logotipo operacional.pt

EM MEMÓRIA DE UM ÁS DA AVIAÇÃO NOS AÇORES

Por • 6 Abr , 2011 • Categoria: 05. PORTUGAL EM GUERRA - SÉCULO XX Print Print

Sérgio Rezendes volta a colaborar com o Operacional e publica neste artigo mais uma página da história militar dos Açores. O presente trabalho homenageia o 2.º Sargento Piloto Manuel Cardoso, expedicionário da Aeronáutica Militar, morto em serviço quando integrava o dispositivo de defesa da ilha de São Miguel durante a 2.ª Guerra Mundial.

EM MEMÓRIA DE UM ÁS DA AVIAÇÃO NOS AÇORES

É doloroso (…) mas os que assim morrem ficam vivos no grande livro da Pátria, porque ao serviço da nação morreram…(“Morreu o Sargento-aviador Manuel Cardoso”, Diário dos Açores, n.º 19.378 de 19 de Maio de 1943).


A última passagem de Manuel Cardoso pela Base Aérea n.º 4 (Santana) com guarda de honra constituída por um Gloster Gladiator

A última passagem de Manuel Cardoso pela Base Aérea n.º 4 (Santana) com guarda de honra constituída por um Gloster Gladiator

Intimamente associada à manutenção do equilíbrio e da dualidade Ibérica, bem como a integridade do império Ultramarino, Portugal durante a II guerra Mundial viu-se forçado a defender a importância estratégica dos arquipélagos atlânticos nomeadamente os Açores. Ambas as partes beligerantes viam no arquipélago a hipótese de estabelecer portos e aeródromos para apoio dos seus planos militares, mormente a Inglaterra, os Estados Unidos da América e a própria Alemanha. A protecção do cabo telegráfico inglês, a viabilização da protecção dos comboios marítimos entre as duas margens do Atlântico e a cobertura aérea das rotas eram razões mais do que justificadas para uma invasão inglesa às ilhas açorianas, tornando-se as mesmas uma alternativa a Gibraltar, caso este caísse sob domínio alemão.
Os Açores tornam-se um factor a ter em muita atenção na designada Batalha do Atlântico, por sua vez associada de forma fulcral à conhecida Batalha de Inglaterra. Desgastados pela estratégia alemã com recurso ao uso de matilhas de submarinos na tentativa do domínio do Atlântico, destacam-se pois os 27 planos secretos ingleses para a ocupação dos Açores, bem como o plano americano Rainbow 5 ou mesmo o plano conjunto com a Inglaterra denominado Brisk, em que se ordenava a preparação e prevenção de tropas americanas para o ataque, à semelhança do que já havia sido feito pelos ingleses. Em contrapartida, Adolfo Hitler, preparava a 12 de Novembro de 1940, a Operação Félix em que tomava como objectivos a ocupação da Península Ibérica, Gibraltar, Cabo Verde, Açores e Madeira, providenciando o envio de tropas para a fronteira espanhola. Com uma atenção especial para com os Açores, o füher antevia um possível ataque aos Estados Unidos da América, assente na mais actual tecnologia alemã para a época, bem como o domínio do Atlântico. Estavam pois criadas todas as condições para que qualquer parte em conflito, caso fosse necessário ou mesmo possível, tomar as ilhas açorianas, com ou sem consentimento do Estado Português.

Recepção a militares expedicionários em Angra do Heroísmo. Atente-se na patrulha acrobática de Gladiators da Base Aérea n.º 5 (Lajes).

Recepção a militares expedicionários em Angra do Heroísmo. Atente-se na patrulha acrobática de Gladiators da Base Aérea n.º 5 (Lajes).

Perante o deflagrar do conflito, o Presidente do Conselho de Ministros português, Dr. António de Oliveira Salazar, rapidamente declarou a neutralidade portuguesa e em virtude de interesses mútuos estreita ainda mais os objectivos do conhecido Pacto Ibérico assinado em 1939 com Espanha. Percebendo a importância pelo domínio do Atlântico e subsequentemente dos Açores, António de Oliveira Salazar começa a preparar a defesa das ilhas logo em finais de 1939, situação que se consolidaria após a queda da França. Perante uma ameaça bastante real de invasão ao continente português e à consequente necessidade de retirar o Governo para local seguro (ao que tudo aponta para os Açores), o Presidente de Conselho de Ministros desenvolve duas linhas de acção com particular interesse: acentua os esforços da diplomacia no sentido da neutralidade enquanto que paralelamente desenvolve um esforço militar pela soberania nacional e ultramarina, do qual os Açores haveriam de constituir um caso muito particular, não fosse a área do império que mais soldados continentais recebeu (cerca de 26. 500 homens) para reforçar as guarnições locais, totalizando um número aproximado de 30.000 a 32.500 homens, dispersos pelas ilhas de S. Miguel, Terceira e Faial. Em conjunto com um tão alto efectivo vieram as máquinas, desde os aviões e hidroaviões aos tractores para a construção de aeródromos, passando por viaturas de comando, transporte geral e pessoal até motorizadas.

