MEIOS AÉREOS NO COMBATE A INCÊNDIOS FLORESTAIS
Por Miguel Machado • 5 Set , 2016 • Categoria: 02. OPINIÃO, EM DESTAQUE PrintEste ano, infelizmente um dos mais fustigados pela tragédia dos incêndios florestais (IF), a discussão na praça pública estendeu-se, de uma forma mais contundente, à questão do regresso da Força Aérea ao combate aos mesmos, tornando-se rapidamente num tópico de relevo quer na agenda política, como na agenda mediática. Contudo, esta discussão, acalorada como as chamas, foi por diversas vezes inquinada com mitos e falsidades, cujas motivações só podemos atribuir a interesses instalados ou ao desconhecimento do enquadramento da questão. Importa, por isso, e com serenidade, fazer um ponto de situação sobre o assunto, em múltiplas vertentes, para uma melhor abordagem ao tema: é unicamente o que nos move com este modesto contributo.
Quem assina esta introdução e o artigo que agora publicamos é António Seabra, Coronel Técnico de Operações de Detecção e Conduta de Intercepção da Força Aérea Portuguesa na situação de Reserva, desligado do serviço, que a nosso pedido, porque sabíamos dos seus conhecimentos nesta área e do seu descomprometimento pessoal com as envolventes a esta temática. Estamos perante um importante contributo para o conhecimento de muitas particularidades dos meios aéreos no combate a incêndios, que habitualmente não estão disponíveis na imprensa generalista, algumas “esquecidas” pelos protagonistas que têm vindo a público. António Seabra faz perguntas às quais quase e nunca se vêm respostas, recorda números, investimentos, originalidades nacionais – como a Empresa de Meios Aéreos – escreve porque sabe do que fala. Sendo oficial da Força Aérea, não está neste trabalho, como facilmente se verá da sua leitura, a defender esta ou outra qualquer instituição onde tenha trabalhado, como a Proteção Civil. Está a dar a sua opinião, informada, documentada, sobre o tema e levanta possibilidades que podem (deviam!) ser seguidas em nome do interesse nacional.
António Seabra, 55 anos de idade, cumpriu 36 anos de serviço, a maioria na área da sua especialidade, mas também nas relações públicas do ramo e da Defesa Nacional, foi oficial de operações do Projecto do Sistema de Comando e Controlo Aéreo de Portugal, esteve no NATO Combined Air Operations Centre 8 (Torrejon/Espanha) como oficial de planeamento aéreo, no Estado-Maior Conjunto do Estado-Maior General das Forças Armadas, e foi Chefe da Célula de Meios Aéreos da Autoridade Nacional de Proteção Civil. Ao longo da sua carreira militar realizou vários cursos da área da sua especialidade, na de relações públicas em Portugal e na NATO, de guerra electrónica em Espanha, foi Representante Nacional e da Força Aérea no NATO Data Link Working Group, e possui uma Pós-Graduação em Comunicação Estratégica e Assessoria Mediática (ISLA). Recebeu vários louvores e condecorações.
I – A evolução dos modelos de gestão e operação dos meios aéreos
A Força Aérea esteve envolvida no combate directo aos IF até à década de 90.Para além do emprego de helicópteros, empenhou ainda uma aeronave C130 com o sistema Modular Airborne Fire Fighting System-MAFFS (existiam um equipamento para uso e outro de reserva). A partir de determinado momento, a Força Aérea passou a realizar apenas missões de apoio, em resposta a solicitações efectuadas pelas entidades de Protecção Civil. Note-se, porém, que já desde essa altura actuavam também meios aéreos privados, uma vez que os meios aéreos militares eram insuficientes.
Após este período, o combate aos IF com meios aéreos passou a ser efectuado exclusivamente por empresas privadas, contratadas pelos serviços de protecção civil predecessores da ANPC, em regime de disponibilidade sazonal, durante as fases críticas do Dispositivo Especial de Combate aos IF (DECIF), voltando-se, em 2006, a um modelo diferente, já com meios aéreos próprios do Estado.
Porém, citando de memória, a questão de aquisição de meios aéreos próprios remonta, pelo menos, ao tempo do Governo de Pinto Balsemão (1982), tendo na altura um grupo de trabalho sugerido a compra de três aparelhos Canadair, mas nada tendo avançado.
Já com o Governo de António Guterres, nos anos 90, surgiu um novo estudo recomendando a compra de meios pesados de combate a IF, mais uma vez Canadair e, em 2004, o Governo de Santana Lopes chega a anunciar a intenção de compra de seis. No entanto, uns tempos após, esta decisão foi adiada[1].
Chegados a 2005, e face à dependência exclusiva de meios privados no dispositivo, o Governo de José Sócrates entendeu que o próprio Estado deveria deter meios aéreos próprios, de forma a atenuar riscos do mercado no seu fornecimento e a ter uma frota mínima para acudir ao combate a IF “fora de época”. Para o efeito, foi criada uma “Comissão Especial para o Estudo de Meios Aéreos de Combate aos Incêndios Florestais” (CEEMA), conforme Resolução do Conselho de Ministros (RCM) n.º 182/2005. Aqui chegados e seguindo este diploma, transcrevemos pela sua importância o seguinte extracto, sendo o sublinhado da nossa responsabilidade:
“O Estado não dispõe de nenhum meio próprio e permanente especialmente dirigido para a prevenção e combate aos incêndios florestais, designadamente com capacidade de actuação fora dos períodos objecto da sobredita contratação.
Esta situação é única no contexto dos países do sul da Europa, os quais, nesta matéria, partilham com Portugal o mesmo nível de preocupações. Na verdade, os referidos países desde há muito que dispõem de frotas próprias adstritas a esta finalidade, sem prejuízo da sua utilização noutras missões sempre que tal se afigure possível.
A situação presente caracteriza-se, assim, pela necessidade de, ano após ano, lançar novos concursos e celebrar novos contratos, pela dependência total do Estado face às contingências do mercado e, conforme resulta dos últimos cinco anos, por um crescendo dos encargos financeiros suportados.
Sopesando todos estes factores e, ainda, argumentos de natureza operacional e contratual, a comissão entendeu que, por um lado, se justifica a aquisição, ou a locação operacional ou financeira, de meios aéreos próprios do Estado Português.
Neste quadro, a referida comissão propôs que o Estado procedesse à aquisição, ou à locação operacional ou financeira, de quatro aviões pesados, seis helicópteros médios e quatro helicópteros ligeiros, afectando esses meios a título permanente ao serviço do Estado”.
Para terminar no que respeita às recomendações dessa comissão, a mesma propunha ainda o recurso à contratação de meios privados, concretamente 16 helicópteros ligeiros, 4 helicópteros médios e 14 aviões médios e ligeiros para operar no período de maior risco. Ou seja, e no tocante apenas ao combate a IF, um dispositivo total de 48 aeronaves, no somatório de meios próprios e privados, ao qual se somavam ainda dois helicópteros que se encontravam ao serviço permanente do extinto Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil, contratados em 2003[2]. Em 2001, por exemplo, esse dispositivo era de apenas 35 aeronaves.
