FORÇAS ARMADAS PROFISSIONAIS, SOLUÇÃO PARA PORTUGAL
Por Miguel Machado • 19 Jul , 2018 • Categoria: 02. OPINIÃO, EM DESTAQUE PrintPerante a falta de voluntários que afecta a capacidade operacional das Forças Armadas, em especial o Exército, muitos defendem hoje o retorno ao Serviço Militar Obrigatório (SMO) o qual teria também outras vantagens para a sociedade em geral. Se o actual sistema de serviço militar está claramente a falhar, parece-nos que o caminho não será o retorno ao SMO – que também se esgotou – mas ao contrário, umas Forças Armadas só com pessoal do Quadro Permanente (QP). Dizemos aqui porque nos parece valer a pena estudar seriamente este assunto, sem preconceitos nem agarrados a dogmas.
Regresso ao passado?
Não há hoje na sociedade portuguesa qualquer apetência por parte dos jovens para cumprir o serviço militar, e a prova mais evidente disso é a falta gritante de voluntários. Fosse qual fosse a justificação para o impor por força da lei, seria sempre recebido como um castigo! Haveria assim condições políticas e sociais para se voltar ao SMO? Não acreditamos e as perguntas que deveriam ser respondidas antes de se avançar para este eventual regresso ao passado são muitas e mesmo sem as esgotar aqui estão algumas:
– Dos cerca de 120.000 jovens de ambos os sexos em idade militar, quantos deveriam ser chamados a prestar serviço? Recorda-se que hoje as Forças Armadas Portuguesas têm apenas 30.000 efectivos (dos quais 12.000 praças) e o orçamento é manifestamente escasso para o seu funcionamento, seria exequível aumentar este número para o dobro por exemplo? Mesmo assim ainda ficariam cerca de 90.000 jovens fora do sistema! Como se seleccionavam os 30.000 que seriam “chamados”? Mais mulheres do que homens ou igual número? As mulheres seriam dispensadas? Os mais habilitados em termos académicos ou os fracassados do sistema de ensino? Ou “à sorte”? Ou, a opção seria tipo Suécia, recrutaríamos apenas uns 4.000 jovens para suprir algumas faltas do sistema? E quem seriam então estes(as)?
– E qual seria o “pré”, de novo uma quantia simbólica que nem daria para “ir a casa” ao fim-de-semana, ou um ordenado mínimo? O Estado poderia pagar mais umas dezenas de milhares de “funcionários públicos”?
– Há hoje capacidade para seleccionar, receber, alojar, alimentar, equipar, armar e treinar dezenas de milhares de jovens de ambos os sexos nos actuais quartéis? Qual o investimento necessário em infra-estruturas, e quanto tempo demoraria a concretizar? E as condições de vida que iriam ser proporcionadas a estes jovens nos quartéis seriam as do tempo do SMO – casernas com condições espartanas – ou as actuais que se estão, muito lentamente, a tentar criar para os voluntários, com as comodidades de hoje?
– Os hospitais das Forças Armadas estão hoje sem as condições que seriam de esperar para o efectivo actual, que investimento seria necessário em pessoal de saúde e em infra-estruturas para acolher um aumento exponencial do efectivo? Este pessoal teria direito a alguns apoios sociais? Ou pelo contrário as suas famílias e eles próprios seriam excluídos da Assistência na Doença aos Militares/ Instituto de Ação Social das Forças Armadas, a qual como se sabe vive com enormes limitações e roturas várias?
– Se o “sistema” dos 4 meses foi um completo falhanço, quantos meses deveriam agora os jovens prestar serviço? Um ano? Que reais capacidades operacionais as Forças Armadas iriam adquirir com estes jovens depois da formação? Quais as especialidades que efectivamente poderiam desempenhar na Marinha, Exército e Força Aérea jovens com cerca de 6 meses (ou menos!) de serviço útil?
– E oficiais e sargentos – especialmente dos postos mais baixos – em quantidade para ministrar instrução e depois para enquadrar as novas unidades? É que no momento presente os quadros estão dimensionados para o efectivo existente. Teriam que ser recrutados mais sargentos e oficiais para enquadrar este novo efectivo.