Patrulha de Gloster Gladiator.

Patrulha de Gloster Gladiator.

O presente trabalho tem com destino homenagear um destes expedicionários, morto em serviço quando o dispositivo para a defesa da ilha de São Miguel já se encontrava ao rubro.
O esforço desenvolvido pelo estado português na defesa das ilhas tinha subjacente a necessidade de assegurar um efectivo mínimo de meios aéreos inexistente até à data no arquipélago. Foram pois mobilizadas duas esquadrilhas de caças, que desembarcaram a 7 de Junho de 1941 em Ponta Delgada estacionando a Esquadrilha de Aviação de Caça n.º 1 no aeródromo de Santana, em Rabo de Peixe (B.A. 4) e a Esquadrilha de Aviação de Caça n.º 2 em Lajes, na ilha Terceira (B.A. 5). A eficácia da Arma de Engenharia rapidamente permitiu a operação dos aviões Gloster Gladiator que equipavam estas unidades, iniciando-se em relativamente pouco tempo os treinos e reconhecimentos aéreos.

Gloster Gladiator versão MK II

Gloster Gladiator versão MK II

O Gloster Gladiator era um caça biplano inglês desenvolvido ao logo da década de 1930 em virtude do desejo britânico em ter uma aeronave com grande capacidade de fogo e que atingisse velocidades na ordem dos 400 km/h.
Se em 1941 fossem considerados como modestos na sua capacidade de combate (a evolução tecnológica internacional havia-o condenado), a verdade é que desempenharam honrosamente a sua missão nos palcos em que foram usados, nomeadamente na defesa das costas de Inglaterra e no combate contra os Fiat Falco italianos no Mediterrâneo.
Com a sua chegada a São Miguel, rapidamente foram colocados a voar, com a missão específica de defesa, reconhecimento de embarcações militares e observação meteorológica, ao contrário da aviação naval encarregue da ligação postal com Lisboa, socorros a náufragos e patrulhamento. Neste ponto torna-se importar referir os primórdios da Força Aérea Portuguesa (FAP). A FAP é criada em 1952, recebendo os aviões da Aeronáutica Militar e da Aeronáutica Naval. Portanto, durante a II Guerra Mundial este importante ramo da Defesa Nacional ainda não existe, sendo os Gloster Gladiator um avião do Exército e o seu piloto, um militar do mesmo ramo.
Os quinze biplanos, pintados em verde azeitona na fuselagem e planos superiores, e de azul claro nas superfícies inferiores, são deslocados da Base Aérea n.º 3 em Tancos para o Aeródromo de Santana em Rabo de Peixe construída para o efeito.
Pilotando um destes caças veio 2º Sargento Manuel Cardoso, piloto expedicionário de Aeronáutica Militar, protagonista da presente homenagem. O Sargento-aviador Cardoso levantou voo desta unidade militar na tarde do dia 13 de Maio de 1943 sem que mais regressasse. Em virtude do passar do tempo, foram accionados os mecanismos de busca por intermédio da aviação de terra e naval, que incessantemente o procuraram até que o encontraram já cadáver na encosta do pico da Vara pelas 14 horas do dia 18. A sua aeronave havia chocado por razões desconhecidas.

diapositivo4-copy

Manuel Cardoso era natural de São João da Tarouca, concelho de Tarouca e tinha vinte e sete anos. Piloto desde 1937, havia casado em Julho de 1941, deixando órfão um filho de tenra idade com apenas cinco meses. A necessidade imperiosa da defesa da ilha e o dever patriótico havia-lhe custado a vida.
A população micaelense sentia muito de perto este sentimento. Afinal, até finais de 1939, inícios de 1940, o grau de insegurança era elevado e generalizado. As ilhas cobiçadas não tinham meios de defesa minimamente à altura da hecatombe que se vivia no teatro europeu. A chegada massiva de soldados do Exército e o reforço da Marinha havia trazido segurança a um contexto extremamente complexo, principalmente nas rotas mercantes aliadas que passavam a norte do arquipélago. O desaparecimento de um piloto seria uma notícia que correria no seio da população de modo muito célere, embora no íntimo já se adivinhasse a resposta. Os órgãos de comunicação social referem mesmo que o povo encontrava-se expectante e pesaroso, o que ficaria claramente demonstrado no dia do seu funeral. Nesse dia, 19 de Maio, Ponta Delgada e Rabo de Peixe pararam. Pelas 9:30 da manhã, a praça 5 de Outubro encheu-se de povo (com destaque para as crianças das escolas locais), posicionando-se na sua área Sul uma guarda de honra de Artilharia. Velado por camaradas do Exército e da Marinha, saiu do Hospital Militar (uma das alas do Hospital da Misericórdia) sendo acompanhado pelas principais autoridades militares e civis, seguindo-se um serviço religioso a cargo de um capelão militar.

