EFEITOS FISIOPATOLÓGICOS DAS MISSÕES “SOGA”
Por Miguel Machado • 11 Ago , 2016 • Categoria: 03. REPORTAGEM, EM DESTAQUE PrintO paraquedismo de grande altitude submete os indivíduos a variações térmicas, de pressão atmosférica e de pressão parcial de oxigénio de grande amplitude daí decorrendo desafios fisiológicos. A Capitão-Tenente Médica Naval Filipa Sequeira Soares Albergaria, 41 anos de idade, 15 anos de serviço na Marinha, publica no Operacional este artigo cujo texto é adaptado do seu trabalho final da I Pós-graduação em Medicina Aeronáutica, acerca dos sinais e sintomas mais frequentemente associados a estas missões e tem como objetivo dar a conhecer as principais formas de apresentação, reconhecimento e prevenção das lesões associadas a estas missões.
Como sempre fazemos quando um novo colaborador publica no Operacional, aqui deixamos uma breve referência ao curriculum da Capitão-Tenente Médica Naval Filipa Soares Albergaria. Desempenhou várias funções na área da Medicina Operacional na Marinha (Chefe do Departamento de Medicina Operacional do Centro de Medicina Naval em 2011/12, com colaboração no Centro Integrado de Treino e Avaliação Naval) e na área da Formação em emergência pré-hospitalar (Chefe do Centro de Simulação Médica da Marinha 2012/14). Integrou as missões NATO Active Endeavour, a bordo do NRP Vasco da Gama, em 2002, e a NATO Pakistan Earthquake Relief Assistance no Paquistão, em 2005, entre outras missões e exercícios nacionais e internacionais. Ao longo da sua carreira frequentou diversos cursos em diferentes áreas da “saúde militar”, destacando-se, entre outros, na área operacional o Curso de Medicina Subaquática e Hiperbárica, Pós-Graduação em Medicina Aeronáutica, o Advanced Treatment of Trauma da Australasian Registry of Emergency Medical Technicians e o Pre-hospital Trauma Life Support (PHTLS) da Emergência XXI. É conferencista em matérias relacionadas com o Apoio Médico-Sanitário à Atividade Operacional, Gestão de Recursos Humanos na Saúde Naval, Perspetiva de Género nas missões das Forças Armadas portuguesas e tem integrado grupos de trabalho para a formação e treino dos militares da Armada, nomeadamente na criação e desenvolvimento do Curso de Emergência em Combate e dos Cursos de Socorrismo de nível Básico, Complementar e Avançado adequados ao contexto naval. Actualmente é Chefe da Repartição de Logística e Operações Sanitárias da Direção de Saúde da Marinha Portuguesa.
No trabalho académico que está na base deste artigo a (MAJ/MED) Dra Helena Ribeiro foi a sua tutora, o Comandante Pereira da Silva o ‘revisor’ operacional deste texto e o (COR/MED) Dr. João Mairos é o autor da figura “sintomas da Doença Descompressiva”.
Nota do Operacional sobre os SOGA: Nas Forças Armadas Portuguesas a Brigada de Reacção Rápida do Exército dispõe no seu Batalhão Operacional Aeroterrestre (BOAT) de uma Companhia de Precursores, tendo esta dois Destacamentos com SOGA. O BOAT, aquartelado no Regimento de Paraquedistas, em Tancos, tem, além destes dois destacamentos operacionais, o exclusivo da instrução SOGA em Portugal. O Curso de Queda-Livre Operacional é que confere a qualificação SOGA. No Exército, o Centro de Tropas de Operações Especiais, em Lamego, e na Marinha, o Destacamento de Acções Especiais, do Corpo de Fuzileiros, dispõem de militares com o curso SOGA, formados no BOAT, e que regularmente realizam saltos de manutenção com este batalhão e participam em exercícios. Os SOGA são formados e treinam em Portugal com as unidades aéreas da Força Aérea Portuguesa, nomeadamente a Esquadra 501 “Bisontes” e a Esquadra 502 “Elefantes”, com aeronaves C-130 e C-295M, respectivamente. Os SOGAS do Exército Português estão bem em termos de equipamentos de O2 e de paraquedas operacionais, encontrando-se nestes aspectos ao nível do que de melhor existe nos países aliados, o mesmo já não se pode dizer em relação a alguns outros aspectos muito importantes, parte problemas comuns a outras forças, como o armamento, visão nocturna e comunicações, mas também aspectos específicos para esta extraordinariamente exigente actividade, relativos por exemplo à operação de zonas de lançamento, e, noutro plano, as questões relativas à cooperação internacional que não podem ser desvalorizadas, tendo em vista manter o nível de proficiência equiparado às unidades congéneres.
