NA BÓSNIA E HERZEGOVINA 22 ANOS DEPOIS
Por Miguel Machado • 10 Jun , 2018 • Categoria: 13. MEMÓRIA DAS MISSÕES DE PAZ, EM DESTAQUE PrintOs anos passam rápido, as memórias marcantes permanecem. O regresso àquilo que foi o Teatro de Operações da Bósnia esteve e está na mente de muitos. Passados 22 anos da primeira missão expedicionária na Europa para as Forças Armadas Portuguesas desde 1917, um pequeno grupo de veteranos dessa força na IFOR/NATO em 1996 regressou à Bósnia e Herzegovina. Aqui ficam o relato e as imagens desta experiência que teve o seu ponto alto na homenagem aos 5 pára-quedistas que ali morreram ao serviço de Portugal.
A ideia de organizar uma viagem à Bósnia e Herzegovina, país onde alguns milhares portugueses serviram durante duas décadas – em rigor desde 1991 até 2012 – sempre foi motivo de conversa nos nossos encontros de antigos militares, sobretudo pára-quedistas, talvez porque fomos os que em maior número ali servimos, ou porque sofremos as duras condições da primeira missão IFOR (Implementation Force da NATO que ali actuou entre Dez 1995 e Dez 1996), ou porque o espírito de corpo é mais alimentado pelos encontros anuais e, certamente também porque 5 boinas verdes ali morreram e não os esquecemos!
O esforço de Portugal na Bósnia foi enorme, e disso agora, olhando para a actualidade das nossas missões expedicionárias, mais noção se tem. Sendo certo que não foram só militares das Forças Armadas a rumar aos Balcãs – elementos da Policia de Segurança Pública, diplomatas, funcionários de vários departamentos governamentais, elementos dos serviços de informações, jornalistas, militares da Guarda Nacional Republicana, cineastas, académicos, um ou outro empresário – os militares do Exército, mas também da Força Aérea e Marinha, constituíram a esmagadora maioria dos portugueses que passaram pela Bósnia.
Note-se que este “destacamento” não teve a pretensão de vencer qualquer concurso! Antes de nós, bem sabemos que vários outros militares ou antigos militares que ali serviram, sozinhos ou com as suas famílias e amigos ali têm passado. Alguns têm também homenageado em Doboj os nossos mortos, e parte destes veteranos – como aliás no nosso grupo – nem nunca ali tinham estado, deslocaram-se propositadamente a Doboj com esse propósito. Este artigo é o relato desta viagem, permitindo a quem ali não foi “voltar ao teatro de operações” através da imagem e de algum texto. Contar esta história pode ajudar alguns outros, quem sabe!? É só isto, nada mais.
Destacamento
As redes sociais e o www.operacional.pt permitiram a divulgação desta iniciativa. Há cerca de um ano, em 23 de Maio de 2017, numa deslocação a Doboj para cerimónia oficial no Monumento que recorda os mortos portugueses na Bósnia, percebeu-se que as autoridades locais estavam receptivas em acolher/apoiar na medida do possível, uma visita deste género, uma homenagem na sua cidade.
Recorda-se que o Monumento é propriedade da cidade de Doboj – foi-lhe oferecido em 2007 sem no entanto ficar definido como seria a sua manutenção – e que, finalmente em 2016, depois de um longo e complexo processo, no Regimento de Paraquedistas em Tancos, se assinou um protocolo de cooperação entre a Cidade de Doboj e Liga dos Combatentes de Portugal para a manutenção do monumento. Este ano com o apoio da autarquia este grupo transportou e colocou no Momento um brasão em bronze da Liga.
Com “luz verde” de Doboj iniciou-se o planeamento de uma viagem que incluísse todos ou a maioria dos locais onde as tropas portuguesas entre 1996 e 2012 tivessem tido quartéis. Elaborado o programa foi contactada uma agência de viagens – a Inalva, Ldª – que com o nosso apoio e de três pessoas na Bósnia, a Daniela Knezevic-Kapetina (Sarajevo), o Rado Đurđević e a Sanja Valentim (Doboj), levou a bom termo o trabalho nem sempre fácil de elaborar um programa que fugia aos circuitos habituais, em locais onde o turismo ainda não chegou.
