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CRÓNICA DE CEUTA 600 ANOS DEPOIS

Por • 18 Set , 2015 • Categoria: 02. OPINIÃO, EM DESTAQUE Print Print

A tomada da cidade de Ceuta por uma expedição naval portuguesa, em 1415, comandada pelo próprio Rei que, paciente e competentemente, a organizara, D. João I, o de Boa Memória, é o tema principal desta crónica de viagem de cariz histórico-militar. A Associação Nacional de Cruzeiros organizou esta inédita comemoração dos 600 anos da tomada desta cidade: um cruzeiro à vela. João Brandão Ferreira, piloto-aviador, integrou a jornada, num meio diferente daquele a que está habituado, e conta-nos a experiência.

Uma frota de veleiros portugueses rumou a Ceuta para assinalar os 600 anos da tomada desta cidade por Portugal.

Uma frota de veleiros portugueses rumou a Ceuta em 2015  para assinalar os 600 anos da tomada desta cidade por Portugal.

Já a vista pouco e pouco se desterra

Daqueles pátrios montes que ficavam;

Ficava o caro Tejo, e a fresca Serra,

De Sintra e nela os nossos olhos se alongavam.

Ficava-nos também na amada terra

O coração, que as mágoas lá deixavam;

E já depois que toda se escondeu,

Não vimos mais enfim que mar e céu”.

Lusíadas, Canto V, 3

 

Desta vez não se chegou a ver apenas céu e mar, mas deu para perceber (isto é, ter uma vaga ideia), da dificuldade que é andar no mar e daquilo que passaram os nossos antepassados quando se aventuraram às Descobertas.

O “desta vez” coube a um “cruzeiro” organizado pela Associação Nacional de Cruzeiros (ANC), que entendeu rumar a Ceuta, a fim de comemorar os 600 anos da tomada daquela cidade por uma expedição naval portuguesa, comandada pelo próprio Rei que, paciente e competentemente, a organizara: D. João I, o de Boa Memória.

E que de facto deixou boa memória (e descendência), pois tudo lhe correu bem e ao Reino, sob a sua liderança.

Foi feliz a ideia do ANC fundada, em 28/2/94, e cujo objectivo estatutário é o de promover o desenvolvimento da prática desportiva e recreativa, da vela de cruzeiro(1). Presentemente é liderada por Rui André Ribeiro um experiente velejador com cerca de 7.500 horas de navegação.

João Brandão Ferreira, Piloto-Aviador da Força Aérea Portuguesa  na situação de Reforma, integrou a iniciativa da Associação Nacional de Cruzeiros.

João Brandão Ferreira, Piloto-Aviador da Força Aérea Portuguesa na situação de Reforma, integrou a iniciativa da Associação Nacional de Cruzeiros.

A escolha nem sequer foi difícil por óbvia: seis séculos de um feito de armas notável (a primeira e maior operação anfíbia desde o fim do Império Romano do Ocidente) e marco assumido pela maioria dos historiadores, como sendo o início da expansão marítima dos portugueses, que os iam alcandorar durante um século, à maior potência marítima do globo.

Infelizmente para o Estado Português nada disto, mesmo sendo óbvio, não foi tido como merecedor sequer de uma singela evocação. Andam desligados da realidade pela simples razão de que deixaram de pensar e de actuar como portugueses!

Felizmente, por outro lado, a sociedade civil, consumada na generalidade da população e das instituições nacionais, tem-se mobilizado para comemorar o evento de várias maneiras, mostrando que a nacionalidade não está moribunda e a vida não se resume a futebol, concertos, novelas e … “negócios”.

Responderam à chamada 16 veleiros dos 25 inicialmente inscritos e cada um fez o seu planeamento de modo a que a concentração final se realizasse na marina de La Línea junto ao “Penon” de Gibraltar, de modo a que pudéssemos “acometer” Ceuta em conjunto, no dia 10 de Agosto.

A Marina de La Línea de la Concepción, frente a Gibraltar, onde a frota da Associação Nacional de Cruzeiros se concentrou para a alcançar Ceuta.

