HORÁRIO DE REFERÊNCIA PARA OS MILITARES DA GUARDA
Por Miguel Machado • 9 Out , 2016 • Categoria: 02. OPINIÃO PrintO Coronel Carlos Branco aborda o horário de referência aprovado para a GNR, mostrando de forma cristalina que “esta portaria não teve em conta a realidade concreta da sua aplicação, o que pode inviabilizar uma correcta regulamentação“, que “a sua implementação trará, inevitavelmente, prejuízo para o serviço, o que significa menos segurança para as pessoas e bens” e ainda até que ponto, parecendo o contrário, poderá – e já está a – ser prejudicial para os militares da Guarda.
“O serviço militar desenvolve-se em cumprimento de missões; não é burocrático nem condicionado por limitações de horário de trabalho. As prescrições de horário que os comandos estabelecem têm em vista a coordenação de esforços e o melhor processo do cabal cumprimento da missão” (nº3 do artigo 4º do Regulamento Geral do Serviço das Unidades do Exército (RGSUE)
Uma nota prévia para referir que em 2010 o Estado espanhol foi condenado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia[1] por incumprimento da Directiva 2003/88/CE (tempo de trabalho na UE) relativamente aos militares da “Guardia Civil”, uma vez que a ordem ministerial de 2006 que incorporava aquela directiva no direito interno apenas se destinava aos militares das Forças Armadas.
Ainda a este propósito cabe mencionar que muitas das “Gendarmeries” europeias possuem horários de serviço, com limites que se situam entre as 36 e as 42 horas semanais, cujos excessos são compensados monetariamente ou em dias de licença e que as Forças Armadas de alguns países membros da OTAN também estão sujeitas a um limite horário de prestação de serviço, o que, para os militares portugueses, constitui certamente um desvio ao que até agora era entendido como “dever de disponibilidade”, embora sempre tenha existido um “horário de serviço das unidades”[2], o que é diferente.
Estaremos a viver um novo paradigma da condição militar que se encaminha para aquilo a que o Coronel Mira Vaz apelidou de “civilinização” das Forças Armadas.
Decorrente do artigo 26º do estatuto dos militares da GNR, aprovado pelo DL nº 297/2009, de 14 de Outubro, que previa um “horário de referência” semanal “para o exercício das funções policiais” por parte dos militares da Guarda, no passado dia 22 de Julho foi publicada no Diário da República a Portaria nº 222/2016, do Ministro das Finanças e da Ministra da Administração Interna, que veio regular o “horário de referência” para os militares da GNR.
Numa primeira leitura, podemos constatar que de “referência” apenas tem o nome, porque, na realidade e em substância, trata-se de um verdadeiro “horário de trabalho”, o que, só por si, constitui uma contradição relativamente à disponibilidade permanente inerente à condição militar, embora formalmente mitigada com o que dispõe o nº 6 do artigo 3º que se transcreve para melhor elucidação do leitor:
“O disposto nos números anteriores não prejudica, em caso algum, o dever de disponibilidade permanente decorrente da condição militar, nem constitui circunstância dirimente de responsabilidade disciplinar ou criminal por recusa de comparência, abandono ou ausência, sem motivo legítimo, do posto, local ou área determinados para o exercício de funções, para além do período máximo de trabalho referido no artigo anterior”.
Mas vejamos porque se afirma estarmos perante um “horário de trabalho” e não um “horário de referência” como seria suposto.
Em primeiro lugar, e sob o ponto de vista formal, devido à própria terminologia utilizada no texto da portaria, onde amiudadas vezes se utilizam os termos “trabalho” e “actividade laboral”, léxicos alheios ao vocabulário utlizado na legislação destinada a militares[3].
De facto, o nº 1 do seu artigo 2º, ao definir o dito horário, refere sem margem para dúvidas: “o período máximo de trabalho dos militares da Guarda é de 40 horas semanais…”.
Mas, mesmo que a utilização do termo “trabalho” em vez de “serviço” tivesse sido um mero lapso de linguagem, a verdade é que, ao fixar um número exacto de horas semanais (40 horas) de “trabalho”, não se está a dar qualquer referência, que sempre se situaria entre dois valores, por exemplo 38/42 horas ou, em alternativa, através da utilização do termo “tendencialmente” a preceder o número de horas, mas pelo contrário, a opção foi a de fixar substantiva e peremptoriamente, com uma imperatividade absoluta, um número rígido de horas.
E de nada valem as menções preambulares, como que fazendo uma profissão de fé da condição militar, “garantindo um adequado equilíbrio entre o dever de disponibilidade decorrente da condição militar”, porque a substância do diploma contraria aquelas ressalvas.