Feita a divulgação receberam-se cerca de 200 pedidos de informação por e-mail, todos respondidos, e ainda em 2017, inscreveram-se efectivamente 12 pessoas para a viagem. A distância de muitos meses a que foi necessário proceder à inscrição e o valor total que cada um teria que gastar em 5 dias – cerca de 1.000€, terá levado a que não houvesse mais inscrições. Ainda assim, mais tarde, 4 veteranos em circunstâncias diferentes saíram de Portugal e puderam juntar-se ao grupo nas actividades mais significativas. Um outro saiu da Suíça e foi lá ter e, infelizmente, dois portugueses que vivem na Bósnia – um em Doboj e outro em Trebinje, o dono do restaurante Portugalo – por imponderáveis de última hora não puderam estar presentes. Um jornalista da Radio Renascença, José Pedro Frazão, teve conhecimento desta iniciativa e pediu para se juntar ao grupo o que aconteceu. Ainda lá ficou depois do nosso regresso!
O “destacamento” ficou assim composto por um grupo inicial:
AQUILINO RODRIGUES; AUGUSTO BARROS; AUGUSTO PINHEIRO; FERNANDA BARROS; JOÃO CARDOSO; JOÃO FERREIRA; JOÃO LOPES; JOSÉ FELIX; JOSÉ FRAZÃO (jornalista RR); MIGUEL MACHADO; PAULO CONCEIÇÃO; RICARDO FERREIRA (vive em Espanha); RUI ALMEIDA (vive Reino Unido)
Juntaram-se ao grupo inicial idos de Portugal:
ALBERTO SILVA; ANTÓNIO SIMÃO; RUI SOARES; VÍTOR LEITE
Juntaram-se em Doboj para a homenagem idos da Suíça:
PEDRO VALENTIM; SANJA VALENTIM
Itinerário
Saídos de Portugal a 31 de Maio em direcção a Sarajevo, com escala em Munique, já fomos almoçar na capital Bósnia. Sem qualquer problema na chegada ao Aeroporto Internacional de Sarajevo, formalismos rápidos. Almoço de Ćevapčići num pequeno restaurante em Dobrinja, bem perto do aeroporto, deu-nos a primeira imagem da cidade de onde a maioria tinha regressado a Portugal há mais de 20 anos. Calor, esplanadas cheias, lojas abertas, mercados de rua bem abastecidos, algumas, poucas, marcas da guerra ainda visíveis. O mini-bus e o competente condutor da Easy Rent seguiu depois até ao centro de cidade – cada um ía identificando/relembrando edifícios, esquinas que reconhecia e não raras vezes um ou outro levantava a voz de admiração quer pelas novidades que são bastantes, ou pelo contrário pelas marcas que desde 1996 (e antes bem entendido) ainda permanecem em alguns locais.
Passamos a “Biblioteca” e fazemos agora em viatura com ar-condicionado e wi-fi a estrada que tantas vezes estes antigos militares fizeram. Com a neve e o gelo do início 1996 ou o calor abrasador desse verão, escoltando colunas de ajuda humanitária para Gorazde. Começa uma chuva torrencial, alguns acidentes pelo caminho – nada connosco que o condutor é competente! – as boas-vindas da Bósnia profunda num itinerário com bom piso mas o mesmo traçado, difícil!
Chegamos a Rogatica e o Hotel Park lá está à nossa espera, as fotos falam por si, não vale a pena explicar! Alguma peripécias com os quartos e a língua, mas nada que nos detenha! Cada um procura pela cidade as suas memórias, as recordações e acabamos todos na novel esplanada – onde estava a enfermaria em 1996 – a beber umas cervejas, uma das rodadas pagas pelo dono do Hotel!
Dia 1 de Junho saímos cedo para ver parte do “sector português” em 1996. Sim, parte, para o calcorrear todo teríamos que ali permanecer mais dias e hoje temos apenas até à hora do almoço! Kukavici, Ustipraca, Kopaci, Vitkovici, Gorazde. Fotos e mais fotos, directos no facebook, um aperto no coração aqui e ali. Procuramos lugares, diferenças, algum despojo, na realidade parecemos crianças num qualquer jogo infantil e não sei bem se os habitantes locais não nos acharam um pouco loucos.
De volta a Rogatica, almoçamos e seguimos para Sarajevo e Doboj, onde chegamos ao final do dia. Entre Sarajevo e Zenica uma boa auto-estrada está a funcionar e não deve faltar muito para que chegue mesmo a Doboj. A presença policial nas estradas nacionais é frequente assim como o controlo de velocidade com radar. Chegados ao Norte da Bósnia, somos surpreendidos com uma tremenda festa de finalistas no Hotel Park de Doboj – sim tem o mesmo nome do de Rogatica – e todo o jantar é passado ao som de música local e internacional, uma animação!