A intenção do Governo em levar por diante estas recomendações era de tal celeridade que o Ministro da Administração Interna na altura, António Costa, assegurava que esses meios aéreos próprios iriam estar à disposição logo a partir de 2006, pelo que a verba para o efeito iria ser inscrita no Orçamento do Estado.
Contudo, este desiderato não foi atingido na totalidade e, em Junho de 2006, em resposta a um requerimento parlamentar[3], o Governo esclarecia que em Novembro de 2005, tinham sido lançados vários Concursos Públicos Internacionais (CPI), e em resultado deles, já tinham sido contratados os 10 helicópteros propostos pela CEEMA e que relativamente aos quatro aviões pesados anfíbios propostos, o concurso tinha sido adiado “em virtude das negociações em curso com a Federação Russa para o pagamento da sua dívida a Portugal, através da entrega de aviões pesados Beriev 200, que levaram, aliás, à disponibilização de um aparelho para teste operacional em Portugal nos meses de Julho e Agosto”.
Na mesma resposta, o Governo anunciava ainda que iria ser criada uma empresa pública para gerir esses novos meios permanentes, os quais poderiam ser utilizados em missões para além do combate aos IF, como “as de socorro e assistência aos cidadãos e apoio a missões das Forças de Segurança”; que a aquisição e a manutenção desses meios constituíam uma obrigação da empresa adjudicatária; e que a partir de 2006, e com esta nova abordagem, os custos com meios aéreos passariam a ser inferiores.
Verificamos assim que, a partir de 2006, existiu uma viragem relevante no processo de constituição do dispositivo de meios aéreos, com o regresso de meios próprios do Estado ao combate aos IF, embora com a originalidade, pois julgamos não existir situação semelhante noutros países, de ser criada uma empresa pública para gestão e operação desses meios.
Aqui chegados, e porque julgamos nunca terem sido esclarecidas publicamente as razões que levaram à opção por este modelo, surgem-nos as primeiras interrogações: por que razão não foi logo todo este processo, desde a aquisição, à operação e manutenção das frotas, entregue à Força Aérea (ou Forças Armadas), ou mesmo aos serviços da protecção civil, ou mesmo até a uma entidade que fosse criada para o efeito na esfera da Administração Pública?
Foi então criada, em 2007, a EMA (Empresa de Meios Aéreos, S.A.), para gerir os meios aéreos que pudessem ser empenhados não só no combate aos IF, como nas demais missões de operações de protecção e socorro da protecção civil, e ainda em missões de outras entidades tuteladas pelo MAI, tendo-lhe sido atribuído o direito exclusivo a contratar os meios aéreos necessários para o efeito; isto é, para além de gerir os meios aéreos próprios do Estado, a contratar também os meios privados necessários ao dispositivo.
Fazemos aqui um parêntese para registar que o Relatório Nº 49/07 – 2ªS, da auditoria efectuada pelo Tribunal de Contas (TdC)[4], sobre a contratação de meios aéreos para combate aos IF nos anos de 2005 e 2006, denunciava a existência de “jogos de interesse” no que respeita à actuação de algumas empresas locadoras de meios aéreos privados – obviamente que não generalizamos esta actuação ao universo das empresas concorrentes – expressão similar também utilizada pelo poder político em Resoluções de Conselho de Ministros, como uma das justificações para a aquisição de meios aéreos próprios. Citando o relatório do TdC em referência a um concurso: “O procedimento das referidas empresas levou a AdC – Autoridade da Concorrência a iniciar uma investigação com base em indícios de existência de uma prática restritiva da concorrência, tendo dado como provada a existência de um cartel formado pelas citadas empresas”. Por sua vez, o Governo justificava na alínea d) do preâmbulo das RCM referidas que “a inexistência de meios próprios torna o Estado totalmente dependente de terceiros, das contingências do mercado e do jogo dos concorrentes”.
Entretanto, os novos meios aéreos adquiridos (seis helicópteros Kamov KA-32 e quatro helicópteros Eurocopter AS350 B3 Ecureuil) foram acrescentados ao património da novel EMA. Mais tarde, juntar-se-lhe-iam três aeronaves ultra-ligeiras ATEC Zephyr 2000, doadas pela Fundação Vodafone, para missões de reconhecimento e vigilância de IF, as quais praticamente não chegaram a ser utilizadas e cujo destino desconhecemos.
Quanto às duas frotas, os Kamov foram adquiridos por cerca de 42 milhões de euros e os B3 por cerca de 2,2 milhões de euros, sendo os custos de manutenção pagos a uma empresa privada, pelos valores de 4169€/hora de voo (HV), para os Kamov, e de 1931€/HV, para os B3. Os custos de operação e outros, como seguros, eram suportados pela EMA[5], o que nos leva a ter uma primeira noção da grandeza do valor real da HV por tipo de aeronave.
Para operar estas frotas, a EMA dispunha no seu quadro de pessoal (em 2011) de 37 pilotos (15 pilotos-comandantes de Kamov, 16 copilotos de Kamov e seis pilotos de B3), aos quais se acrescentavam três pilotos no âmbito de um protocolo estabelecido com o Exército (mais tarde viriam a ser cinco) e pilotos contratados sazonalmente, em regra no estrangeiro.
Dispunha ainda a EMA de um grupo de operadores de guincho para as missões de busca e salvamento realizadas fora do período crítico dos IF. Para estas missões específicas, os recuperadores-salvadores pertenciam aos quadros da Força Especial de Bombeiros (FEB) da ANPC.
Aproveitamos aqui para registar que, muito embora a EMA fosse uma empresa do Estado, o seu quadro de pessoal, no que se refere a pilotos e operadores de guincho, era remunerado de molde a manter “a desejável atratividade (…) em relação aos valores praticados no mercado”, o que levou a uma estrutura de custos fixos com pessoal extremamente elevada (73.634€/ano/trabalhador, em 2012). Os pilotos do Exército e os recuperadores-salvadores da FEB mantinham as suas remunerações-base de origem.
Questionamos também o efectivo de pessoal tripulante, não o necessário para empenhamento no período crítico de combate aos IF, mas o seu número fora desta época quando, por norma, apenas eram disponibilizados dois Kamov para missões de interesse público, ficando o resto das aeronaves paradas ou utilizadas marginalmente para treinos e requalificações de pessoal.
Fora do período crítico do DECIF, a EMA mantinha um dispositivo reduzido de dois Kamov, normalmente em alerta H24, a partir das bases de Santa Comba Dão e de Loulé, e de um B3, normalmente em regime de alerta diurno e “on call” a partir da base de Ponte de Sor, podendo estas aeronaves ser empenhadas quer em missões da ANPC (IF “fora de época”, busca e salvamento, evacuações aeromédicas, etc), quer de outras entidades tuteladas pelo MAI (GNR, PSP, SEF e ANSR).