A Marina de La Línea de la Concepción, frente a Gibraltar, onde a frota da Associação Nacional de Cruzeiros se concentrou para a alcançar Ceuta.

Navegando no estreito de Gibraltar com o "Rochedo" à vista e o farol da "Ponta Europa" visível à direita.

Navegando no estreito de Gibraltar com o “Rochedo” à vista e o farol da “Ponta Europa” visível à direita.

Quão longe das cerca de 220 velas e 20.000 homens que o antigo Mestre de Avis – cuja bandeira foi eleita para ser arvorada em cada embarcação – fez aparecer frente aos muros da cidade, ocupada pelos seus habitantes mouros, que devem ter ficado de olhos esgazeados perante tão terrífica quanto magnificente visão.

Desta feita em vez das levas de 50 homens desembarcados das galés do Infante D. Henrique – grande impulsionador da conquista – na praia de Santo Amaro, perto da Porta de Almina, desembarcámos pacificamente na marina da cidade, com cerca de 75 homens, mulheres e crianças, cuja dificuldade maior foi atravessar o Estreito de Gibraltar debaixo de um nevoeiro inclemente.

Ao menos houve algo que nos fez recordar as dificuldades de antanho.

Vista parcial da hoje designada "Ciudad Autónoma de Ceuta", com a marina em primeiro plano, a baía e o Porto.

Vista parcial da hoje designada “Ciudad Autónoma de Ceuta”, com a marina em primeiro plano, a baía e o Porto.

Fomos bem recebidos em Ceuta – cidade com cerca de 18,5 Km2 e 82.000 habitantes – embora sem alardes: três dias com notícias nos jornais; sessão de boas vindas na Marina Hércules, com tapas e bebidas ao bom gosto de Espanha e um jantar (este já organizado e pago em Lisboa), que a todos reuniu em confraternização, dignando-se estar presentes algumas autoridades portuárias, membros da Cidade Autónoma de Ceuta e do Serviço de Turismo da cidade. O Cônsul Português fez-se representar pela Secretária do Protocolo.

Jantar antecedido por uma volta turística pela cidade e um passeio de barco, oferecidos pelo turismo local.

A "Conquista de Ceuta" de Columbano Bordalo Pinheiro, que se encontra no Museu Militar (Lisboa), pintada nos finais do século XIX, inicio do século XX (in Museu Militar, Pintura e Escultura, José-Augusto França, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1996)

A “Conquista de Ceuta” de Columbano Bordalo Pinheiro, que se encontra no Museu Militar (Lisboa), pintada nos finais do século XIX, inicio do século XX (in Museu Militar, Pintura e Escultura, José-Augusto França, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1996)

Ceuta por volta de 1572. Gravura  de Georgius Braunius e Franz Hohmemberg, Colónia. Comissão nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1991.

Ceuta por volta de 1572. Gravura de Georgius Braunius e Franz Hohmemberg, Colónia (Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1991).

Ceuta mudou de mãos, pelo Tratado de Lisboa, de 1668, que reconheceu a Restauração da Coroa Portuguesa na Dinastia de Bragança, após o seu governador, em 1640, ter sido o único em todo o mundo português que não aclamou D. João IV.

Por razões ainda não completamente clarificadas nos dias de hoje.

Mas Ceuta nunca perdeu o seu cunho português, não só por causa dos monumentos que deixámos, onde se destacam as muralhas, mas porque as autoridades locais mantêm as cores (e a coroa) portuguesas e a da cidade de Lisboa (cujo estandarte foi o primeiro a ser levantado na cidadela moura), por todo o lado.

O Escudo Oficial da cidade, documento distribuído pelo "Ayuntamiento" de Ceuta.

O Escudo Oficial da cidade, documento distribuído pelo “Ayuntamiento” de Ceuta.

Além do escudo, também a Bandeira de Ceuta tem raízes portuguesas, a Bandeira de S. Vicente, ou de Lisboa, um dos simbolos mais antigos da Europa com as cores da Ordem dos Dominicanos.

Além do escudo, também a Bandeira de Ceuta tem raízes portuguesas, a Bandeira de S. Vicente, ou de Lisboa, um dos símbolos mais antigos da Europa com as cores da Ordem dos Dominicanos.