Nota do Operacional sobre as fotos que ilustram este artigo: as fotografias como se percebe foram captadas em épocas diferentes – a data vem assinalada nas legendas – e pretendem basicamente ilustrar de modo sequencial o desenrolar de uma missão SOGA. A maioria são do Alfredo Serrano Rosa, a quem a autora e nós próprios agradecemos mais esta colaboração. As legendas são da responsabilidade do Operacional.
EFEITOS FISIOPATOLÓGICOS DAS MISSÕES “SOGA”
Capitão-Tenente Médica Naval Filipa Soares Albergaria
1. Missões SOGA
Os Saltadores Operacionais de Grande Altitude (SOGA) são um subgrupo especial de paraquedistas militares, treinados para efetuar saltos acima da altitude fisiológica – a partir dos 12.000 pés e até 35.000 pés acima do nível do mar – altitudes que dificultam a deteção e identificação do lançamento e da infiltração por paraquedas, pelos sistemas de defesa aérea.
Estas operações de queda livre operacional apresentam grandes vantagens na capacidade de inserção de pessoal e material em áreas onde os saltos de baixa altitude são impossibilitados por restrições táticas, geográficas e/ou por considerações políticas ou estratégicas, permitindo a inserção aérea clandestina de equipas de operações especiais, de precursores paraquedistas ou de meios de sustentação logística através da execução de saltos tandem .
A proficiência na manobrabilidade dos paraquedas pelos SOGA, possibilita o acesso a áreas de operações sem que estas sejam sobrevoadas por aeronaves, deslizando a equipa em voo planado até tão perto do objetivo quanto pretendido, reunindo-se no terreno o material e o pessoal pronto a iniciar a sua missão.
O perfil de cada salto – HAHO (High Altitude High Opening, o paraquedista sai do avião e abre o paraquedas a grande altitude, deslocando-se depois a navegar para o local de aterragem que pode estar a muitos quilómetros de distância), é a técnica usada para infiltrações em profundidade aproveitando as condições de vento na camada; – HALO (High Altitude Low Opening, o paraquedista sai do avião e só abre o paraquedas a relativamente baixa altitude, atingindo rapidamente o local de aterragem), permitem uma maior precisão na zona de aterragem para a condução de operações mais cirúrgicas – varia conforme o objetivo de cada missão havendo no entanto um conjunto de variáveis – meteorológicas, técnicas, operacionais e humanas – que podem condicionar rapida e inopinadamente o planeamento operacional requerendo destes militares conhecimento, destreza e capacidade de decisão.
Além destes, existem desafios fisiológicos associados ao ambiente de voo e salto em grande altitude: temperaturas extremas, exposição prolongada a ambientes com baixa pressão parcial de oxigénio e variações acentuadas da pressão atmosférica.
2. Efeitos fisiológicos e fisiopatológicos da altitude
O espaço físico e as fases em que decorrem as missões SOGA compreendem duas componentes fundamentais muito contrastantes entre si: a subida e o salto.
A subida em aeronave constitui uma fase de ambiente relativamente controlado, caracterizado por (1) temperaturas elevadas devido ao uso de equipamento individual e ao aquecimento da própria aeronave, (2) sistemas coletivos de fornecimento de oxigénio em resposta à rarefação do ar ambiente e apoio pelo fisiologista de voo e pelo chefe de salto(*) e (3) variações de pressão controláveis quer pela pressurização da cabine (quando possível) quer pelo controlo da razão de subida, permitindo a monitorização do processo adaptativo dos tripulantes e eventual interrupção da subida, em caso de acidente.
O salto a grandes altitudes sujeita subitamente o SOGA a (1) temperaturas muito baixas(**) , (2) utilização de sistemas autónomos de oxigénio e monitorização pelo próprio durante a queda e (3) aumento da pressão atmosférica tão brusco quanto a velocidade da descida, sem possibilidade de interrupção desta fase não obstante a ocorrência de problemas técnicos, operacionais ou humanos.