A fixação de um limite rígido de horário de serviço, a ser prestado pelos militares, ainda acrescida da obrigatoriedade de tempos mínimos de descanso, são suficientemente demonstrativas da irrelevância que o legislador vem atribuir ao dever de disponibilidade inerente à condição militar, confundindo-o com a disponibilidade de outras categorias profissionais, designadamente dos polícias ou dos profissionais de saúde.
É que este dever é (ou era…) diferente de todos os demais.
A disponibilidade militar para o serviço é permanente, seja em termos temporais (não há horários de trabalho, nem regimes compensatórios por serviço em domingos e feriados), seja em termos de mobilidade geográfica, ainda que com o sacrifício de interesses pessoais do militar e da sua família, ao passo que as outras disponibilidades são sempre condicionadas.
O facto de incluir na imperatividade deste horário “os cursos de formação e promoção” (nº3 do artigo 3º) condicionará a própria formação do militar, que tem que abarcar períodos mais ou menos alargados de instrução diurna ou nocturna e exercícios que não se compadecem com este tipo de limitações.
E embora o citado artigo 26º do estatuto tenha ressalvado, e bem, que este horário apenas se refere ao “exercício de funções policiais” por parte dos militares da GNR, atendendo a que “a GNR é constituída por militares e que se organiza num Corpo Especial de Tropas”[4]a portaria que o veio regular parece ter esquecido aquela ressalva, não sendo clara na exclusão das actividades e serviços que não sejam policiais e confundindo mesmo, “prestação de serviço” por parte dos militares com “horários de serviço das unidades”, o que manifestamente extravasa o seu âmbito.
Ao abranger expressamente naquele limite horário a “frequência de cursos”, está a ir claramente mais longe do que a própria lei habilitante, o que torna este segmento de duvidosa legalidade.
Por outro lado, a forma como a portaria manda condicionar a regulamentação do dito horário (artigo 6º), de que constituem exemplos entre outros, “a fixação dos períodos de funcionamento e de atendimento das unidades, órgãos e serviços”,[5]que note-se, deve ser uma prerrogativa dos respectivos comandantes e que não se deve confundir com os tempos de “serviço policial” a prestar por cada militar, mostra um total desconhecimento do que é um Posto da GNR, onde não podem existir “horários de atendimento” ou da realidade que é uma unidade operacional, em que não se fixam “períodos de funcionamento”; assim como as referências a “tempo de trabalho, interrupções e intervalos e o tempo de repouso entre serviços”, cuja formulação os tornaria incomportáveis com o que efectivamente é o serviço prestado pelos militares da Guarda, são apenas dois exemplos de como esta portaria não teve em conta a realidade concreta da sua aplicação, o que pode inviabilizar uma correcta regulamentação.
Acresce que não foram acauteladas as situações de emergência e inopinadas, como sejam, por exemplo, o apoio dado às populações aquando de cheias ou incêndios que, obviamente, não se compadecem com o dito horário e cuja compensação em crédito de horário (artigo 4º) aos militares empenhados nessas situações excepcionais, tornariam inviável a continuidade do serviço no futuro.
Será muito importante que a clarividência e o bom senso revelados pelo legislador aquando da elaboração do estatuto (decreto-lei) não venham agora ser postos em causa na implementação do horário de referência.
Cabendo ao comandante-geral da GNR a difícil tarefa de proceder à sua regulamentação, importaria que nesta sede não se ignorasse que a lei efectivamente dispõe que o dito horário visa apenas e tão só “o exercício de funções policiais”, o que significa que dele se devem excluir todas as actividades e serviços fora do âmbito daquela função.
É o caso, nomeadamente, dos serviços decorrentes das missões de segurança a aquartelamentos e aos órgãos de soberania ou os da prestação de honras militares de Estado, bem como dos inerentes à organização e funcionamento interno das unidades, como sejam, por exemplo, a guarda de polícia[6] ou o serviço de oficial de dia[7], de sargento ou de cabo de dia (não se compreenderia que estes serviços fossem desempenhados por turnos), para só citar alguns, resultantes da vivência normal de uma unidade e essenciais para ao seu funcionamento, aliás, comuns às Forças Armadas, donde não podem restar dúvidas sobre a sua não inclusão na função policial, sob pena de se subverter o espírito e a letra da lei e de se contaminarem as próprias Forças Armadas.
