abatiam. Saía da frente e vinha escrever, em estilo futurista, cartas às madrinhas de guerra. Só os fortes podiam viver junto dele sem ataque. Ao que ocultava cuidadosamente quaisquer sentimentos afectivos que significassem prisão ou fraqueza, repelia–os violentamente nos outros: “A vida deve manter-se livre para poder ser sacrificada livremente num bom momento!” Tinha exclamações de bravura selvagem, explosões de entusiasmo, vibrantes como gritos de guerra.
Quando, um dia, os grandes homens da retaguarda descobriram que a Escola de Patrulhas devia ter como professor homens que “as tivessem feito”, o Gonzaga foi nomeado professor. Nessa nova situação visitava com frequência os «rapazes», mais bem posto, o monóculo com cordão de ouro pendendo da orelha, a bota encordoada até ao joelho, óptimas luvas, a cabeça muito erguida, irritante, quase insolente. Vinha comunicar que requerera pela décima vez para a Aviação.
Entretanto, a companhia foi nomeada para fazer um “raid”. Vieram aviadores para fotografarem a linha fronteira. Dois fortes abrigos do inimigo apareciam tentando as atenções. A artilharia combinou a acção com os infantes… O Gonzaga apareceu perfumado e risonho. Vinha reclamar um lugar na companhia!
Às 4 horas da madrugada da manhã do dia 9 de Março, a artilharia portuguesa rompia em bombardeamento furioso sobre a primeira linha alemã. Para a esquerda da estrada de La Bassée, as Seven-Sisters e a Sandy-Forench ardiam em explosões violáceas. E na frente de Ferme du Bois, a companhia do “raid” que viera de Rest-House, começava a saltar o parapeito entre os postos de Mole e o Copse estabelecendo-se para lá dos nossos arames.
Os três pelotões iam actuar em separado: Corvo no do centro, Henrique Augusto no da direita, Alípio e Gonzaga no da esquerda. Apesar do infernal bombardeamento que se direccionava para o flanco direito os alemães fronteiros presentem a saída da nossa infantaria. As suas metralhadoras disparam sem parar. Às 5 horas menos 5 minutos – um minuto a mais ou a menos pode ser o aniquilamento – a artilharia muda de objectivo «fecha a caixa» sobre a Stephane Walk e Mitzi French, isolando assim os inimigos de qualquer auxílio lançado da retaguarda.
Vindas de longe, passam as granadas pesadas de fogo de contra-bateria. Às 5 horas em ponto o pelotão do centro inicia o avanço. Os outros acompanham o seu movimento. As «concertinas» de ao pé do parapeito são cortadas rapidamente e a companhia escala o parapeito alemão.
Os homens avançados do pelotão da esquerda encontram logo pela frente uma metralhadora ligeira que os alveja. O alferes Alípio avança decidido. Logo em seu auxílio surge o Gonzaga, que se arroja para a metralhadora a que um soldado deita a mão. O «boche», vendo-se dela desapossado, atira-se à baioneta contra Gonzaga que é ferido no rosto. Num momento, este arrebata a espingarda de um dos seus homens e o duelo começa, fulminante e decisivo.
O alemão cai com uma baionetada no peito. Mas a guarnição da metralhadora tenta vingá-lo. E então o Gonzaga faz uso da sua pistola. Outro alemão tomba por terra. E segue com o Alípio para a limpeza da trincheira. Uma das granadas de mão, ao explodir, deixa gravemente ferido os dois oficiais…
Nessa manhã de regresso, aparecia na borda do parapeito um grupo de três homens, dois amparando o terceiro que, empalecido, esgotado, trazia o casaco numa pasta de sangue. Era o tenente Gonzaga que acabava de conquistar o direito de mais tarde impor a sua entrada na Aviação.
Em 27 de Outubro de 1921, aterram em Tancos, dois aviões “Caudron G III”, pilotados pelos capitães Ribeiro da Fonseca e Luís Gonzaga, inaugurando-se nessa data a Esquadrilha Mista de Treino e Depósito.
O capitão Luís Gonzaga, agraciado com o colar da Torre e Espada, Cruz de Guerra em França e que na altura era o capitão mais jovem do Exército, faleceu no dia seguinte, durante as cerimónias oficiosas da criação daquela Unidade.
E, aquele que, tendo vivido a vida da lama e do sangue, precipitou-se na tentação da Morte…
Coordenação de textos de diversos recortes de imprensa (colecção particular)da época sem identificação, por Manuel Ribeiro Rodrigues.
Originalmente publicado no blog Grande Guerra 1914 a 1918.
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