Ou seja, mesmo sem levantar questões de natureza politica, apenas no campo militar, seria necessário um investimento de muitos milhões de euros e durante um espaço de tempo não displicente (vários anos!) para preparar as Forças Armadas quer em termos de infra-estruturas e materiais quer em termos de pessoal, para receber largos milhares de jovens.
Forças Armadas Profissionais
A solução para os problemas de recrutamento podem ser tentadas no quadro actual – serviço militar com pessoal profissional (QP – Quadro Permanente) e não-profissional (RC – Regime de Contrato) – com melhores vencimentos para os soldados, contratos mais longos e melhores condições de vida nos quartéis e nos apoios sociais para os militares e famílias. Seria suficiente? Não sabemos, nunca foi seriamente tentado nem se sabe a que investimento isso corresponde. Não tem havido vontade política para isto nos partidos que têm ocupado o governo, fala-se há anos nestas soluções. O que está feito é uma gota de água e não um programa a sério que num “par de anos”, ou sequer em meia-dúzia, invertesse a situação actual. Mesmo que isto fosse feito a sério e tivesse algum resultado palpável, a lei do mercado, a situação do emprego/desemprego iria sempre ter influência na situação e condicionar as soluções de curto-prazo encontradas.
O que de facto sabemos há décadas é que as forças e serviços de segurança não têm falta de voluntários! E também sabemos que isso acontece mesmo sem grandes vencimentos nem apoios sociais, mas apenas com um factor-chave: são profissionais, têm uma carreira nas classes de praças que os levam até à aposentação.
Um dos argumentos para não haver classe de praças profissionais era, em tempos idos note-se, que seriam necessários muitos milhares de soldados e isso não era comportável economicamente. Mas hoje, mesmo mantendo os efectivos da Reforma 2020, o número de praças já é bem menor que o da GNR por exemplo! Os três ramos das Forças Armadas têm um efectivo em praças autorizado de 12.000 e a GNR de 19.000.
A mudança para este novo sistema não necessitaria de mais efectivos dos que há hoje em “ordem de batalha”. Se o sistema de forças actual é o que o País precisa, seria este em que os RV/RC seriam substituídos por QP. Acresce que não seria necessário recrutar “instantaneamente” os soldados profissionais, isso poderia ser escalonado no tempo podendo-se passar ao QP parte dos soldados após uns “x” anos de serviço como RC. É naturalmente muito provável que o número de voluntários para ingressar nas Forças Armadas mudaria e esta mudança poderia assim ser gradual, iniciando-se a passagem ao QP dos que há mais anos estão nas fileiras.
Em termos de competência para lidar com os assuntos mais complexos, tempo para aperfeiçoar a sua formação, capacidade para lidar com os novos sistemas de armas, e assim reflexos positivos em termos de eficácia geral das forças armadas, seja em termos operacionais seja nas áreas de apoio, julgo que não será preciso desenvolver, é por demais evidente.
O serviço profissional também terá contudo problemas para resolver, e talvez o mais delicado, a exigir uma gestão de pessoal de excelência, é a questão da idade dos soldados. Terá que ser acautelada a maneira como os militares mais novos e/ou em boas condições físicas estão atribuídos às tarefas que isso exigem. Hoje em dia todos sabemos que militares jovens, nomeadamente soldados, prestam serviço em departamentos e funções onde podiam (deviam!) estar pessoas de maior idade. Basta passar por um qualquer estado-maior ou direcção de serviços para ver isto.
Devo no entanto lembrar dois aspectos que me parecem pertinentes para enquadrar bem este difícil tema da idade. Desde logo o facto da Marinha, Autoridade Marítima, PSP e GNR, entre outras entidades que têm uma componente operacional e outra de apoio, lidarem com esta realidade dos profissionais nos baixos escalões – “soldados” – e não parece que isso seja impeditivo de cumprirem bem a missão.