Porém, o início de actividade da EMA foi, desde logo, atribulado[6]: atrasos na entrega de aeronaves por parte do fornecedor, litígios judiciais com a mesma empresa, perda de um dos helicópteros B3 por acidente; posteriormente, um acidente com um dos Kamov, em 2012, que nunca mais foi recuperado, e um conjunto de medidas de gestão controverso que viria a ser, em 2014, objecto de graves censuras por parte do TdC[7], sem poupar a respectiva tutela política.
Por outro lado, se quanto aos B3 pouco há a dizer, já os Kamov vieram a revelar-se um pesadelo logístico que obrigou, como é do conhecimento público, a um baixíssimo nível de disponibilidade operacional e a elevados custos de operação. Quanto à sua eficácia e adequabilidade aos diversos tipos de missões, deixamos para os especialistas, lembrando, contudo, que no caso do combate aos IF, por exemplo em Espanha, são operados com versões mais simples (“single-pilot” e certificadas apenas para voos VFR – regras de voo visual), logo com menores custos de operação.
Chegados a 2011, e já com novo Governo, de Passos Coelho, este anunciou a sua intenção de extinguir a EMA, porém sem inicialmente divulgar quais as alternativas existentes, o que só veio a acontecer no início de 2014 com a publicação do DL 8/2014, que determinava a passagem para a ANPC dos meios aéreos próprios e a responsabilidade da contratação de meios aéreos privados.
Quase em paralelo, em finais de 2013, foi publicado o Despacho Conjunto 14718/2013 dos MDN, MAI e Ministério da Saúde (MS)[8], que anunciava a criação de um “Grupo de Trabalho para os Meios Aéreos em Missões de Interesse Público” (GT-MAMIP), o qual teriacomo objetivo “apresentar um estudo com opções para o futuro envolvimento ativo da Força Aérea com meios aéreos na prevenção e combate a incêndios e de evacuações aeromédicas no território continental e insular, assim como a articulação dos mesmos meios no âmbito de outras missões de interesse público e respetivo modelo de coordenação e gestão”.
Atentava o Governo nesse despacho que esta decisão tinha por base, entre outras razões, “a importância do duplouso [das Forças Armadas] na execução das missões de interesse público”, considerado um vector de acção estratégica no “Conceito Estratégico de Defesa Nacional” e “as necessidades transversais do Estado”, devendo o estudo do GT-MAMIP, a ser apresentado até 31 de Janeiro de 2014, propor:(i) uma estrutura permanente de combate a incêndios; (ii) uma estrutura permanente para evacuações sanitárias primárias esecundárias, devidamente articuladas; (iii) os requisitos para a satisfação das necessidades de apoio às forçasde segurança; (iv) uma aproximação pragmática à realidade nacional,o máximoaproveitamento de sinergias, a utilização flexível e a polivalência demeios entre os diversos tipos de missões,incluindo a compatibilização com requisitos militares; (v) e, o modelo de gestão e coordenação de meios.
Em Fevereiro de 2014, o então MAI, Miguel Macedo, anunciava[9], em audição no grupo de trabalho para Análise da Problemática dos Incêndios Florestais da Assembleia da República, que “o Governo [pretendia] adquirir dois aviões Canadair de combate a incêndios florestais através do recurso a fundos comunitários”, estimando o valor de cada um deles em 37/38 milhões de dólares e que as mesmas seriam inscritas no Mecanismo Europeu de Protecção Civil. E, em 26 de Março de 2014, que “estamos a ponderar uma situação de reforço de meios próprios do país para futuro, mas ainda não está concluído esse processo”, acrescentando “recebi na sexta-feira um dossier sobre esta matéria, preciso de algum tempo” (deduzimos que tenha sido o estudo do GT-MAMIP).
Porém, em Junho de 2015, os mesmos ministérios voltam a produzir um novo Despacho Conjunto[10], dando conta de que os trabalhos do GT-MAMIP ainda não estavam finalizados “considerando que se [mantinha] a necessidade de concluir os trabalhos tendo em vista os objetivos definidos no Despacho n.º 14718/2013, de 29 de outubro”, anunciando que aos até então representantes do MDN, MAI, MS e Força Aérea, se iriam juntar dois representantes, dos governos regionais dos Açores e da Madeira, respectivamente, e indicando a data de 15 de Setembro de 2015 para finalização dos trabalhos.
Entretanto, a EMA acabou por ser extinta, passando os meios aéreos próprios (B3 e Kamov), para propriedade da ANPC, tendo sido adjudicados concursos para operação e manutenção das duas frotas por empresas privadas, os quais terminam em 2018 e 2019[11], respectivamente. Refira-se aqui que da frota de seis Kamov, apenas três foram recebidas pela empresa adjudicatária, já que um (CS-HMO) se mantém acidentado e dois (CS-HMK e CS-HMP) necessitavam de reparação, tendo o Estado despendido mais de dois milhões de euros para o efeito[12], isto depois da Comissão Liquidatária da EMA ter sido obrigada a gastar 1,6 milhões de euros na reparação com dois motores e uma “main gear box” para a aeronave CS-HMN, acidentada no aeródromo de Viseu[13].
Face a toda estas dificuldades e custos com os Kamov, questionamo-nos se eventualmente não teria sido mais benéfico para o Estado vender essa frota, ou parte dela, optando-se na época crítica dos incêndios por contratar meios privados e, “fora de época”, a ser a Força Aérea a assegurar a disponibilidade de meios para os órgãos tutelados do MAI, que era garantida por apenas dois Kamov. Para fechar este tema, basta dizer que em 2013, das 2500 horas registadas pela ANPC de indisponibilidade de aeronaves, 2318 (92,7%) foram devidas a esta frota!
Fruto da passagem dos meios e responsabilidades para a ANPC, esta entidade, face à legislação aeronáutica em vigor sobre gestão do sistema de aeronavegabilidade e do sistema de qualidade, entre outras, teve que criar um órgão próprio (Direcção de Serviços de Meios Aéreos), tendo recorrido a militares do Exército para preenchimento dos seus quadros.
Regressando ao assunto do GT-MAMIP, a informação que recentemente transpareceu para o público[14] dava conta da recomendação para aquisição de 10 helicópteros ligeiros monomotores, seis helicópteros médios bimotores e duas aeronaves pesadas anfíbias, ou seja, foi este o denominador comum encontrado para servir em simultâneo e de forma transversal, os interesses militares, incluindo a renovação de frotas, e os das demais entidades do Estado, de acordo com as linhas de orientação política recebidas.