Cortejo fúnebre ao cemitério de Rabo de Peixe. Atente-se na presença de militares e civis, inclusive crianças.

Cortejo fúnebre ao cemitério de Rabo de Peixe.

De seguida, e numa carreta preparada para o efeito, iniciou-se um cortejo fúnebre que atravessaria a cidade até ao seu limite mais oriental, ou seja até próximo do porto da Calheta, em que a população, alunos da escola Industrial e Comercial de Gonçalo Velho e a própria Legião Portuguesa, o aguardavam ao longo do percurso. Acompanhando-o pelas principais ruas de Ponta Delgada, só dispersariam no momento em que foi colocado numa ambulância militar rumo a Rabo de Peixe, a onde foi sepultado. Durante as exéquias, a praça 5 de Outubro seria várias sobrevoada em círculo por Gladiators que lançavam flores em sua homenagem. Durante o cortejo, estas aeronaves (em voo baixo), continuariam a homenageá-lo da mesma forma.
Naquela freguesia, nova recepção o esperaria assim como renovadas exéquias, embora com uma especial atenção: era muito conhecido e caro àquele povo, uma vez que era sabido ter um excelente carácter a todos os níveis. Contudo, existiu uma situação não referenciada pelos órgãos de comunicação social: ele foi alvo de uma cerimónia interna na sua base, ou seja, no aeródromo de Santana como as fotografias apresentadas atestam. Contudo, a censura militar não permitiria qualquer tipo de referência a este acontecimento.
Terminadas as cerimónias, seria o seu corpo depositado numa campa de uma família local (que albergaria a família do militar durante a crise) a onde até hoje se poderá manter. Apesar de fortes indicações históricas, o local específico só poderá ser rigorosamente comprovado por intermédio de pesquisas arqueológicas.
O agradecimento do Comandante Militar dos Açores aos órgãos de comunicação social e à população em geral claramente demonstra o enlaço da população com as forças armadas e com o militar: a população havia oferecido um local para o seu descanso final.
As razões do acidente continuam por determinar. Manuel Cardoso, considerado pelos órgãos de comunicação social em 1943 com um dos mais briosos encarregados da defesa aérea da ilha, foi retirado à família para vir morrer numa ilha que vivia um clima de invasão permanente e que conheceu nesta época o maior reforço militar no menor espaço de tempo durante o século XX, quiçá mesmo da sua História. Passados 66 anos, e hoje em clima de paz, será um dever de memória relembrar esses tempos e todos aqueles que chamados à protecção dos açorianos acabariam por dar a sua vida, dos quais o 2º Sargento-aviador é um exemplo. Tanto quanto se consegue perceber, terá sido o primeiro piloto português (e militar) a morrer nos Açores, o que faz dele um pioneiro da aviação regional.

Sérgio Rezendes

Bibliografia:

Antunes, José Freire, Roosevelt, Churchill e Salazar. A luta pelos Açores, 1941 – 1945. Madrid, 1995, Ediclube.

Antunes, José Freire, “Brigadas dos Royal Marines «Operação Félix» de Hitler”, O Independente, 22 de Abril de 2005.

Cardoso, Adelino, Aeronaves Militares Portuguesas no Século XX, Essencial, 2000.

Telo, A. J., Os Açores e o Controlo do Atlântico, ASA, 1993, Lisboa.

Secretaria de Propaganda Nacional), Consagrado à Guarnição Militar dos Açores. Defesa Nacional, n.º 95, Editora Gráfica Portuguesa, 1942, Lisboa.

Correio dos Açores de 19 de Maio de 1943.
Correio dos Açores de 20 de Maio de 1943.
Correio dos Açores de 22 de Maio de 1943.
Correio dos Açores de 25 de Maio de 1943.
Diário dos Açores de 19 de Maio de 1943.

Quer ler mais artigos de Sérgio Rezendes no Operacional? Clique em:

O MOTOCICLO MILITAR

OS CANHÕES DA CASTANHEIRA EM PONTA DELGADA…


"Tagged" como: , , , , ,

Comentários não disponíveis.