EXÉRCITO VERSUS IMPRENSA, UM CASO DE ESTUDO
Por Miguel Machado • 16 Abr , 2016 • Categoria: 11. IMPRENSA PrintO Exército mudou de comandante, fora do tempo normal mas não parou, dentro e fora de Portugal cumpre as missões atribuídas através de ordens emitidas pela sua cadeia de comando e não há sobressaltos. Ainda bem que assim é, o país precisa dos militares para cumprir essas missões e não para guerras na praça pública. Mas na origem esteve um “caso” na imprensa.
“O rei morreu, viva o rei!”
É também assim em muitos outros locais no Estado. Já no sector privado nem sempre, a substituição da cúpula não raras vezes conduz à morte da empresa. Quem serve o interesse público tem a obrigação de andar para a frente, aceitar uma nova liderança, permitindo a continuidade da instituição a que pertence, a qual em última análise, juntamente com várias outras, garante a continuidade do país. O seu comandante é sempre o actual, nunca o anterior ou o próximo!
O ramo terrestre passou uns dias agitado na sua cúpula, as coisas voltam ao normal, mas as lições do sucedido devem ser interiorizadas e tomadas medidas correctivas do que correu mal. As “lessons learned” não devem ser apenas assunto de cariz operacional, ou mera figura de estudo académico.
Mesmo que ainda haja aspectos a clarificar, nomeadamente como e quem exactamente tentou interferir nas competências exclusivas do CEME – o que já não há muitas dúvidas, foi o real motivo do pedido de exoneração – deste “caso” já se podem tirar algumas conclusões, parte a merecer intervenção rápida, outras a prazo, todas a ser estudadas nas escolas superiores militares.
No plano dos princípios e da ética militar, o “caso” não oferece dúvidas, o Exército está de boa saúde, a começar pelo seu comandante, e cumpre de acordo com aquilo que ensina nas suas escolas, da Academia Militar ao mais longínquo Regimento de província que ministra “recruta”. O general que saiu mais não fez – para espanto de alguns – que cumprir aquilo que lhe ensinaram e que sempre cultivou ao longo da sua brilhante carreira. O ex-CEME agiu, e age mesmo agora já desligado do serviço quando podia falar, com a mesma postura. Não respondeu ao que a assessoria mediática do ministro, o secretário de estado, e mesmo deputados dos partidos que apoiam o governo, colocaram na imprensa nos dias seguintes ao seu pedido de exoneração. Depois de dirigir aos seus subordinados no último dia como comandante do Exército, 07ABR, uma mensagem onde realça a confiança no futuro, continua a pensar primeiro na instituição e depois na sua própria pessoa ou imagem, não alimentando o assunto.
No entanto, como mais uma vez se prova, parece avisado prevenir futuros “casos” sejam eles no plano político como este, seja noutros, e são muitas as áreas em que o Exército se move por força das suas missões. Diz o povo que “depois de casa roubada trancas à porta” e este caso deverá ser analisado internamente. Propomo-nos dar aqui algumas pistas sobre a temática comunicacional, um pouco na linha do que em tempos tentei fazer com o livro o Exército e a Imprensa (Miguel Machado e Sónia Carvalho, Prefácio – Edição de Livros e Revistas, Lda., Lisboa 2004).
Não se pretende aqui julgar ninguém, sabendo bem que quem serve o faz com a máxima dedicação, sujeito a condicionantes várias. É um exercício de reflexão, feito “no fim do jogo”, tentando identificar o que poderá ser feito para não voltar a acontecer.
“Back to Basics”
O Exército tem um departamento de comunicação – actualmente designado Repartição de Comunicação, Relações Públicas e Protocolo – que em tempos preparava com as unidades e acompanhava, a todas, os jornalistas da imprensa nacional que desejassem realizar reportagens e entrevistas. Assim era porque não havia na estrutura territorial e operacional, organicamente, pessoal encarregado desta temática da comunicação, do relacionamento com os media. Considerava-se ainda, então, que “falar com os jornalistas”, exige conhecimento teórico e prático, o que naturalmente não acontece nas generalidade das unidades, raramente solicitadas pela imprensa nacional, mesmo que sempre tenham a atenção da imprensa local, esta pouca dada a polémicas ou a casos sensíveis, mais noticiosa que interpretativa. Com os anos, a participação em missões internacionais de oficiais nestas funções que depois regressam ao dispositivo em Portugal, a formação em escolas nacionais e mesmo na NATO de pessoal do Exército nesta área – que aliás a Aliança Atlântica desenvolve em profundidade – e algumas alterações orgânicas, este acompanhamento dos “media” foi sendo descentralizado. Talvez a falta de recursos humanos e financeiros também tenha contribuído para isto. Hoje raramente o departamento central acompanha jornalistas ao terreno ou prepara previamente com as unidades este tipo de visitas.