Recomendou ainda o GT-MAMIP que “a sustentação financeira seria enquadrada no princípio de “utilizador-pagador”, ou seja, “baseado numa comparticipação financeira por cada entidade utilizadora, proporcional ao produto operacional obtido e à contribuição de cada um para o dispositivo global”, dizendo ainda que o modelo apresentado era “manifestamente vantajoso em comparação aos custos atuais”, e quanto a números estimava a aquisição de sete helicópteros ligeiros (três dos 10 propostos serão os B3 já existentes) em 17,5 milhões até 2020 e a aquisição dos seis helicópteros médios em 48 milhões até 2018. Quanto ao futuro dos Kamov, permanece uma incógnita.
Recentemente, também, o actual Governo tem manifestado por diversas vezes a sua vontade de fazer voltar a Força Aérea ao combate a IF, corroborando, neste tema, as intenções do Governo anterior, pelo que parece haver um consenso político-partidário generalizado e uma opinião pública favorável sobre este tema.
II – O futuro dos modelos dos meios aéreos
Depois de termos visto que o modelo de gestão e operação dos meios aéreos de combate a IF passou por várias experiências, chegamos a 2016 com um cenário de coexistência de meios aéreos próprios (da extinta EMA e agora da ANPC, embora operados e mantidos por privados) com meios aéreos privados, cenário este que se irá manter inevitavelmente num futuro próximo.
Em primeiro lugar, o GT-MAMIP admitiu que não poderá ser a Força Aérea a deter a exclusividade destes meios, havendo sempre a necessidade de se recorrer sazonalmente a meios privados. Por outro lado, há meios aéreos próprios que estão sob vínculo contratual até 2018/2019 para a sua operação e manutenção, e por outro, a aquisição de novos meios para a Força Aérea (em particular, os meios anfíbios) é demorada, como demorada é também a formação das tripulações.
Certamente que o modelo ora proposto pelo GT-MAMIP, semelhante em alguns países europeus no que respeita à coexistência de meios próprios e privados, representará um grande desafio, em particular para a Força Aérea (afectação de recursos, formação e treino, garantia de manutenção de destacamentos em alerta permanente, principalmente durante a fase crítica do DECIF, etc). Terá, certamente, os seus pontos fracos e vulnerabilidades, mas parece-nos que as vantagens são largamente compensadoras para o interesse público já que, em nossa opinião:
– Diminuem a dependência do Estado do mercado privado e das suas contingências e, de acordo com o estimado pelo GT-MAMIP, permitem ganhos económicos em relação à locação de meios privados;
– Permitem o reforço do dispositivo mínimo que assegura o combate aos IF “fora de época”;
– Permitem uma transversalidade de utilizadores do Estado, das Forças Armadas às Forças de Segurança e outras entidades;
– No caso dos helicópteros ligeiros, assegura a substituição da actual frota de Sudaviation – SE 3160 Alouette III;
– No caso dos helicópteros médios, permite uma complementaridade ou alternativa de utilização, em algumas missões, à frota Agusta-Westland EH-101 Merlin, com custos de operação eventualmente mais baixos;
– No caso das aeronaves pesadas anfíbias propostas, asseguram um dispositivo mínimo que minimiza as dificuldades de contratação destes meios num mercado exíguo ou de requisição de meios pesados ao abrigo de acordos internacionais e possibilitam ainda um contributo nacional para o Mecanismo Europeu de Protecção Civil, com os ganhos de visibilidade e de imagem daí resultantes;
– Correspondem ao desígnio do Conceito Estratégico Nacional de maior empenhamento das Forças Armadas nas missões de apoio público, potenciando-se o duplo uso das capacidades militares.
III –O planeamento dos meios aéreos em Portugal
Em primeiro lugar, começamos por desfazer um conceito errado existente em parte da opinião pública, quiçá por força da mediatização de apenas os grandes incêndios: não são os meios aéreos que combatem os IF, mas sim os combatentes no terreno! Contudo, são meios complementares muito importantes, quer no combate directo ou indirecto, quer na projecção e retracção de combatentes, e em missões de apoio, apresentando como principais vantagens face aos meios terrestres:
– A rapidez, já que atingem maiores velocidades e podem dirigir-se diretamente para o destino, conseguindo frequentemente chegar ao incêndio e começar a operar antes da chegada de outros meios;
– A maior acessibilidade, já que conseguem ter acesso a áreas remotas e acidentadas que os meios terrestres têm dificuldade em atingir, inclusive nas situações em que o acesso terrestre é limitado por questões de segurança;
– A capacidade de observação, já que têm uma visão de toda a extensão do incêndio, da disposição de meios, acessos e ameaças, as quais podem ser transmitidas às forças terrestres.
Porém, o empenhamento de meios aéreos enfrenta dois grandes obstáculos: são caros e apenas actuam de dia e se não existirem limitações para o efeito, tais como fumo denso, intensidade do vento acima dos limites ou outras causas.
Desta forma, e para se ter uma noção concreta da participação relativa dos meios aéreos no combate aos IF, socorremo-nos do Relatório Anual de Áreas Ardidas e Incêndios Florestais em Portugal, de 2013, do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF)[15]:
– O número de ocorrências de IF foi de 19291, tendo ardido uma área de 152758 hectares. Desse total, os grandes incêndios (classificados como área ardida superior a 100 hectares), corresponderam a apenas 216 ocorrências (1,1%), no entanto, representaram 123985 hectares de mato ou floresta ardida (81%);
– Do total de ocorrências, cerca de 64% foram registadas com inícioentre as 08H e as 20H, período de disponibilidade dos meios aéreos, osrestantes 36% deflagraram entre as 20H e as 8H;
– Das 19291 ocorrências, 8292 (43%) foram extintos em menos de 1H30, 17062 (88%) em menos de 4H, sendo, portante inferior a 12% os que duraram mais tempo;
– No período de 15 de Maio a 15 de Outubro (correspondente aproximadamente a 16000 ocorrências), os meios aéreos realizaram 6022 missões, tendo actuado em 4349 (72,2%)delas, das quais em apenas 584 não dominaram a ocorrência (taxa de eficácia de 86,6%);
– Nesse mesmo período, e subdividindo por classe de meios aéreos, os de ataque inicial (ATI), helicópteros ligeiros, realizaram 5330 missões (88,5% do total), tendo actuado em 3683 (69,1%) delas, das quais em 304 não dominaram a ocorrência (taxa de eficácia de 91,7%); enquanto os de ataque ampliado (ATA), helicópteros e aviões anfíbios pesados, realizaram, no seu conjunto, 692 missões (11,5% do total), tendo actuado em 666 (96,2%) delas, das quais em 280 não dominaram a ocorrência (taxa de eficácia de 58%);
Abrimos aqui uma nota para referir que não encontrámos dados disponibilizados publicamente que correlacionassem a actividade aérea com as ocorrências de IF, pelo que não podemos quantificar com exactidão em quantas delas houve intervenção de meios aéreos. No entanto, se considerarmos que a cada missão corresponde uma ocorrência (será obviamente menor já que muitas ocorrências obrigam ao empenhamento de mais do que um meio aéreo), podemos de forma grosseira dizer que os meios aéreos actuaram em menos de 27% das ocorrências de IF (42% das diurnas), sendo de cerca de 23% a percentagem para os meios ATI (36% das diurnas) e de cerca de 4% para os meios de ATA (6% das diurnas)!
