MOÇAMBIQUE: CAPITÃO-DE-FRAGATA MÉDICA NAVAL FILIPA SOARES ALBERGARIA FALA AO OPERACIONAL
Por Miguel Machado • 24 Set , 2019 • Categoria: 02. OPINIÃO, EM DESTAQUE PrintEntrevistamos Filipa Soares Albergaria, Capitão-de-fragata Médica Naval da Marinha Portuguesa, que acaba de regressar de Moçambique, onde participou na missão ‘Embondeiro por Moçambique’, da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) e dos Médicos do Mundo (MdM), em apoio às vítimas do ciclone Idai.
Filipa Albergaria já é conhecida dos nossos leitores, aqui publicou em 2016 o artigo EFEITOS FISIOPATOLÓGICOS DAS MISSÕES “SOGA”, e no mesmo ano, no decurso da reportagem NRP FIGUEIRA DA FOZ, RUMA AO MEDITERRÂNEO CENTRAL, publicamos uma curta entrevista com a então Capitão-tenente que se preparava para uns meses de missão embarcada neste Navio Patrulha Oceânico. Agora no seu regresso de Moçambique pedimos a Filipa Albergaria para nos falar desta invulgar missão para um médico naval, com a finalidade de dar a conhecer aos nossos leitores mais uma área de actividade em que, quando necessário, as Forças Armadas também actuam.
Como se verá na entrevista, mas para ficar ainda mais claro, esta missão não esteve ligada ao APOIO MILITAR DE EMERGÊNCIA A MOÇAMBIQUE
Operacional: O que foi esta missão e como se viu nela envolvida?
Capitão-de-fragata Médica Naval Filipa Soares Albergaria: No dia 14 de Março, o furacão Idai atingiu violentamente a cidade da Beira, no norte de Moçambique, provocando centenas de mortos e feridos decorrentes sobretudo das cheias e da destruição de edifícios (estima-se que cerca de 3000 pessoas tenham perdido a sua casa). Os militares portugueses, entre eles os fuzileiros, foram integrados nas primeiras intervenções de ajuda humanitária à catástrofe mas o apoio medico-sanitário não foi solicitado à Marinha. Entretanto, a Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) e os Médicos do Mundo (MdM) deram início à Operação ‘Embondeiro por Moçambique’ a 25 de Março, e eu pedi autorização à Marinha para me voluntariar, tendo-se decidido, com o coordenador nacional da CVP, que o período mais oportuno seria o último mês da missão, entre 9 de Julho e 9 de agosto.
Operacional: Esta missão decorreu das suas funções na Marinha e esteve em Moçambique como médica da Marinha?
CFR Filipa Albergaria: Não, infelizmente. Bem, creio que o facto de a chefe de missão – a chefe de missão foi outra oficial de Marinha, a Capitão-tenente de Administração Naval, Lara Martins, actualmente a exercer as funções de Vice-Presidente da CVP – saber que eu tinha experiência operacional internacional, ajudou a que o convite da CVP viesse ao encontro da minha vontade de me voluntariar. No que diz respeito à Marinha, tenho a agradecer à minha chefia directa o facto de conhecerem e respeitarem o meu gosto pelas missões humanitárias e aceitarem, na medida do possível, a continuidade da minha participação em missões ‘no terreno’ e me terem ‘emprestado’ a uma ONG.
Operacional: Foi substituir alguém numa estrutura já a funcionar ou desempenhar uma nova função?
CFR Filipa Albergaria: O objectivo inicialmente definido para a minha participação na missão, era continuar o apoio em Ginecologia e Obstetrícia (GO), em geral, dando formação em ecografia obstétrica e ginecológica à equipa da maternidade do Centro de Saúde Urbano (CSU) de Macurungo (um dos bairros da cidade da Beira), em particular. Na realidade, acabei por render a Coordenadora Clínica da equipa FOXTROT assumindo as funções perante a equipa GOLF, sétima e última equipa da ‘fase clínica’ da missão. Nesse contexto, coube-me organizar e integrar um programa de formação de voluntários da Cruz Vermelha de Moçambique e ainda a preparação de Sessões Comunitárias de Educação para a Saúde, entre outras funções… nesse aspecto também se assemelha ao que acontece nas Forças Armadas, somos nomeados para uma função mas acabamos a fazer mil!
Operacional: Explique-nos como é o “hospital de campanha” onde trabalhou?
