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JUSTIFICA-SE A POLÍCIA JUDICIÁRIA MILITAR?

Por • 30 Set , 2018 • Categoria: 02. OPINIÃO Print Print

Os recentes acontecimentos relacionados com o desaparecimento e a posterior recuperação do material de guerra dos paióis de Tancos, com alguma demagogia e oportuno aproveitamento têm servido de justificação para aqueles que de há muito pretendem a extinção da Polícia Judiciária Militar (PJM) e a passagem das suas atribuições e competências para a Polícia Judiciária (civil).

Intróito

Ora recordando apenas dois casos conhecidos ocorridos não há muito tempo, o do presidente do Instituto dos Registos e Notariado e o do director nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras que foram presos e neste momento até já julgados e que se saiba, ninguém por esse facto veio pedir a extinção de nenhum daqueles organismos ou a passagem das suas competências para outras entidades.

Em inúmeras análises e debates televisivos e em diversos comentários na imprensa em geral vêm surgindo as dúvidas sobre a necessidade e até, pasme-se, a legalidade da existência da PJM.

É precisamente sobre a sua justificação que este pequeno texto versa, sem nada referir sobre as ocorrências de Tancos, responsabilidades ou culpabilidade de quem quer que seja, não deixando no entanto de apelar ao muito propalado princípio da presunção da inocência que para alguns casos é profusamente enunciado, mas noutros reiteradamente esquecido.  

Polícia Judiciária Militar

A Polícia Judiciária Militar (PJM), a par da existência de Juízes Militares em todas as instâncias criminais e de Assessores Militares junto do Ministério Público (MP), com o Código de Justiça Militar (CJM), este enquanto fonte substantiva do direito militar, dão corpo ao Sistema de Justiça Militar constitucionalmente consagrado.

A Polícia Judiciária Militar é um órgão de polícia criminal (OPC) com competência específica para a investigação dos crimes estritamente militares.

Tem ainda competência reservada para a investigação de crimes cometidos no interior de unidades, estabelecimentos e órgãos militares.

Os demais órgãos de polícia criminal, devem comunicar de imediato à PJM os factos de que tenham conhecimento relativos à preparação e execução de crimes da sua competência, apenas podendo praticar, até à sua intervenção, os actos cautelares e urgentes para obstar à sua consumação e assegurar os meios de prova.

Contudo, tal não prejudica a competência conferida à Guarda Nacional Republicana (GNR) pela Lei de Organização da Investigação Criminal (LOIC) ou pela respectiva Lei Orgânica para a investigação de crimes comuns cometidos no interior dos seus estabelecimentos, unidades e órgãos.

Os efectivos militares necessários ao funcionamento da PJM são assegurados em termos a definir por despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da defesa nacional e da administração interna, respectivamente para os militares das Forças Armadas ou da Guarda Nacional Republicana.

Podem ser nomeados para o desempenho dos cargos ou exercício de funções a que se refere o número anterior, militares dos quadros permanentes nas situações de activo ou de reserva na efectividade de serviço e militares em regime de contrato e de voluntariado.                                                                        

A investigação dos crimes militares sempre coube a investigadores subordinados ao estatuto da condição militar, podendo recair sobre militares das FFAA ou da GNR, embora na dependência funcional do Ministério Público (MP), como não podia deixar de ser, porque pela natureza dos crimes e pelos bens jurídicos tutelados, a investigação dos mesmos deve ser da responsabilidade de um órgão que percepcione facilmente os interesses jurídicos em causa (interesses militares da defesa nacional).

É também esta a razão da existência de juízes militares nos tribunais que julgam os crimes de natureza militar, de assessores militares junto dos magistrados do MP na fase de inquérito e de uma secção especializada para a investigação deste tipo de crimes nos Departamentos de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa e do Porto.

Relembre-se o elenco dos crimes estritamente militares previstos no CJM para melhor se compreender a sua especificidade.

Crimes contra a independência e a integridade nacionais (artº25 a 37)

(Exemplos: Traição à Pátria; Infidelidade no serviço militar (corrupção).

Crimes contra os direitos das pessoas (artº38 a 56)

(Exemplos: Incitamento à guerra; Crimes de guerra contra pessoas).

Crimes contra a missão das Forças Armadas (artº57 a 65)

(Exemplos: Capitulação injustificada; Actos de cobardia). 

Crimes contra a segurança das Forças Armadas (artº66 a 71)

(Exemplos: Abandono de posto; Incumprimento dos deveres de serviço; Entrada ou permanência ilegítimas em instalações militares).