Quanto aos números extraídos, verifica-se o elevado número de activações de meios ATI sem actuação, devendo-se ao facto de existirem muitos falsos alertas ou por o foco de incêndio já ter sido, entretanto, extinto por outros meios. Porém, a elevada taxa de eficácia deve-se, entre outras, à combinação da pronta intervenção do meio e da equipa helitransportada no terreno.
Um pouco ao invés, os meios ATA registam uma taxa de actuação muito elevada porque só são activados em situações quando e onde é clara a sua necessidade de intervenção, mas a taxa de eficácia é mais baixa dado que a ocorrência já progrediu, requerendo, por isso, níveis de esforço de combate elevados.
Como resulta dos dados anteriores, o sucesso do combate a IF depende em grande escala da rápida intervenção em ATI, ou seja, com meios aéreos ligeiros; caso contrário, existe uma grande probabilidade de as ocorrências degenerarem em grandes incêndios, requerendo um esforço de combate e um empenhamento de meios elevados.
O planeamento de meios aéreos de combate aos IF tem como principal obstáculo a imprevisibilidade das ocorrências: não sabemos nunca onde vão aparecer, quando e com que frequência, ainda para mais com a agravante de grande parte das ignições se dever a comportamentos humanos negligentes ou dolosos. Assim sendo, existem apenas como indicadores de planeamento o grau de susceptibilidade do território a IF e a informação estatística do histórico de ocorrências.
Quanto à susceptibilidade do território a IF, verifica-se que, de uma forma muito lata, todo o território de Portugal continental, com excepção de uma extensa parte do Alentejo, Ribatejo e Extremadura, apresenta uma susceptibilidade elevada ou muito elevada a riscos de IF.
Ora como o sucesso do combate aos IF está na intervenção rápida (mais de 90% dos IF são apagados nos primeiros 90 minutos), os primeiros meios aéreos na cadeia de intervenção são os designados por ATI (ataque inicial).Em 2013, otempo médio de descolagem dos helicópteros ligeiros foi de cinco minutos.
Desta forma, e atendendo a que o território de Portugal Continental,com 61% constituído por floresta ou matos e climatologia propícia, apresenta uma vasta mancha de áreas de elevada ou muito elevada susceptibilidade aos IF, de certa forma contínua do Norte ao Centro e descontinuada até à serra algarvia, torna-se necessária a existência de um número considerável de meios ATI (actualmente apenas helicópteros ligeiros Eurocopter AS350 B3e médios Bell 205 e 412), em alerta permanente nos Centros de Meios Aéreos (CMA), dispersos ao longo território mais susceptível, de forma a proporcionarem a tal intervenção rápida, num raio de acção de 40 km, com o objectivo de chegarem ao local da ocorrência num tempo máximo de 20 minutos, conforme meta estabelecida no Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios (PNDFCI).
Para esse efeito, os critérios para colocação dos meios ATI são ponderados com outros factores, tais como a existência de recursos de combatentes terrestres, orografia e acessibilidades por rede viária:assim, por exemplo, uma determinada zona geográfica, apesar de ter uma elevada susceptibilidade aos IF, pode não justificar a colocação de um meio aéreo se existirem nas proximidades suficientes corporações de bombeiros, tiver boas acessibilidades e uma orografia favorável, condições que garantem,num quadro de risco assumido, uma grande probabilidade de sucesso de um ATI apenas com forças terrestres; ao invés, uma zona geográfica de menor susceptibilidade aos IF pode justificar a colocação de um meio aéreo, pelas razões opostas.
Para se ter uma ideia da necessidade diversificada de utilização de meios aéreos, relativamente ao total de missões, em 2013 e em termos distritais, o número variou entre um mínimo de apenas 12 missões, no distrito de Lisboa, e 1108 missões, no distrito de Viseu.
No que respeita aos meios ATA, a sua colocação privilegia outros aspectos que não propriamente a rapidez de descolagem (o tempo médio de descolagem, em 2013, foi de 21 minutos para os helicópteros Kamov e de 23 minutos para as aeronaves anfíbias), mas sim a sua capacidade e eficácia de descargas (quantidade e rotação), cobertura territorial, autonomia e raio de acção,havendo considerações especiais a ter em conta consoante estes sejam helicópteros, de asa fixa simples ou de asa fixa anfíbios. Obviamente, também, quaisquer destes meios são mais exigentes em termos de infraestruturas aeronáuticas, não só por aspectos operacionais e de segurança de voo, como logísticos, em particular o armazenamento de combustível, o que limita o número de CMA como opção.
IV – O emprego táctico dos meios aéreos
Socorrendo-nos da Directiva Operacional Nacional do DECIF, da ANPC, e da dissertação de mestrado de Alexandre Benigno sobre o tema[16], o acionamento de meios aéreos ATI (despacho, na terminologia da ANPC) é feito de forma automática desde que estejam reunidas as seguintes condições:
– A localização do incêndio esteja coberta pelo raio de atuação do CMA onde o meio aéreo está estacionado (40 km);
– Seja o meio aéreo ATI mais próximo da ocorrência;
– Esteja disponível.
Importa aqui dizer que este despacho pode ter diversas origens: normalmente, o despacho provém do CDOS (Comando Distrital de Operações de Socorro) para o operador da ANPC no CMA (o qual canaliza a informação para o piloto), tendo por base alertas telefónicos, do sistema 112 ou outros, sem prejuízo de descolagem se houver “fogo à vista” a partir do CMA.
Ao meio ATI (e aqui consideramos apenas helicópteros, uma vez que no passado houve aeronaves de asa fixa em ATI), está adstrita uma equipa de bombeiros (variável em número consoante o tipo de aeronave), a qual é projectada para o local da ocorrência, monta o sistema de balde após a aterragem e inicia o combate ao IF com ferramentas manuais. Em paralelo com o meio ATI, são também despachados meios terrestres provenientes dos três corpos de bombeiros mais próximos do local da ocorrência(triangulação).
Por curiosidade, importa referir que as equipas helitransportadas são constituídas por elementos ou da FEB ou do GIPS da GNR, conforme os distritos.
Enquanto decorrem as operações pelas equipas terrestres, o meio aéreo desloca-se aos pontos de água previamente identificados e efectua em seguia as descargas necessárias ou até ser possível pela sua autonomia. Posteriormente, a equipa terrestre é recuperada e o sistema de balde acondicionado na cesta existente para o efeito numa das laterais da aeronave, para regresso ao CMA.