Um pouco à imagem de outros casos que agora não vale a pena desenvolver, deve haver uma reflexão se há realmente gente preparada para falar com os media nas unidades, ou se, não havendo, se deveria entregar essa missão – é uma como qualquer outra – em exclusivo a pessoal realmente especializado? Se o Exército só coloca aos comandos de um carro de combate um militar habilitado para isso, porque não deve fazer o mesmo quando autoriza um oficial, sargento, praça ou civil a falar com um jornalista?
Bem sei que a profusão de acções de formação e cursos com jornalistas, quer dentro do ramo quer fora, em ambiente “friendly”, criando-se até algum conhecimento e amizades, pode induzir em erro, pode dar uma falsa sensação de “saber”. No plano da realidade, neste “campo de batalha mediático”, pode-se resistir em casos banais sem grande preparação e sem orientação especializada, mas não resulta em casos complexos.
Qual é a empresa, pública ou privada, ou departamento do Estado, que nos dias de hoje se dá ao luxo de não cuidar da comunicação em termos profissionais?
Mesmo nas Forças Armadas e de Segurança, não estou a ver, por exemplo, num navio da Marinha, ou num quartel da GNR, só para citar dois exemplos, ou na área privada, num supermercado da SONAE ou numa agência dos CTT, a liberdade de acção, o voluntarismo que se viu no Colégio Militar. As generalizações acabam sempre por ser injustas para alguns – militares e jornalistas – e num mundo ideal não devia realmente haver filtros quando se fala com a imprensa, mas nós vivemos numa sociedade muito mediatizada, onde a generalidade dos agentes políticos, económicos e sociais estão mergulhados, e o Exército tem que lidar com essa realidade.
Fique no entanto claro que a Direcção do Colégio Militar está guarnecida por dois oficiais, director e sub-director, credores da total confiança do comando do Exército, das Associações de Pais e da Associação de Antigos Alunos do Colégio Militar, o que bem atesta a sua competência profissional nas funções em que estão investidos.
Note-se bem, somos de opinião que todos os militares podem e devem falar com a imprensa, do soldado ao general, mais, têm essa obrigação, agora também devem saber as “regras do jogo mediático”. No Colégio Militar todos os que falaram o podiam ter feito, mas previamente teria que ter havido – desconheço o caso em concreto, mas pelos resultados certamente não houve – uma avaliação dos assuntos em presença, e ninguém melhor que a direcção sabe quais são – e em coordenação com gente especializada, definir a abordagem. Não é o autor destas linhas que está a inventar, isto é doutrina usada em muitos exércitos (e empresas, claro, embora estas tenham menos obrigações que as entidades públicas), e em muitos aspectos até aplicada pelos militares portugueses em operações. Quantos já ouviram falar e já leram “talking points”? Coisa simples, mas alguém tem que os fazer e fornecer a quem vai ficar “frente às câmaras”!
Uma leitura atenta das “linhas de orientação no relacionamento com os OCS” que eram (são?) distribuídas aos militares empenhados em missões exteriores, devia ser interiorizada por todos os militares e já era uma boa evolução!
Tempo mediático e tempo militar
Os militares em operações são capazes de avaliar uma situação táctica, e perante as circunstâncias, agir exactamente ao contrário do planeado porque a realidade no terreno assim o exige. No relacionamento com os jornalistas, não raramente os tempos mediáticos não são aceites pela instituição como uma necessidade. A estrutura militar prefere respeitar a sua própria organização burocrática, hierárquica, e depois, as notícias, rigorosas ou nem por isso, aparecem impressas como verdades, difundidas nos mais diferentes suportes, grande parte instantaneamente pelo globo, antes de qualquer resposta oficial.
Neste caso em concreto, note-se que a jornalista Fernanda Câncio do Diário de Noticias – que colocou o assunto “na agenda politico-mediática” três longos dias depois da reportagem do jornal online Observador ter corrido o mundo sem ninguém lhe ligar muito, nem políticos nem militares – no dia 04ABR16 ao final da tarde, pediu ao gabinete do ministro comentários sobre o assunto. No dia seguinte, 05ABR16, o ministro envia respostas à jornalista ao mesmo tempo que faz perguntas ao Exército (sensivelmente as mesmas que enviou à jornalista e ela publica no dia seguinte no jornal). O ramo não responde à jornalista e ela escreve nesse mesmo dia 05, o artigo que dia 06 faz “rebentar a polémica” potenciada pelo destaque de primeira página. Dia 07, o CEME demite-se, tudo indica por pressões que considerou ilegais e ilegítimas vindas do Restelo.
Isto é o tempo mediático, goste-se ou deteste-se, tem que se lidar com ele em tempo de crise.
Um caso destes não pode ter tratamento rotineiro. Desde que a jornalista contactou o ministério até ter escrito o artigo passaram apenas 24 horas. A resposta ou chegava a tempo ou não chegando escrevia o que tinha em cima da mesa. No caso, apenas os termos do pedido de explicações do MDN ao Exército que o ministro entendeu fornecer à jornalista e lhe permitiu fazer o título bombástico “Ministro exige explicações ao Exército”.