Antes do recolher, uma passagem pelo Monumento ali no Parque dos Heróis Nacionais (da resistência ao invasor alemão nos anos 40), junto à Câmara Municipal.
Dia 2 de Junho, sábado, a cerimónia há hora exacta, com todos os portugueses que se propuseram visitar a Bósnia nesta altura, programas diferentes, este ponto em comum, a Homenagem aos camaradas mortos ao serviço de Portugal.
Foi um momento de elevado simbolismo, intenso, que calou fundo em quem esteve presente. Aqui fica o texto lido pelo tenente-coronel (reforma) Miguel Silva Machado e traduzido no local para bósnio pela Sanja Valentim.
Exm.º Senhor Milos Bukejlovic, Vice-Presidente da Assembleia Municipal de Doboj, representante do Presidente da Câmara Municipal de Doboj, senhor Obren Petrović, muito agradecemos a sua presença.
Minhas senhoras e meus senhores,
Este grupo de veteranos das missões militares portuguesas na Bósnia e Herzegovina, a esmagadora maioria chegámos na força inicial em Janeiro de 1996, estamos aqui porque há muito desejávamos voltar a ver, regressar a este país que nos marcou.
Chegamos com o fim da guerra que tanta morte e destruição causaram, tivemos uma pequena amostra do muito que estes povos sofreram, demos o nosso melhor para que a situação normalizasse.
Saímos com a satisfação do dever cumprido mas alguma parte de nós aqui ficou. Fomos e somos bem recebidos, criamos amigos, alguns família, apesar da distância e da vida de cada um, tínhamos que regressar. Esta viagem estava pensada há muito, era desejada há muito, hoje está a ser cumprida.
Os 5 militares pára-quedistas que agora homenageamos eram nossos camaradas e estão sempre na nossa mente quando pensamos na Bósnia. Para eles foi uma viagem sem regresso, um drama para as Famílias, ainda hoje e para todo o sempre profundamente marcadas por estes acontecimentos. Por isso aqui estamos também, para honrar a sua memória.
Aqui entre nós estão dois militares que ficaram gravemente feridos em 1996, mas também quiseram regressar e para ambos já não é a primeira vez. Para eles, como para todos os que na Bósnia ficaram feridos, o nosso respeito e admiração.
A Câmara Municipal de Doboj e a Liga dos Combatentes de Portugal cuidam deste monumento – o qual desde agora também ostenta o brasão desta associação de combatentes portuguesa – e assim se garante que o sangue dos portugueses derramado na Bósnia e Herzegovina nunca seja esquecido:
24Jan1996 – Primeiro-Cabo Pára-quedista Alcino José Lázaro Mouta! Presente!
24Jan1996 – Primeiro-Cabo Pára-quedista Rui Manuel Reis Tavares! Presente!
06Out1996 – Primeiro-Cabo Pára-quedista José Ressurreição Barradas! Presente!
06Out1996 – Soldado Pára-quedista Ricardo Manuel Borges Souto! Presente!
16Jul2004 – Soldado Pára-quedista Ricardo Manuel Pombo Valério! Presente!
O que somos? Amigos!
O que queremos? Alvorada!
O que amamos? O Perigo!
O que tememos? Nada!
Em Posição…Já!
Seguiu-se o almoço e a viagem para Sarajevo, porta de entrada e/ou saída para a generalidade dos militares portugueses que serviram na Bósnia e Herzegovina e também par este “destacamento”.
Dia 3 de Junho, manhã livre pela cidade, muita actividade comercial, trânsito intenso, edifícios novos e/ou a maioria já reparados, marcas da guerra aqui e ali, turistas asiáticos facilmente identificados pela cidade e outros mais discretos também. O turismo está claramente em expansão, no centro da cidade, hotéis, hostels, alojamento local, estão em todas as ruas, restaurantes, cafés, esplanadas animadas. Na parte da tarde tempo para alguns dos pioneiros dos primeiros dias de Bósnia em 1996 irem até Vogošća matar saudades do “Hotel Biokovo” e da “Volkswagen”, muitos prédios novos quer de habitação quer empresas pelo caminho. O bairro agora é maioritariamente muçulmano, a elevação onde pontificava um monumento à resistência aos invasores alemães, partilha agora o espaço com uma enorme mesquita. Ali ao lado o campo desportivo que em 1996 serviu de parque de estacionamento para os blindados italianos e fez as delícias de alguns portugueses – loucos do DAS! – que ali jogaram as primeiras partidas de futebol, a nevar, na Bósnia. O Biokovo parece estar a preparar-se para obras, mas 22 anos depois, está ainda assombrosamente igual ao primeiro momento em que o vimos! Ainda em Vogošća paragem na antiga “Volkswagen” agora “Mercedes” onde o DAS se manteve desde o inicio da missão até rumar a “Tito Barracks” no centro de Sarajevo. As mudanças são enormes, só com alguma paciência se conseguem identificar ténues sinais das antigas instalações militares.
