O “C” ESTÁ (quase) MORTO, VIVA O “KC”!
Por Miguel Machado • 11 Out , 2019 • Categoria: 02. OPINIÃO, EM DESTAQUE PrintEntão, o que nos trará o futuro KC-390? Para além da já concretizada capacidade nacional de projecto e construção aeronáuticas, para secções e componentes, sediada no Norte, em Alverca e em Évora, Portugal possuirá um jacto de transporte aéreo táctico e semi-estratégico capaz de dar resposta às solicitações militares e governamentais da mais variada ordem, como o veterano C-130 tem feito até hoje, com brilho. José Cardoso Mira volta a escrever no Operacional, agora o assunto é o “KC”, aborda vários aspectos técnicos que raramente vemos tratados publicamente com este rigor. Sem truques.
Ao iniciarmos o presente artigo, em estilo algo descontraído e motivado pela assinatura de recente contrato luso-brasileiro, desde já referimos que, apesar de no passado termos trabalhado com a frota C-130 Hercules da FAP, chefiando a área de manutenção responsável pelas diversas configurações do compartimento de carga dos aviões (o que nos garantiu alguns cabelos brancos…) e também pelo sistema de combate a incêndios florestais MAFFS, nada nos liga ao programa actualmente em curso relativo ao avião KC-390.
Nada, ou quase nada, já que participámos na (cremos) primeiríssima reunião ocorrida em Portugal em que se mencionou aquela aeronave, ocorrida há cerca de 10 anos no Ministério da Defesa, e na qual estiveram presentes, além de representantes portugueses da FAP e do Ministério, uma delegação brasileira constituída por um oficial-general da FAB e um alto quadro da Embraer.
Na ocasião, ficou imediatamente esclarecido o grande ponto de discussão “filosófica” sobre a motorização de aviões de transporte militar: turbohélices ou reactores? Se os nossos aliados americanos acharam por bem motorizar os seus C-17 com turbofans, já os nossos euro-parceiros não dispensaram quatro (enormes) turboprops nos A400M. Os prós e contras são conhecidos, não vamos aqui insistir, embora sejam esses aspectos que constituem o centro da polémica comercial entre os fabricantes do “estilo antigo” (turboprops) e das “novas tecnologias” (jactos).
Quanto ao KC-390, então apenas um paper airplane, o referido oficial-general da FAB pôs a questão em “pratos limpos” dizendo algo como: “no Brasil, demoramos cinco horas de voo entre Florianópolis e Recife” (se bem recordamos as cidades) “logo o avião só poderia ser um jacto”. Foi uma oportuna recordatória que o Brasil é um país “um bocado grande”…
Então, jacto ficou, embora aqui Portugal teve um pouco de “azar”: a Embraer, por razões com certeza justificadas, seleccionou uma versão do reactor IAE V2500 para o seu avião, sendo este motor o concorrente dos CFM56 na linha A320 clássica. Ora o CFM56 é muito bem conhecido em Portugal, dado que várias dezenas de A320 (e não só) nacionais os empregam, ao contrário do V2500 (só nos lembramos de um ou dois A320 de registo CS- equipados com esse motor). Mas será assunto para as competentes áreas técnicas nacionais ultrapassarem.
Já agora, a configuração geral apresentada pelo KC-390 não é novidade: há já várias décadas que existe no Japão um avião de transporte militar de asa alta e birreactor, o Kawasaki C-1, por sinal agora em fase de substituição por um sucessor parecido e maior, o (muito logicamente) Kawasaki C-2. Se alguém achar que este poderá ser um concorrente do KC-390 não andará longe da verdade, embora as históricas auto-restrições japonesas de exportação de material militar não lhe tornem a vida fácil.
Então, o que nos trará o futuro KC-390? Para além da já concretizada capacidade nacional de projecto e construção aeronáuticas, para secções e componentes, sediada no Norte, em Alverca e em Évora, Portugal possuirá um jacto de transporte aéreo táctico e semi-estratégico (dizemos semi-, porque o payload-range, por definição de projecto, não será o mesmo da classe dos citados C-17 e A400M) capaz de dar resposta às solicitações militares e governamentais da mais variada ordem, como o veterano C-130 tem feito até hoje, com brilho. Sobretudo, será mais user–friendly, podendo o pessoal transportado estar em “estado útil” para empenhamento imediato à chegada de um voo de várias horas, o que não é provável no velho “C” (só quem nunca voou nele é que o poderá achar confortável; aliás, não resistimos a contar o que vimos há tempos na TV, quando uma repórter já no terreno (africano) entrevistou um comandante de força militar logo à saída da porta do “C”, após n horas de voo, com o militar ainda a conseguir articular três ou quatro frases com sentido apesar dos “giroscópios” provavelmente não estarem on speed… E do alto das nossas 2 ou 3 horas de voo como passageiro do modernizado C-130J podemos afirmar que este não é muito melhor…).
A largada de pára-quedistas já foi realizada no Brasil, e foi também testado o acesso de vários tipos de veículos, sendo obviamente altamente desejável que a viatura Pandur (pelo menos nalgumas versões) possa ser transportada. Pela massa assim poderá ser, mas não temos dados sobre os aspectos dimensionais.
No campo da largada de cargas em voo, por exemplo pelo CDS (este é um site apartidário, trata-se do Container Delivery System…) tal está previsto no projecto do avião, e até mesmo o mais espectacular LAPES (Low Altitude Parachute Extraction System), uma invenção americana para os C-130 no Vietname e que se fez em Portugal durante anos, poderá ser executado.