As notícias sucedem-se depois, dias seguidos, o Exército sempre em silêncio durante todo o processo, e o ministro da defesa nacional a usar intensamente os media com as suas versões dos acontecimentos, plural porque foram sendo ajustadas às informações que vinham a público pela pena de militares desligados do serviço activo e pelas associações de militares e de pais e antigos alunos do Colégio Militar. Nessas informações prestadas à imprensa o ministério até chega ao ponto de referir que o Exército devia ter tomado a iniciativa de esclarecer o assunto publicamente.
Tutela contra Exército
Hoje apenas “apontamos” àquilo que consideramos o inicio do processo e sobre o qual já se pode fazer alguma reflexão, os dados são genericamente conhecidos. Antes e depois do pedido de exoneração do CEME, aconteceu aquilo que não sendo inédito no nosso país é de muito difícil (senão mesmo impossível) gestão por parte de um ramo das Forças Armadas que queira actuar dentro dos limites da lealdade e do respeito pela hierarquia: o Exército, em termos comunicacionais, enfrentou (em silêncio, como era sua obrigação) ataques na imprensa da assessoria do ministro da Defesa Nacional (a sua própria tutela portanto), do Secretário de Estado da Defesa Nacional em pessoa, e apoiantes políticos do governo, objectivamente “coligados” com alguns jornalistas a quem foi passada informação privilegiada, nunca difundida à generalidade dos media. Quem “assumiu as dores” do Exército foram, uma grande massa de “indignados”, as Associações Militares de Oficiais e de Sargentos, muitos militares desligados do serviço activo, as Associações de Pais e de Antigos Alunos do Colégio Militar, todos, naturalmente sem qualquer informação oficial e muito baseando a sua argumentação em princípios que deveriam reger o relacionamento Ministro/Exército e no que ia sendo publicado.
Aqui coloca-se uma questão interessante: não tendo a tutela política tido contemplações com o Exército, devia este ramo jogar com as mesmas “armas” da assessoria ministerial e constituir-se, como fonte de jornalistas para repor a verdade dos factos? É uma opção tentadora para muitos, mas em última análise julgamos que não, porque iria contra aquilo que sempre defende e defenderá, a lealdade – mesmo que esta deva existir nos dois sentidos e não apenas num como aqui – e porque, se a “novela” continuasse a ser alimentada, no final, o ministro pode sempre alegar falta de confiança política no Chefe Militar e o Presidente acaba por ter que o exonerar. Aconteceu, um “esticar de corda”, por exemplo com o general Alvarenga, CEMGFA, e Paulo Portas, ministro. Este acabou por colocar nos jornais noticias a referir “falta de confiança política”, não deixando opções ao Presidente da República.
As qualidade pessoais do General Carlos Jerónimo e o modo como viveu a sua carreira militar – muito ligado à área operacional e “à tropa” – levaram inúmeros dos seus antigos subordinados, de todas as patentes e origens militares, a manifestarem-se através das redes sociais em sua defesa. Em apoio das atitudes do ministro tomaram posição, além dos aliados políticos com especial incidência para o Bloco de Esquerda, associações de gays/lésbicas que elogiaram as suas exigências públicas ao Exército.
Conclusões
Não é de prever na área político-militar grandes agitações no imediato, o que em boa verdade nunca é garantido, o politicamente correcto de certos sectores partidários com grande influência mediática no actual momento político, não deixa de nos surpreender. Quem ocupa a pasta da Defesa Nacional, acabou por perceber da pior forma e escusadamente, o que é a ética e a lealdade no meio militar – para com superiores e inferiores hierárquicos – o que significa assumir responsabilidades. Constatou que é bem diferente da retórica política que sempre as propala mas muito esporadicamente as concretiza. Agora a realidade é que o Exército, com 14.000 militares aquartelados no continente e ilhas em dezenas e dezenas de locais, interagindo com a sociedade a que pertence, está sempre exposto, e tem que integrar devidamente a comunicação na sua actividade. Aspectos negativos ou positivos de tudo o que faz, e é muito, têm que ser diariamente trabalhados do ponto de vista mediático. A comunicação do Exército abrange áreas muito diferenciadas, e não pode ser entendida apenas como divulgação, publicidade para recrutamento, são necessárias outras dimensões que mesmo sendo felizmente pouco frequentes, não podem ser descuradas. A atenção da imprensa aos “temas fracturantes” não é nova, de quando em quando emerge um. O Colégio Militar pelas suas características e pelas decisões políticas que lhe dizem respeito é há muito uma área crítica do Exército em termos mediáticos e vai continuar. No imediato sabemos qual o ângulo com lugar na agenda politico-mediática, outros se seguirão
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