CFR Filipa Albergaria: O CSU de Macurungo é semelhante a um Centro de Saúde português, no que diz respeito às valências que tem: Consulta de Pediatria, de Adolescentes, de Obstetrícia, de Planeamento Familiar, Clínica Geral, Pequena Cirurgia e Psicologia. No caso de Macurungo, existe ainda uma Maternidade e um Posto de Socorro aberto 24h, todos os dias.
Com o ciclone, a quase totalidade dos edifícios que o compõem ficou sem telhado e com paredes danificadas, tornando-se perigoso trabalhar no seu interior. Assim, a CVP com os MdM, os Médicos sem Fronteiras e a UNICEF colocaram várias tendas no espaço em volta e a actividade clínica foi transferida para lá.
Convém talvez referir que a grande diferença é que no CSU de Macurungo só existem 3 médicos (2 médicas actualmente em licença de maternidade e um médico em licença de casamento) pelo que todas as consultas, rastreios, pensos e restantes ‘actos médicos e de enfermagem’ são feitos por enfermeiras, técnicas de saúde, alunos de enfermagem e voluntários.
Durante o tempo da missão Embondeiro, o objectivo nunca foi alterar o normal funcionamento do CSU (por muito que isso tenha obrigado a uma grande flexibilidade mental e respeito pelas diferenças de ambas as partes) mas sim, ajudar a dar resposta à crise nas fases iniciais pós-catástrofe imediata e, mais tarde, apoiar a actividade clínica nas novas condições (tendas e edifícios adaptados) e dar formação nas áreas para as quais a nossa ajuda fosse solicitada, além de deixar alguns ‘formadores’ capacitados para Educação em Saúde Comunitária.
As equipas de voluntários que foram passando por Moçambique tiveram composições muito diferentes. Todas contaram com a participação de médicos e enfermeiros (embora de especialidades variadas: GO, Ortopedia, Anestesia, Pediatria, Medicina Geral e Familiar) e também farmacêuticos. Nalgumas houve Assistentes Sociais, noutras Psicólogos, pessoal da Logística, tesoureiros… enfim, em comum todos voluntários e todos com vontade de ajudar.
Operacional: Em que zona de Moçambique actuou e durante quanto tempo?
CFR Filipa Albergaria: A ONU é quem define as áreas de actuação de cada uma das ONG no terreno. No caso da CVP/MdM foi o CSU Macurungo que passou a ser apoiado clinicamente, entre 25 de Março e 9 de Agosto, tendo a missão Embondeiro por Moçambique incluído também o apoio à reconstrução e alargamento do edifício, nomeadamente ampliação da Maternidade, construção dum muro limítrofe e dum edifício dedicado ao serviço de urgência.
Pelo que me foi dito, no briefing pré-missão na CVP, a missão inicial era apenas de apoio às vítimas através da disponibilização do hospital de campanha e das equipas de voluntários porém, e perante a enorme generosidade dos portugueses, os donativos excederam os 2,5 milhões de euros, tendo por isso a CVP decidido também apoiar as obras.
Operacional: Qual foi a situação geral da região que encontrou cerca de 4 meses depois do Furação ter atingido Moçambique (Março de 2019)?
CFR Filipa Albergaria: Essa é uma pergunta interessante porque, de facto, muitos dos voluntários que integraram as últimas equipas esperavam ainda encontrar vítimas da catástrofe mas afinal, e como é natural, na cidade (incluindo os edifícios do nosso CSU) havia ainda muitas marcas do ciclone mas o ‘funcionamento’ já tinha regressado ao normal. O normal de Moçambique, claro!
Nesta última fase, de capacitação e ‘hand-over’, os objectivos são muito mais a preparação de pessoas (profissionais de saúde, logísticos, voluntários da CVM) que continuem o ‘nosso’ trabalho e a organização dos materiais e equipamentos para doar ou para retornar a Portugal.
Uma das dificuldades, com os voluntários menos experientes, foi precisamente a gestão desta expectativa: numa primeira fase existiam de facto muitas vítimas com traumatismos directos relacionados com o Idai (muitos cortes provocados pelas chapas de zinco que voaram e se espalharam por todo o lado, misturando-se com a lama e a água das cheias) no entanto, na fase em que eu fui, meses volvidos sobre a catástrofe, as vítimas ‘físicas’ já estava em recuperação e o CSU funcionava com as patologias comuns (malária, cólera, infecções respiratórias, hipertensão, diabetes, gravidez…)
Operacional: Tiveram contactos com médicos ou pessoal de apoio de outras nacionalidades?