Outra capacidade potencial será a de reabastecimento de combustível no ar, pelo sistema probe and drogue, como fornecedor e receptor. Se, no imediato, não será possível reabastecer F-16 (utilizadores do sistema flying boom) já eventuais futuras aeronaves, adequadamente equipados e após devida certificação, ou mesmo outros KC-390 (procedimento de buddy refuelling) poderão estar na lista dos consumidores.
Uma hipótese alvitrada publicamente, e incluída no marketing do avião, põe-nos algumas dúvidas. O combate a incêndios florestais com grandes e médias aeronaves é do piorzinho que se pode fazer em termos estruturais. A aplicação de ciclos repetidos de cargas, devido às manobras efectuadas, esforça bastante a estrutura, potencialmente reduzindo a vida útil total dos aviões. Sim, sabemos que é possível aplicar programas de fatigue management e realizar a correspondente manutenção, mas não parece apresentar o melhor custo-eficácia o usar-se multi-million dollar airplanes, cheios de aviónicos avançados, nestas missões onde (para além de ser inútil a maior parte deles) podem ser usados produtos retardantes do fogo que poderão interagir menos bem com estrutura e sistemas. Note-se que os 747, DC-10 e C-130 usados nos EUA, são idosos e estão mais que amortizados e/ou são especificamente preparados (“aliviados”) para aquelas missões (outro parêntesis: os voos de combate a incêndios são efectivamente “puxados” e há que tirar o chapéu a quem os faz – ou como dizia um excelentíssimo piloto de C-130/MAFFS do passado “a estes voos só vou com Guia de Marcha”…).
Falando de aviónicos, a imprensa especializada internacional (Flight) diz-nos que a firma fornecedora e entidades portuguesas chegaram a acordo para a transacção de (e transcrevemos) “radar and laser warning systems, an infrared (IR) missile warning system, a countermeasures dispensing system, DIRCM (Direction IR countermeasures) and an active electronic countermeasures system”. Portanto, a chamada auto-protecção ficará entregue a um fornecedor de longa data, desde que o seu sistema SPS-1000 se tornou substituto do avisador-radar americano inicial dos A-7 portugueses. Os aviónicos básicos para voo são os Pro Line Fusion Avionics System de fornecedor americano.
Recorremos ainda à mais que centenária Flight (a publicação de aviação mais antiga do Mundo) para dizer que o KC-390 deverá voar, em cruzeiro, a 470 nós true air speed (cerca de 870 km/h) e a uma altitude de 36 000 pés, cerca de 11 km, performance de um jacto comercial actual (a razão porque a maior parte da aviação mundial (não toda) ainda usa unidades de medida “esquisitas” dá um artigo em si mesma, envolvendo regulamentação, ciência, relações internacionais e poder económico relativo, mas ficará para outra altura).
Um aspecto que traz sempre alguma discussão na introdução de um novo avião de transporte militar diz respeito à constituição da sua tripulação: sim, os dois pilotos estão garantidos (por enquanto…a nossa “bola de cristal” diz-nos que para voos “de A para B” apenas um será necessário na Aviação futura, para back–up, porque os voos serão automáticos) mas é expectável que (recordamos que não temos informação oficial) o mecânico de voo desapareça e o navegador só seja necessário nalgumas missões, mantendo-se o chamado operador de carga (loadmaster) porque a ideia é transportar pessoas e coisas no compartimento respectivo. Nada de novo, é o que se faz nos C-17 e C-130J por aí (se não estamos em erro, os Falcon 20 foram os primeiros aviões de transporte da FAP a não incluir a posição de mecânico de voo, o que não foi isento de discussão, em tempos),
Atrás aludimos à questão das capacidades nacionais de projecto e construção aeronáuticas, para secções e componentes, as quais sem dúvida beneficiaram do intercâmbio de conhecimentos e tecnologias entre Brasil e Portugal, processo aliás semelhante ao que o Brasil está levando a cabo com a Suécia no respeitante a caças de alta performance. Se a indústria brasileira é perita em jactos de transporte, conhecimento que “flui” para Portugal, já aquela indústria recebe idêntico “fluxo” sueco, em resultado da aquisição e produção brasileiras de 36 caças Gripen E (F-39 no Brasil). As transferências de tecnologias processam-se assim num fenómeno de “cascata”, os quais encerram no entanto diversas variáveis militares, políticas, diplomáticas, comerciais e industriais, sendo sujeitas a apertado controlo nos países desenvolvidos (parte do chamado “controlo de exportações”).
Finalizando, sublinhamos que o que atrás fica subentendido relativamente ao elevado nível de ruído e vibração do C-130, apesar de todos os synchronizing e synchrophasing das hélices, não impede, nem por sombras, que este avião já esteja, há muitos anos, na história da Aviação Mundial e vá ficar também na história da Aviação Portuguesa, tendo a frota atingido, no dia 10 de Setembro de 2019, a marca de 80 000 horas de voo na FAP. Está em curso uma actualização de aviónicos dos Hercules para os adequar às (já não muito) novas regras de circulação aérea.
Quanto ao sucessor KC-390, agora que entrou em serviço operacional no Brasil, resta-nos aguardar pela primeira entrega à FAP em Fevereiro de 2023 e pelas subsequentes chegadas a um por ano até Fevereiro de 2027, bem como pela concretização, se a encomenda for realmente feita, das entregas de seis destes aviões à empresa portuguesa SkyTech.
Nota: Editado em 12OUT2019 na parte respeitante ao reabastecimento em voo.
Leia no Operacional sobre o projecto KC-390:
O PROGRAMA KC-390 VISTO DESDE O BRASIL
MAIS UM PASSO EM DIREÇÃO AO KC-390
KC-390: A NOVA APOSTA DA EMBRAER
Leia no Operacional outro artigo do mesmo autor: AS COMPLEXAS ESCOLHAS NO “PROCUREMENT” AEROMILITAR
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