Por outro lado, a rigidez que a portaria impõe, designadamente com os condicionalismos dos sucessivos tempos de trabalho e de descanso, os militares colocados num determinado Posto com um reduzido efectivo e que estejam afastados do seu agregado familiar, também passarão a ter muita dificuldade em se deslocar para visitar a família, a não ser no período de férias, obrigando-os a permanecer no Posto, mesmo não estando serviço, nos tais intervalos obrigatórios para descanso, porque devido à sua limitação temporal não permitirão grandes deslocações.
Tanta regulamentação irá certamente retirar flexibilidade aos comandantes para conceder dispensas aos militares quando estes necessitem de uma tarde ou de um dia para tratar de assuntos da sua vida privada, remetendo-os para o denominado “crédito horário”, o que também não será em última análise, benéfico para os militares.
Que não se depreenda que estamos a defender “trabalho escravo”, mas um verdadeiro horário de referência de prestação de serviço, flexível e adequado às diferentes situações, que não colida com o funcionamento das unidades, com a condição militar, nem com o cumprimento da missão, que, por não se tratar de um verdadeiro horário de trabalho, deverá comportar compensações, como sejam, por exemplo, mais dias de licença de férias ou um regime de reforma mais favorável que os da generalidade de outros servidores do Estado, para só citar dois exemplos.
Mesmo sem nos prendermos muito com o articulado do diploma e independentemente de juízos de valor sobre o mérito ou demérito do mesmo, sempre diremos que a sua implementação trará, inevitavelmente, prejuízo para o serviço, o que significa menos segurança para as pessoas e bens, bem como menor imedeatividade e prontidão nas respostas, porque, sem aumento de efectivos, que já estão abaixo dos quadros orgânicos, e com uma diminuição global do volume horário de serviço, é óbvio que não se pode cumprir a missão da mesma forma e com a mesma capacidade de resposta.
Em conclusão, esta “benesse”, que numa primeira leitura pode parecer positiva, poderá no futuro (o que parece já está a suceder) mostrar-se prejudicial para os militares da GNR que assim se afastam dos restantes militares (FFAA) e da própria condição militar, correndo o risco de passarem a ser considerados “militares de segunda”, porque ao contrário do que ocorre nalguns países, designadamente em Itália em que os “Carabinieri” de há muito estão sujeitos a um horário, também as Forças Armadas italianas o estão, não havendo por consequência tratamentos diferenciados entre uns e outros.
Não se pode querer ser militar apenas para a parte boa.
Nota: O horário de referência foi entretanto regulamentado pelo General Comandante-Geral da GNR.
Lisboa, 7 de Outubro de 2016
Carlos Manuel Gervásio Branco, Coronel (Res)
[1] Acórdão de 20 de Maio de 2010 (processo C-158-09, Comissão Europeia contra Espanha).
[2] Ver artigo 20º do RGSUE e artigo 28º do RGSGNR (horário de serviço), o que é diferente de horário máximo para prestação de serviço por parte dos militares.
[3]“Aos militares na efectividade de serviço não são aplicáveis as normas constitucionais relativas aos direitos dos trabalhadores cujo exercício pressuponha os direitos fundamentais a que se referem os artigos seguintes, na medida em que por eles sejam restringidos,nomeadamente a liberdade sindical, o direito à criação e integração de comissões detrabalhadores e o direito à greve” (Nº3 do artigo 26º da Lei de Defesa Nacional).
[4] Artigo 1º, nº1 da Lei nº63/2007, de 6 de Novembro.
[5] “O serviço das unidades é contínuo e pode ser accionado por duas cadeias de responsabilidade distintas: a) Uma é a cadeia normal de comando, que acciona todo o serviço, e que funciona quando todos os seus órgãos estão activos e que, em geral, corresponde ao período normal de expediente; b) A outras, reduzida, substitua e delegada da primeira, que é constituída pelo pessoal nomeado diariamente para o serviço, segundo o critério de escala estabelecido, e que acciona o serviço da unidade, quando em actividade reduzida” (artº 27º do RGSGNR).
[6] “Guarda”, é a força armada, de efectivo variável e adequado às circunstâncias, que pode ser colocada em instalações da GNR, edifícios públicos ou outros locais, com o objectivo de, através de sentinelas e de patrulhas, conjugadas com animais e meios tecnológicos de vigilância e detecção, vigiar determinadas áreas ou manter a sua segurança. A guarda ao quartel denomina-se de polícia e as exteriores de guarnição (artigo 129º do RGSGNR) ou “Guarda”, é uma força militar armada colocada geralmente pelo espaço de 24 horas nos quartéis ou outros locais, a fim de garantir a defesa imediata. A guarda ao quartel denomina-se de “polícia” e as exteriores, de “guarnição” (artigo 86º do RGSUE).
[7] Artigo 40º do RGSGNR e artigo 31º do RGSUE.
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