Para se ter uma ideia mais da importância e do volume que podem atingir as operações aéreas em ATI, no quinquénio 2008/2012, e só no CMA de Baltar (concelho de Paredes, distrito do Porto), com apenas uma aeronave sedeada, foram realizadas 2229 missões, correspondentes a 1247 HV, embora com 16,44% desse tempo de voo em missões sem intervenção, abortadas ou falsos alarmes. Tradicionalmente a este CMA, seguem-se em volume de esforço os CMA de Fafe, Vale de Cambra, Braga, Arcos de Valdevez, Armamar e Viseu, tendo a média anual de missões ATI sido de 4888, correspondente a 2979 HV.
Não havendo sucesso com o ATI (no máximo 90 minutos) e passando-se à fase de ATA, os meios aéreos para este fim são seleccionados prioritariamente (agora já pelo Comando Nacional de Operações de Socorro – CNOS, e não pelos CDOS) de acordo com a sua disponibilidade imediata, localização e raio de acção, sendo que actualmente têm sido empregues três tipologias diferentes de meios: helicópteros Kamov (sedeados, uma aeronave por CMA, e no máximo das cinco aeronaves disponíveis), anfíbios médios Airtractor Fireboss (três parelhas em três CMA, normalmente Vila Real, Viseu e Proença-a-Nova) e anfíbios pesados CL-215 Canadair (normalmente uma parelha no CMA de Seia), sem prejuízo de haver meios adicionais de reforço pontual, contratados ou no âmbito de ajuda internacional, sendo neste último caso, e por regra, utilizada a Base Aérea de Monte Real para sedear os meios.
No caso dos helicópteros de ATA, o seu emprego difere, contudo, dos helicópteros ATI porquanto não há equipa helitransportada e consequentemente o balde permanece sempre em suspensão.
No que se refere aos anfíbios, a toma de água (scooping) é efectuada em troços de linhas de água previamente estabelecidos e aprovados quer pelo operador aéreo, quer pela ANPC, carecendo para o efeito, e por segurança de voo, de uma revisão periódica para verificação de obstáculos nos circuitos de aproximação e de saída, níveis de água e obstáculos à cota de superfície,sendo ainda que nos locais sob jurisdição da Direcção-Geral de Autoridade Marítima (DGAM) as operações de “sccoping” carecem de coordenação atempada com esta autoridade, principalmente por questões de segurança do tráfego fluvial.
IV – Tipologia dos Meios Aéreos de Combate a IF
Existe uma grande variedade de meios aéreos de combate a IF, de asa fixa (aviões) e asa rotativa (helicópteros), por norma, adaptados para o efeito de outras versões. Embora os critérios sejam por vezes diferenciados de país para país, podemos subdividir os mesmos em ligeiros, médios e pesados, no que se refere à sua capacidade de carga.
No que se refere aos de asa rotativa, os sistemas normalmente utilizados para efectuar descargas ou é por balde suspenso (como o “Bambi Bucket”) ou por tanques internos (em Portugal, só se tem utilizado o primeiro). Os de asa fixa utilizam tanques internos, integrados na estrutura da aeronave ou desmontáveis.
Quanto aos meios ultimamente utilizados em Portugal, os helicópteros ligeiros B3 utilizam um balde de 900 litros, os helicópteros médios Bell de 1200 litros e os pesados Kamov de 4000 litros.
O C130 e o sistema MAFFS
O sistema MAFFS (Modular Airborne FireFighting System) foi desenvolvido, nos anos 70, pelos Serviços Florestais dos Estados Unidos (USFS), especificamente para a aeronave C130, de forma a permitir o emprego deste meio no combate a IF, embora já tenha sido usado para outras finalidades como a dispersão de químicos em acidentes com poluição marítima. A versão inicial, MAFFS I, que foi usada no passado pela Força Aérea, permitia a largada de 10 mil litros de água ou retardante, enquanto a versão actual, MAFFS II, permite a largada de 13 mil litros e adicionou vantagens operacionais, atendendo a que a largada pode ser feita por saídas laterais na aeronave, sem necessidade de abertura da rampa de carga, sem perdas de pressurização e com maior estabilidade aerodinâmica, além de vantagens logísticas.
Para além dos Estados Unidos, e da operação em Portugal no passado (com apenas uma aeronave, um “kit” operacional e outro de reserva), o sistema foi também adquirido pelas Forças Aéreas do Brasil, Colômbia, Marrocos e Tailândia.
Cada “kit” é um sistema “roll-on/roll-off”, montado em cerca de uma hora, e após cada descarga, o tempo para reabastecer o “kit” é de cerca de 12 minutos.
Actualmente, nos EUA, a USFS dispõe de oito “kits” e é responsável pelo equipamento, assim como pelos produtos a utilizar em descargas, tendo o Congresso dos EUA, em 2014, aprovado a compra de mais dois “kits”[17], no valor de 16 milhões de dólares. Pela utilização dos C130, a USFS ressarce o Departamento de Defesa, com base nos custos de utilização e de acordo com o regulado no “Economy Act” para prestação de serviços intergovernamentais e em protocolo entre os Departamentos da Agricultura, do Interior e da Defesa.
Por seu lado, a Air National Guard e a Air Force Reserve, dispõem de oito aeronaves C130, sedeadas em quatro bases aéreas, e são responsáveis pelas tripulações, manutenção e pessoal de apoio para operar os “kits”.
Contudo, estas aeronaves não fazem parte do dispositivo permanente de combate a IF nem se mantêm em alerta permanente para o efeito, sendo apenas activadas, caso a caso, e com uma antecedência de 24H pelos serviços florestais, e só apenas quando esgotadas as capacidades dos meios aéreos pesados locados, ou prevendo-se isso.
Quanto ao conceito de emprego operacional, o C130 MAFFS, como aliás as aeronaves pesadas de combate a IF nos EUA, são usados apenas em ataque indirectopara reduzir a intensidade e baixar a velocidade de progressão dos fogos, de forma a permitir às forças terrestres a construção de linhas de contenção. Para o seu emprego, requer a presença de um “lead plane” (aeronave de coordenação) no Teatro de Operações (TO).
Relativamente a dados estatísticos de operação real e custos de operação, incluindo treinos, testes e mobilizações de pessoal, registaram-se estes valores, no período de 2006 a 2013[18]:
Ano | HV Operacionais | Qt Largada (milhares de galões US) | Custos (milhões de USD) | Custo por HV Operacional (USD) |
2013 | 540.5 | 1,400 | 9.6 | 17.761 |
2012 | 888.7 | 2,400 | 12.4 | 13.953 |
2011 | 479.7 | 1,200 | 9.3 | 19.387 |
2010 | 7.7 | 0,012 | 3.4 | N/A |
2009 | 0 | 0 | 3.5 | N/A |
2008 | 970.1 | 1,300 | 16.1 | 16.596 |
2007 | 103.4 | 0,200 | 1.8 | 17.408 |
2006 | 826.6 | 1,500 | 9.4 | 11.372 |
Média
anual |
477.1 | 1,000 | 8.2 | 17.187 |
Nota 1: Nas HV não estão incorporadas as relativas a voos de treino e outros voos não-operacionais. Segundo outras fontes[19], porém o preço pago pelo USFS é de cerca de 5000 a 6000 USD/HV.