Outro aspecto reside no facto de em termos de “longevidade operacional” a questão da idade versus capacidade física tem que ser vista com olhos de hoje! Indivíduos mais velhos mantêm uma excelente capacidade física até idades não há muitos anos impensáveis; em muitas áreas operacionais com os novos sistemas de armas, menos “físicos”, é bem possível prolongar no tempo um excelente desempenho operacional para um operador de idade mais avançada que no passado. Muitos dos nossos leitores certamente conhecem – e podíamos dar exemplos – vários antigos militares portugueses do QP que depois de passarem à reserva hoje são operadores quer na área operacional quer na área logística em organizações internacionais e em empresas militares privadas. Aliás estas empresas que refiro empregam, a nível internacional, uma percentagem significativa de gente bem experiente e nada novos e em tarefas por vezes muito exigentes.
Em termos de motivação pessoal e como atractivo para ser um profissional militar, será muito importante que estatutariamente seja possível e mesmo incentivado que um soldado possa ascender na carreira, e lhe sejam definidas condições concretas e exequíveis para poder vir a ser sargento e oficial. E mesmo chegar a general! Não estou a inventar nada, há países onde assim é.
Deixo para o final mais duas questões, muitas vezes referidas pelos críticos deste sistema inteiramente profissional:
- O afastamento da sociedade civil, que alegadamente este sistema produz. Não se percebe porquê? Se isso não se verifica com os profissionais das forças de segurança porque se produziria com os militares? Se isso não se verifica com os oficiais e sargentos dos quadros permanentes porque se verificaria com os soldados?
- A ameaça que estes supostos Pretorianos, seriam para a normalidade governativa, podendo fazer uso das armas para forçar decisões corporativas que lhes fossem favoráveis. A história de Portugal no século XX demonstra exactamente o oposto! Quem derrubou regimes foram exércitos de conscritos em que massas de soldados foram conduzidos pelos seus oficiais profissionais a apear governos que estes deixaram de apoiar. Ao contrário, nos países ocidentais onde há exércitos profissionais não há registo de qualquer “golpe militar” tipo 28MAI1926 ou 25ABR1974 ou sequer dos vários levantamentos militares menores que fracassaram antes, entre e depois destas datas.
Estude-se e planeie-se, bem!
Tem algumas dificuldades sem dúvida, como a questão da gestão do pessoal e certamente outras menores. Agora a competência de um soldado profissional será certamente superior ao de um soldado obrigado a prestar serviço! O patriotismo de um soldado profissional será, no mínimo, igual ao de um sargento ou de um oficial com igual vínculo às Forças Armadas e a Portugal.
Para terminar, uma questão sempre esquecida por governantes cheios de pressa em concretizar medidas antes do fim “da legislatura” e chefes militares igualmente ansiosos, estude-se e planeie-se, bem! Há vários casos na instituição militar de mudanças atabalhoadas para nos provar os prejuízos causados por não o fazer, do fim do SMO à reforma da saúde militar passando pela transferência dos pára-quedistas da Força Aérea para o Exército e a criação da Aviação Ligeira do Exército ou mesmo a famosa Transformação deste ramo! Analisem-se com dados concretos todas as implicações de uma nova solução, quer em termos financeiros quer em termos humanos e do dispositivo territorial, sem preconceitos nem dogmas, mas tendo sempre presente que as Forças Armadas servem para combater. Analisem-se bem os casos conhecidos em Portugal e em países amigos e aliados, descubra-se o que correu bem e o que correu mal, as realidades de cada país são sempre diferentes, mas certamente ajudaria a não repetir erros de terceiros.
Numa época em que até os bombeiros já são profissionais, parece-nos ser mais do que tempo para Portugal deixar de ter soldados amadores, mesmo que até se possa, finalmente, criar em Portugal uma “reserva treinada” para vir a aumentar o efectivo profissional em caso de necessidade.
Miguel Silva Machado, 19 de Julho de 2018
Sobre esta questão leia também no Operacional – O SERVIÇO MILITAR OBRIGATÓRIO ESTARÁ MESMO DE VOLTA?
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