Crimes contra a capacidade militar e a defesa nacional (artº72 a 84)

(Exemplos: Deserção; Extravio, Furto e Roubo de material de guerra).

Crimes contra a autoridade (artº85 a 100)

(Exemplos: Insubordinação; Abuso de autoridade).

Crimes contra o dever militar (artº101 a 104)

(Exemplos: Ultraje à Bandeira Nacional; Evasão militar).

Crimes contra o dever marítimo (artº105 a 106)

(Exemplos: Perda ou Abandono de navio).

Os próprios crimes do foro comum cometidos no interior de instalações militares têm uma possibilidade de dano que extravasa o núcleo do bem jurídico que tutelam porque, em razão do lugar onde são cometidos estão conexionados com a vivência militar afectando valores de confiança e de disciplina interna das Forças Armadas e de outras forças militares.

A investigação dos mesmos por outro OPC que não o militar colidiria com questões operacionais e de segurança e seria prejudicial à coesão e à confiança da Instituição Militar.

A acrescer a estas razões, existe uma outra de natureza excepcional que se prende com a situação de guerra em que são criados tribunais militares que podem chegar a ser exclusivamente constituídos por juízes militares e em que o MP pode ser substituído por um oficial das Forças Armadas, onde seria no mínimo estranho que o OPC encarregue da investigação criminal fosse de natureza civil.

Na mesma linha de raciocínio se afigura completamente descabido que um crime cometido num qualquer TO no estrangeiro no seio das Forças Nacionais Destacadas (FND) viesse a ser investigado por um OPC que não tivesse a natureza militar.                                            

Conclusão

A argumentação da duplicação de entidades de investigação criminal (PJM e PJ) não colhe, na medida em que o âmbito de intervenção de cada um destes OPC (quer em termos materiais – crimes estritamente militares; quer em termos espaciais – crimes cometidos no interior de instalações militares) não é o mesmo, para além do facto do nosso sistema de investigação criminal ter optado por um modelo de pluralidade de OPC.

Todavia para que o modelo funcione sem atropelos nem concorrências perniciosas é necessário que as atribuições e competências de cada um sejam respeitadas, e mesmo naqueles casos fronteira de possível indefinição, caberá ao titular da acção penal, o MP, a definição clara de qual o OPC indicado para a investigação.

A este propósito uma pequena nota, é que de acordo com o artigo 113º do CJM, não pode haver conexão de processos de natureza estritamente militar e outros.

Mas mesmo que por absurdo se pretendesse a extinção da PJM, o mesmo não significaria a transferência das suas competências para uma estrutura civil dada a total contradição que essa solução representaria uma vez que no nosso país é bem clara a opção por um modelo dual, onde para além de polícias civis, permanece uma força de natureza militar, a GNR que por sinal é um OPC com mais de 1000 militares qualificados com o curso de investigação criminal que actualmente detém competência para investigar crimes cometidos no interior dos seus quartéis.

Se de acordo com o estatuto da PJM os militares da GNR, a par dos das FFAA, podem integrar aquele OPC, a eventual extinção da PJM implicaria que a GNR passaria a ser o único OPC de natureza militar em que os seus elementos possuem o estatuto da condição militar, não se compreenderia a opção pela PJ (civil) para prosseguir as atribuições e competências da PJM no que respeita à investigação de crimes estritamente militares e dos crimes comuns praticados no seio de instalações militares.

Acresce que com recurso ao direito comparado, em todos os países do sul da Europa e outros onde existem “gendarmeries” (Espanha – G.Civil; França – Gendarmerie Nationale; Itália – Carbinieri), são estas que desempenham as funções de PJM, ao contrário do que sucede na generalidade dos países anglo-saxónicos, em que aquela missão está atribuída às Polícias Militares.

O que não é usual é encontrarmos solução semelhante à ora preconizada, com a atribuição de funções de investigação de crimes militares a uma polícia civil.

Em síntese, a eventual extinção da PJM e a atribuição das suas competências a uma Polícia civil, contraria totalmente a opção por um sistema dual, com uma polícia civil e uma de natureza militar, põe em causa a coesão e a disciplina das Forças Armadas e de outras forças militares e contraria o próprio Sistema de Justiça Militar.

Legislação de suporte

Lei nº100/2003, de 15 de Novembro; Lei nº63/2007, de 6 de Novembro; Lei nº49/2008, de 27 de Agosto; Lei nº97-A/2009, de 3 de Setembro; DL nº200/2001, de 13 de Julho; DL nº9/2012, de 18 de Janeiro.

Lisboa, 30 de Setembro de 2018

Carlos Manuel Gervásio Branco (coronel na reserva)

 

 

 

 

 

 

 

 

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