Embora as percentagens relativas dos gases se mantenham sempre constantes na atmosfera – 78% azoto (ou nitrogénio), 21% oxigénio, 0,03% dióxido de carbono – a diminuição da pressão atmosférica determina uma menor quantidade de oxigénio respirável e por conseguinte menor quantidade de oxigénio no sangue(***) . Simplificando, o que acontece é que duma forma automática, o corpo humano deteta o défice de oxigénio (hipóxia) e o aumento de dióxido de carbono no sangue (hipercapnia) adaptando-se através do aumento da frequência e da profundidade respiratória (hiperventilação). O indivíduo hipóxico não se apercebe imediatamente desta situação porque inicialmente pode surgir uma sensação de bem-estar e euforia com consequências potencialmente desastrosas como alterações do estado de consciência, alterações visuais – visão em túnel ou desfocada e perda da capacidade para distinguir as cores – e por fim, perda de coordenação motora e incapacidade total para se auto-socorrer, por exemplo, colocando uma máscara de oxigénio.
Simultaneamente, a descida da pressão atmosférica condiciona a expansão do volume dos gases, incluindo os gases contidos nas cavidades anatómicas – ouvido, seios perinasais, alvéolos dentários e sistema gastrointestinal. Mais uma vez, o corpo humano tenta adaptar-se automaticamente: durante a subida, a expansão dos gases no ouvido médio é aliviada pelo ‘escape’ através da trompa de Eustáquio e orofaringe, com uma sensação de ‘estalido’ no tímpano; quando, durante a descida, surge a sensação de ‘ouvido tapado’, a expiração forçada, a deglutição ou o movimento lateral do queixo, permitem reequilibrar as pressões.
Um fenómeno mais complexo é a equalização das pressões ao nível dos tecidos e fluidos corporais, ou seja, em condições normais, o azoto presente no sangue difunde-se através dos tecidos sendo conduzido aos pulmões e libertado na expiração. Quando há uma despressurização rápida e acentuada, este gás vai expandir-se bruscamente e formar aglomerados antes de conseguir atingir o pulmão criando assim bolhas gasosas em diferentes partes do corpo que originam diversos sinais e sintomas dependendo do local em que ocorrem articulações, capilares, Sistema Nervoso Central (SNC), pele… A este quadro chama-se Doença Descompressiva (DD).
3. Doença descompressiva
Não obstante tratar-se dum fenómeno raro, a DD reveste-se da maior importância por ser potencialmente fatal, ocorrer em indivíduos saudáveis e poder desenvolver-se em exposições agudas a altitudes de 18.000 pés, como as consideradas para as missões SOGA, ou altitudes menores quando o indivíduo voa após ter feito mergulho com ar comprimido (SCUBA) ou ter efetuado treino dunker com helicópteros (simulador que permite o treino de amaragem em caso de emergência, numa piscina).
A incidência da DD aumenta com o aumento do tempo e a repetição da exposição – como nos cursos e treinos de paraquedismo – não parecendo haver relação entre o risco de DD e a razão de subida. A susceptibilidade dos indivíduos varia geneticamente (****) , no entanto, estão identificados vários factores que também a condicionam, entre eles:
1. barba e /ou bigode – por poderem dificultar a selagem da máscara de oxigénio;
2. má condição física/ fadiga – aumentam as necessidades metabólicas e diminuem a rapidez da resposta adaptativa e de resolução de problemas;
3. consumo de álcool – diminui a eficiência do sistema cardiovascular por desidratação e consequente vasoconstrição dos pequenos capilares sanguíneos;
4. consumo de tabaco – porque a nicotina contribui para a inflamação e rigidez das paredes vasculares e dos alvéolos pulmonares, reduzindo o fluxo sanguíneo e a capacidade adaptativa do sistema cardiovascular e respiratório;
5. idade – o risco de DD duplica a cada década, a partir dos 40 anos.
As manifestações clínicas da DD dependem da região anatómica onde se formaram as micro-bolhas de azoto, podendo assim tratar-se de:
1. dores articulares (bends) – sintoma mais comum, com dor geralmente nas grandes articulações (joelhos, ombros e cotovelos) com intensidade ligeira a muito intensa;
2. dor esternal (chokes) – sentida como ‘peso’ e dor constritiva referida ao centro do tórax, acentuada pela inspiração profunda e por vezes acompanhada de tosse seca. É um sintoma raro mas muito grave, provocado pelo compromisso dos capilares pulmonares, resultando na diminuição da capacidade ventilatória e podendo evoluir para o choque e a morte por asfixia;
3. alterações neurológicas – sintomas tardios que demonstram o atingimento do SNC através de vertigens, dores de cabeça, alterações da visão e do tacto, perda da capacidade de falar e perda de orientação espacial;
4. parestesias – são manifestações cutâneas, percebidas como ‘formigueiros’, causadas por minúsculas bolhas formadas numa descompressão ligeira. Acumulam-se no tecido ‘por baixo da pele’, estimulando os receptores subcutâneos, provocando uma sensação de ‘quente e frio’; podem surgir também manchas e borbulhas que não devem ser friccionadas.