Nota 2: Para além dos anos de 2007, 2009 e 2010, registaram-se anteriormente vários anos sem actividade operacional ou muito reduzida (1995, de 1997 a 1999 e em 2003).
Nota 3: A quantidade de retardante largada pelos C130 MAFFS representa apenas, e em média, 3% do total de descargas[20].
Conforme dissemos anteriormente, os C130 MAFFS não fazem parte do dispositivo permanente de combate a IF nos EUA, e daí a justificação para os anos sem ou com pouca actividade, o que tem gerado grande controvérsia na opinião pública local, como se comprova em artigo do “Ventura County Star”[21], e que achamos curioso pela similitude de temas com Portugal. Conforme aí se explica, as leis federais impedem a utilização de meios militares enquanto não estiverem esgotadas as capacidades civis.
De todas as formas, o quantitativo de apenas oito C130 MAFFS não deixa de ser uma percentagem pequena no universo de meios aéreos. Para uma média de 73000 ocorrências de IF, o USFS contratou, em 2015, 29 aviões pesados, sem contar com os contratos “Call When Needed” (CWN) e outros ao abrigo de protocolo com o Canadá, e mais de 100 helicópteros permanentes e cerca de 200 em regime CWN.
Não dispomos de informação credível sobre a utilização do sistema MAFFS noutros países, no entanto podemos dizer que a sua utilização é residual; na Europa, só foi utilizado em Portugal (e em pequena escala em relação ao dispositivo total), não tendo sido opção em mais nenhum país utilizador de C130.
Pelo contrário, as aeronaves anfíbias têm recolhido uma grande preferência em vários países, atendendo a um conjunto de vantagens operacionais significativas, em particular pela muito maior capacidade de rotação entre descargas; isto é, enquanto uma aeronave não-anfíbia efectua apenas uma descarga e depois tem que voltar à sua base inicial (ou outra), para recarga do sistema (demorada comparativamente com os “scooping”) e regressar ao TO, as anfíbias, ainda que com menos capacidade de carga, limitam-se a pequenos trajectos entre o TO e os pontos de “scooping” (Para um TO a cerca de 10 km do ponto de “scooping”, um Canadair consegue fazer descargas de até cerca de 50 mil litros por hora).Por outro lado, as anfíbias são mais rápidas a descolar, não necessitam de “lead plane” e menos exigentes em termos de efectivos de pessoal.
O Canadair e outros anfíbios
Começamos por referir que a designação Canadair se refere ao nome do fabricante canadiano, que, entretanto, passou a englobar o grupo Bombardier, da primeira aeronave concebida propositadamente para combate a IF: o CL-215.
Após este modelo inicial, que ainda é utilizado, foi construída uma versão CL-215T (turboprop) e mais tarde o CL-415, com uma variante CL-415MP (multipurpose). Nas versões contra IF é utilizado pelo Canadá (empresas privadas e organismos públicos), Grécia (Força Aérea), Itália (Protecção Civil, mas alguns operados por empresa privada), Turquia (empresa privada), Estados Unidos (empresas privadas), Croácia (Força Aérea), França (Protecção Civil), Sérvia (Força Aérea), Marrocos (Força Aérea) e Espanha (empresa privada e meios da Força Aérea destacados na UME – “Unidad Militar de Emergencias”).
No que respeita a dados operacionais, o CL-215 tem uma capacidade de carga 5350 litros, uma autonomia de operação de 3H e um tempo médio de “scooping” de 10 segundos, enquanto o CL-415 carrega 6140 litros, uma autonomia de operação de 4H e um tempo médio de “scooping” de 12 segundos.
Uma alternativa interessante utilizada em muitos países, incluindo Portugal, é o Airtractor Fireboss, aeronave adaptada da versão Airtractor AT-802F, com uma capacidade de carga de 3100 litros, uma autonomia de operação de 3H30 e um tempo médio de “scooping” de 15 segundos. Exige menos recursos (monolugar) e tem custos de operação muito inferiores aos outros meios de ATA (Kamov e Canadair).
V -Sobre 0 Mercado: Vantagens e Inconvenientes
Como vimos, coexistem nos diversos países diferentes modelos de exploração dos meios aéreos de combate a IF (e para outras missões de interesse público) e em Portugal já vivenciámos experiências diferentes, inclusivamente a dependência total de meios privados.
Como também foi tornado público, não se justifica que o Estado detenha a totalidade desses meios, pelo que haverá sempre que recorrer, com carácter sazonal e em número ainda significativo, à locação de meios privados.
Não obstante, face às polémicas existentes, parece-nos que foi instalado numa parte da opinião pública um anátema sobre o mercado dos meios aéreos que julgamos injustificado.
O recurso ao mercado, desde logo, permite ao Estado não ter custos de investimento nas frotas e formação de pessoal (sempre evitado pelo poder político em épocas de exiguidade orçamental), assim como, sendo uma solução “chave-na-mão”, liberta o Estado das responsabilidades de operação, manutenção e de gestão da aeronavegabilidade, além da contratação de seguros e da reposição de meios em caso de indisponibilidade de alguma dessas aeronaves.
Outra vantagem adicional, advém do facto das tripulações adstritas a esses operadores aéreos deterem, na sua grande maioria, uma grande experiência em campanhas de combate a IF.
Quanto aos inconvenientes, esses já foram suficientemente escalpelizados em diversos momentos, o que levou o poder político à decisão de deter meios aéreos próprios, sendo que podemos afirmar que as razões de nível estratégico foram mais valoradas que a simples, embora importante, questão da análise comparativa do custo/benefício.
Aproveitamos, neste ponto, para abordarmos outro tema que surgiu na discussão pública:a problemática do custo das horas de voo.
Com alguma frequência, surgem notícias na comunicação social com valores sobre as HV dos meios aéreos, que julgamos calculados de uma forma muita leviana de uma simples divisão do custo do contrato pelas HV efectivamente voadas, levando para valores exagerados. Erro crasso! Ora acontece que não são apenas contratadas HV, mas também a disponibilidade operacional desses meios e pessoal, para manterem um regime de alerta diurno de 12H nos CMA, o que representa uma parcela de custos fixos significativa, voando-se ou não, a imputar à formação do preço. Dizendo de outra forma, não se podem comparar custos da HV neste contexto com, por exemplo, o simples fretamento de uma aeronave para um voo específico.