Regresso com passagem pelo antigo comando da Brigada Multinacional Sarajevo-Norte de comando italiano – a semi-destruída maternidade de Zetra junto ao Estádio Olímpico – hoje totalmente reconstruída e a funcionar.
Tempo ainda para experimentar uma novidade, inaugurado recentemente, o teleférico “Trebevićka žičara” que nos dá uma boa panorâmica da cidade.
Na última noite a despedida da Baščaršija, a constatação que apesar da vida nocturna não diferir muito de outras capitais do leste europeu, a presença muçulmana não sendo nem de longe maioritária no vestir, é crescente. A influência da Turquia e de alguns países árabes é publicitada em edifícios religiosos e outros. Veremos entre a Europa da União e estes investidores do Oriente, qual o caminho que a Bósnia escolhe, ou qual o caminho que vai seguir?
Dia 4 de Junho, o regresso pela mesma via a Portugal, a despedida do aeroporto de Sarajevo para muitos um símbolo da missão na Bósnia, um dos locais mais martirizados pela guerra mas também a sua principal porta para o mundo.
Termino este relato com palavras que não são minhas, mas pareceram-me as adequadas. São do João Ferreira, pára-quedista que aqui esteve em 1996 e 1997 e que agora conduz um carro pesado pelas estradas da Europa.
Agora tenho outra forma de recordar este país. Fiquei com a sensação de que substitui as recordações menos boas por positivas, mas na realidade, as recordações antigas não se vão esquecer nem apagar… Ficaram mais bem organizadas dentro da minha memória e melhor enquadradas com aquilo que procurava e vivi durante estes dias!
No entanto, há recordações que não se apagaram passe o tempo que passar, como o emotivo momento da homenagem aos Camaradas Boinas Verdes que nunca mais voltaram…(Sarajevo, 04JUN2018)
Foto-reportagem
A reportagem fotográfica que se segue procurou seguir o itinerário desta visita de 2018 e juntar às fotos actuais imagens captadas em 1996 – em várias alturas do primeiro semestre – muitas são mesmo dos dias iniciais, mostrando o estado em que estavam algumas instalações que o contingente português veio a ocupar. Uma vezes é evidente a mesma localização, outras não parece…mas não haverá grandes desfasamentos!
A Bósnia mudou muito desde que a conhecemos em 1996 e ainda bem! Entre Ocidente e Oriente as opções da Bósnia não parecem fáceis. Algum desenvolvimento vai chegando mas a entrada na União Europeia é uma incógnita e a influência dos países islâmicos é crescente. Só podemos fazer votos para que se mantenha um “Encontro de culturas entre Oriente e Ocidente”, frase cravada no solo da rua Sarači na Baščaršija e seja realmente um ponto de encontro de paz, convivência e tolerância.
Reportagem da Rádio Renascença na cerimónia em Doboj: Honra e emoção. Veteranos portugueses homenageiam militares mortos na Bósnia
Noticia no Diário de Notícias sobre a cerimónia de Doboj: Paraquedistas regressaram à Bósnia 22 anos após primeira missão
Sobre este assunto do Monumento em Doboj, leia também no Operacional:
22JAN2012 – OPERAÇÃO “NÃO OS ESQUECEMOS!”
24JAN2012 – REGRESSO A SARAJEVO
24MAI2014 – NÃO DESISTIMOS DA LUTA PELA MEMÓRIA DOS PÁRAS MORTOS NA BÓSNIA!
12ABR2015 – MONUMENTO EM DOBOJ/BÓSNIA: A CAMINHO DA SOLUÇÃO?
25ABR2015 – MONUMENTO EM DOBOJ, PASSAGEM DO TESTEMUNHO
18OUT2016 – MONUMENTO EM DOBOJ: NOVO CICLO NAS RELAÇÕES PORTUGAL – BÓSNIA E HERZEGOVINA
21JAN2017 – HOMENAGEM AOS PARAQUEDISTAS FALECIDOS NA BÓSNIA
31MAI2017 – PORTUGAL E OS PÁRA-QUEDISTAS MORTOS NA BÓSNIA HOMENAGEADOS EM DOBOJ
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