CFR Filipa Albergaria: Como disse, a ONU atribuía a cada uma das entidades presentes uma instituição específica para apoiar, no nosso caso o CSU de Macurungo. Desta forma, fomos nós os únicos ‘expatriados’ a manter uma actividade diária contínua naquele Centro. Não obstante, outras organizações surgiram e colaboraram connosco no terreno: os Médicos com África emprestaram uma ambulância ao CSU durante os 4 meses em que lá estivemos, a Pathfinder desenvolveu, durante uma semana, um programa de Planeamento Familiar com implantes de progesterona (divulgação às utentes e formação das Técnicas de Saúde na sua correta colocação) e a própria Cruz Vermelha de Moçambique, foi sempre acompanhando o nosso trabalho e colocando voluntários a trabalhar connosco sempre que possível, sobretudo nas áreas sociais e de Literacia em Saúde, para que pudessem dar continuidade ao nosso trabalho depois de 9 de agosto.
Operacional: Quantas pessoas é que o Hospital apoiava?
CFR Filipa Albergaria: Os números de que disponho, e que penso ilustrarem bem a intensidade do trabalho em Macurungo, são os do relatório da CVP relativos à nossa prestação clínica: 4.657 consultas (2.097 adultos; 566 crianças; 115 consultas de Psicologia; 1534 atendimentos de pequena cirurgia; 345 consultas de Obstetrícia) e 133 partos. Nasceram e foram atendidas muitas mais pessoas porque os nossos números são apenas complementares da assistência prestada pelos próprios médicos, enfermeiros, técnicos e voluntários moçambicanos.
Operacional: Sente que é suficiente ou seria necessário aumentar a capacidade de resposta existente?
CFR Filipa Albergaria: Esta é realmente a minha opinião pessoal, que não sou da CVP nem estive no planeamento da missão… sinceramente parece-me que fez todo o sentido haver uma rápida e robusta resposta de emergência médica na fase inicial pós-evento, foi igualmente útil e profícuo o apoio clínico ao CSU Macurungo nos primeiros meses contudo, a partir daí, na minha modesta opinião, não faz sentido permanecer no terreno a não ser que a missão passe a ser de formação e capacitação. Isto é, o CSU Macurungo tem a sua própria autonomia clínica e, a partir do momento em que a fase aguda da crise humanitária passa e o quotidiano do centro se restabelece (ainda que temporariamente em tendas ou pré-fabricados), torna-se redundante a presença de pessoal externo a não ser que o intuito passe a ser andragógico. E nesse aspecto, é fundamental que haja um plano bem definido e apoiado governamentalmente porque senão com que autoridade se ensinam novos protocolos médicos, se introduzem novas práticas ou se interfere na Saúde Pública dum país soberano? Nós fizemos alguma formação, como referi, na área da Ginecologia e Obstetrícia, por solicitação directa da Direcção Clínica do CSU e em temas de Saúde Comunitária aos voluntários da Cruz Vermelha de Moçambique mas muito mais haveria a fazer, pudéssemos nós colaborar na formação académica dos enfermeiros e técnicos de saúde do país.
Operacional: Em termos de balanço pessoal e sabendo que já esteve numa missão de carácter humanitário no Paquistão (2005) e outra também com essa vertente no Mediterrâneo (2016), como qualifica este empenhamento, o que trás de Moçambique?
CFR Filipa Albergaria: Na Medicina está sempre implícita uma ‘aparente’ superioridade da nossa parte porque são sempre os outros que nos procuram por precisarem de nós, ou de alguma coisa que nós possamos fazer. Nas catástrofes naturais, a diferença entre os nossos recursos e as necessidades das vítimas é abissal e, assim, a oportunidade de fazer bem a alguém, o desafio de fazer muito com pouco e a sensação maravilhosa que é sentir que nos transcendemos a nós mesmos cada vez que conseguimos apreender novas realidades através dos olhos de outras pessoas está sempre ali, proporcionalmente à nossa vontade e à nossa disponibilidade. Só que ao mesmo tempo, é essa complementaridade que torna tudo real porque de nada serve saber se não aplicarmos, de nada serve saber fazer se não temos por quem, de nada serve ter se não temos a quem dar e por isso, no final, o que ganhamos é sempre muito mais do que o que deixamos no terreno. A possibilidade de integrar missões humanitárias foi exactamente o que me trouxe para a vida militar porque tudo o que elas me trazem: experiência clínica, amizade transcultural, camaradagem verdadeira e duradoura… e paz.
Miguel Machado é
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