Aprender a reconhecer os sinais e sintomas da DD e procurar ajuda médica atempadamente é fundamental para a reabilitação e prevenção de complicações. O tratamento habitual – colocação do paciente a respirar oxigénio a 100% e/ou tratamento em câmara hiperbárica – é, por regra, muito eficaz.
A prevenção, no caso das missões SOGA, consiste na minimização dos factores de risco já identificados e no recurso à desnitrogenação: processo de remoção do azoto do corpo humano pela inspiração de oxigénio a 100%, por máscara nos 30 minutos (ou mais) que antecedem o salto. Esta manobra reduz o potencial de super-saturação em azoto dos tecidos e subsequente diminuição do risco de formação de bolhas gasosas durante a exposição a baixas pressões barométricas.
Além destas medidas, o treino de voo em câmara hipobárica permite ao militar aprender a conhecer, em segurança, os efeitos fisiopatológicos das variações de pressão e a reconhecer em si próprio e nos camaradas os sinais e sintomas precoces de hipóxia.
Como em todas as áreas de atuação militar, o treino frequente e a comunicação entre pares é fundamental para a evolução e segurança de todos e de cada um. E é mais do que sensato que o treino mostre como reagimos e como reagir, antes que a realidade o faça.
Em conclusão, a compreensão da fisiologia de voo, o reconhecimento atempado dos efeitos fisiopatológicos associados a esta atividade de risco e a abordagem terapêutica eficiente são instrumentos fundamentais para o apoio aos SOGA pela medicina operacional.
4. Resumo
Os Saltadores Operacionais de Grande Altitude (SOGA) são um subgrupo especial de paraquedistas militares, treinados para efetuar saltos acima da altitude fisiológica, com o objetivo de inserir de forma clandestina, por via aérea, equipas de operações especiais, de precursores paraquedistas ou meios de sustentação logística através da execução de saltos tandem onde os saltos de baixa altitude sejam impossibilitados por razões de ordem tática, geográfica e/ou por considerações político-estratégicas.
O paraquedismo de grande altitude submete os indivíduos a variações térmicas, de pressão atmosférica e de pressão parcial de oxigénio de grande amplitude daí decorrendo desafios fisiológicos, nomeadamente, adaptação à hipoxia, controlo ventilatório, equalização das pressões nas cavidades anatómicas e metabolismo do azoto contido nos tecidos e fluidos corporais. Quando este último fenómeno é prejudicado pela velocidade a que decorre a descompressão, podem formar-se bolhas gasosas que provocam sinais e sintomas relacionados com os orgãos afetados pelos aglomerados de azoto. A este conjunto chama-se genericamente Doença Descompressiva.
A prevenção desta condição potencialmente fatal faz-se pela eliminação dos factores de risco (fadiga, consumo de álcool e tabaco, entre outros), pelo processo de desnitrogenação durante o voo (administração de oxigénio a 100% por máscara nos 30 minutos que antecedem o salto) e pela comunicação atempada dos sinais e sintomas ao fisiologista de voo ou ao serviço de saúde de apoio à missão.
O treino fisiológico em câmara hipobárica é fundamental para que cada indivíduo conheça a sua capacidade de adaptação à altitude e para que reconheça rapidamente qualquer desajuste em si próprio ou num camarada.
O tratamento inclui a administração de oxigénio a 100% e eventualmente o recurso à câmara hiperbárica.
(*) É obrigatória a presença dum fisiologista de voo a bordo da aeronave sempre que a missão ultrapasse o FL200, sendo recomendável em missões a partir do FL130. Em Portugal, há um fisiologista de voo em todas as missões SOGA que se realizem acima da altura fisiológica (12.000 pés, ie, FL120) e com sistema autónomo de oxigénio.
(**) O gradiente de descida da temperatura na troposfera é de 1,98ºC por cada 1.000 pés de altitude.
(***) Como referência, consideramos que ao nível do mar a pressão alveolar de oxigénio é de 100 mmHg com saturações de hemoglobina de cerca de 98%. Aos 18.000 pés, a pressão alveolar é de 40 mmHg e a saturação da hemoglobina de 60%.
(****) Durante a II Guerra Mundial, os testes de seleção de pilotos, paraquedistas e restante tripulação de aeronaves procuravam identificar os menos suscetíveis à DD para grandes altitudes
Miguel Machado é
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