Outra percepção que existe em alguma opinião pública tem a ver com a noção de que “quanto mais as empresas voarem, mais têm a ganhar”. No entanto, se atentarmos aos contratos publicados no Portal Base, verificamos que por regra se referem a um bloco de HV total e a períodos de disponibilidade; isto é, desde que não existam penalizações ou compensações estipuladas por HV não voadas, não voando ou voando até ao limite do bloco, as empresas têm a garantia de receberem a totalidade prevista contratualmente, pelo que, e ao invés daquela percepção, é-lhes até mais vantajoso não voar.
Apenas a título de exemplo, no que se refere apenas a meios aéreos ATA, mais onerosos, verificamos que a HV, mais disponibilidade, tem os seguintes valores indicativos:
– Anfíbios médios Airtractor Fireboss, contrato de duas aeronaves, por um período de três campanhas, com 1350 HV incluídas, no valor total de 4979 m€ (média de 3688€/HV);
– Anfíbios pesados Canadair, contrato de duas aeronaves, por um período de três campanhas, com 900 HV incluídas, no valor total de 11158 m€ (média de 12397€/HV);
– Helicópteros Kamov, contrato de operação, manutenção e gestão da aeronavegabilidade da frota, por um período de quatro anos, com 8640 HV incluídas, no valor total de 46077 m€ (média de 5333€/HV).
Nota: os Kamov, sendo, neste momento, meios aéreos do Estado operados por empresa privada, não têm obviamente os custos de investimento da aquisição incorporados, ao contrário das frotas Fireboss e Canadair.
VI – Os modelos de meios aéreos próprios com custos partilhados ou “utilizador/pagador”
Como vimos, a presença de meios aéreos próprios no combate a IF é comum em muitos países. Da mesma forma que é a sua utilização transversal em benefício de várias entidades públicas e a partilha de custos entre utilizadores, como agora proposto pelo GT-MAMIP, não sendo, por isso, nenhuma solução original.
Referimos aqui, contrariando algumas vozes críticas, que não vence a argumentação baseada apenas na análise redutora do custo/benefício de frotas para comparar modelos de utilização, atendendo a que as mais-valias obtidas com as vantagens da utilização de meios próprios, principalmente as do domínio do interesse estratégico nacional, não são quantificáveis.
Aproveitamos a este propósito para refutar algumas acusações ao modelo surgidas na praça pública de acusações de “interesses militares” e de estes pretenderem “viver do orçamento da Administração Interna”. Em primeiro lugar porque o estudo foi resultado de discussão e participação de todos os intervenientes no processo; seguidamente, porque as entidades do Estado estão obrigadas ao dever de cooperação e de defesa do interesse público; e, finalmente, porque o princípio de utilizador/pagador não representa nenhuma novidade, atendendo que até com a EMA era utilizado pelas entidades sob tutela do MAI, pelo que só poderemos considerar estas afirmações de especulativas ou de má-fé.
Importa,contudo, encontrar uma plataforma de entendimento que permita materializar o modelo, provavelmente na forma de um Protocolo entre as diversas entidades públicas utilizadoras, ou entre as suas tutelas, que traduza com clareza asatribuições e responsabilidades de cada entidade, procedimentos de disponibilização e de activação dos meios e, talvez o mais importante, princípios de coordenação e de comando e controlo, assim como a definição do preço justo pelos serviços prestados.
Damos como exemplo o que se passa em Espanha (onde coexistem também meios aéreos próprios e privados), havendo, porém, a distinção entre meios nacionais e meios autonómicos e locais[22]. Quanto aos meios nacionais, em número de 68, significando 45% do total de carga, geridos pelo Ministério da Agricultura, Alimentação e Meio Ambiente (MAGRAMA), estes englobam[23], entre outros, 18 Canadair 215 e 415 (embora não sejam utilizados mais que 13), pertencentes a este ministério ou ao da Defesa, sendo que os da Defesa estão adstritos à “Unidad Militar de Emergencias” (UME), mas operados e mantidos pelo Grupo 43 da Força Aérea Espanhola, no âmbito de Protocolo firmado em 2007.
Os restantes meios aéreos nacionais são privados, com excepção de dois helicópteros de observação (BK117) que são propriedade do MAGRAMA, mas operados e mantidos pela “Guardia Civil”, no âmbito de um convénio para o efeito, e que estão disponíveis todo o ano, em complemento a missões de segurança interna.
O Protocolo MAGRAMA/MD define as necessidades operacionais, de manutenção e de disponibilidade, e ainda as condições de coordenação e de complementaridade destes meios com o conjunto de meios da UME. Este Protocolo criou também uma Comissão Paritária que reúne periodicamente para definir, entre outros, os destacamentos e a liquidação económica de cada campanha.
Como se vê, citando o exemplo de Espanha e anteriormente dos EUA, é possível compaginar os interesses de diversos utilizadores públicos e definir uma política de custos/benefício, contrariando algumas vozes reticentes, ao que parece porque se limitam a ver esta problemática dos meios aéreos próprios confinada apenas ao combate ao IF, esquecendo-se, deliberadamente ou não, da transversalidade, economias de escala e do interesse estratégico que esta solução encerra.
“É importante maximizar as práticas de duplo uso e de partilha de recursos, bem como eliminar todas e quaisquer formas de duplicação de meios públicos” – Conceito de Acção Estratégica Nacional.Esperemos apenas que esta aspiração, no que toca aos IF, não caia no esquecimento, como quase sempre tem acontecido com o fim da canícula.
[1]TVI – Governo adia compra meios aéreos
[2]Parlamento: resposta a requerimento
[3]Parlamento: resposta a requerimento
[4]Tribunal de Contas: relatório de auditoria 2007
[5] Cfr Resoluções do Conselho de Ministros Nº 60/2006 e 61/2006
[6 ]http://ionline.sapo.pt/481711
[7]Tribunal de Contas: relatório auditoria 2014
[8]https://dre.pt/application/file/3064806
[10]https://dre.pt/application/file/67614452
[11]http://www.base.gov.pt/base2/rest/documentos/92929
[12]http://www.base.gov.pt/base2/rest/documentos/124707
[13]http://www.base.gov.pt/base2/rest/documentos/49791
[15]http://www.icnf.pt/portal/florestas/dfci/Resource/doc/rel/2013/rel-anual-13.pdf
[16]Tese de Mestrado
[17]http://www.fs.usda.gov/Internet/FSE_DOCUMENTS/stelprd3836600.pdf
[18]http://www.fs.usda.gov/Internet/FSE_DOCUMENTS/stelprd3836600.pdf
[19]http://fireaviation.com/2013/05/11/ten-things-to-know-about-maffs-military-air-tankers/
[20] JONES, Jennifer – “Fire Management Today”, Nr 1/2012, “MAFFS II proves effectiveduringthe 2011 Fire Season”
[21]http://www.vcstar.com/news/debate-over-use-of-maffs-fuels-an-old-battle-ep-363399179-352036161.html
Miguel Machado é
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