Até a rua principal se chama “Camões”. É uma cidade agradável e razoavelmente arranjada e limpa e com forte implantação militar.

Nesta destaca-se a Legião Espanhola, fundada em 28/1/1920, e ainda se pode ver uma lápide junto ao respectivo museu onde o seu fundador – o General Millán-Astray, falou às tropas: “Combatereis sempre; morrereis muitos, quiçá todos…”.

Millan-Astray, fundador da Legião Espanhola, esteve intimamente ligado à cidade e à história do Marrocos Espanhol no século XX.

Estátua de Millan-Astray, fundador da Legião Espanhola. Esteve intimamente ligado à cidade e à história do Marrocos Espanhol no século XX.

Ceuta tem hoje um forte contingente militar, ma imagem o quartel do "Grupo de Regulares de Ceuta nº 54", unidade mais condecorada do Exército Espanhol. Na cidade estão ainda, além das estruturas de comando e logísticas, os  Regimiento de Caballería Acorazado Montesa nº 3; Regimiento de Artillería Mixto nº 30;  Regimiento de Ingenieros nº 7; Tercio de Alba 2º de la Legión.

Ceuta tem hoje um forte contingente militar, na imagem o quartel do “Grupo de Regulares de Ceuta nº 54”, unidade mais condecorada do Exército Espanhol. Na cidade estão ainda, além das estruturas de comando e logísticas, os “Regimiento de Caballería Acorazado Montesa nº 3”; “Regimiento de Artillería Mixto nº 30”; “Regimiento de Ingenieros nº 7”; “Tercio de Alba 2º de la Legión”.

Emociona, porém, ver a imagem de Nossa Senhora, oferecida a Ceuta pelo Infante D. Henrique, em 1430, e que por vezes acolhe entre as suas mãos o “pau” (aleo), transformado em bastão, que pertenceu a D. Pedro de Menezes, seu 1º Capitão que ali foi deixado com 2.500 homens para defesa daquele que foi o primeiro bastião cristão no Norte de África muçulmano e é hoje um dos últimos.

Quando D. João I perguntou a D. Pedro se ficava bem, ele, altivo, respondeu:

Com este pau me basto”.

Começa a faltar gente desta estirpe.

Cumprido o objectivo e recuperadas as forças foi hora de recolher cabos, defensas e encetar o regresso ao longo da costa andaluza e portuguesa, onde nos recolhíamos em agradáveis e retemperadoras marinas, o que se fez no dia 12(2).

Ceuta foi portuguesa desde 1415 até 1580. Uma praça forte no Norte de África que resistiu a várias investidas e viveu por vezes anos completamente isolada.

Ceuta foi portuguesa desde 1415 até ao período filipino quando perdemos a independência nacional para Castela. Uma praça forte no Norte de África que resistiu a várias investidas e viveu por vezes anos completamente isolada. Em 1640 com a Restauração, o governador de Ceuta não aclamou o Rei de Portugal e a cidade manteve-se espanhola até hoje.

O mar é um óptimo local para pensar, pois há tempo para tudo. Para um neófito como eu – faltava esta experiência ao meu “curriculum” – foi tempo de interiorizar várias coisas, algumas das quais peço vénia para partilhar com os leitores.

Em primeiro lugar navegar no mar não é pera doce: é duro, dá trabalho e requer saber. Muito saber, que cobre um conjunto variado de disciplinas e que não se aprende de um dia para o outro. Mas que se pode perder rapidamente…

Depois é necessário aprender a matriz do tempo. Isto é, o passar das horas em função da velocidade do navio – para mim que sou aviador, confesso que não foi fácil…

Em navegação trabalha-se ou vigia-se. Não dá para fazer muito mais (tirando os pescadores inveterados a quem agradeço o belíssimo atum que comi à boleia); o veleiro nunca está quieto e há que tentar não enjoar!

Depois aprende-se a respeitar o mar pois ele, tudo pode e tem muitas caras – e isto liga-se à segurança, pois facilmente “ele” nos arrebata e leva; e a segurança leva-nos à disciplina que por sua vez é fundamental para a organização e funcionamento da vida a bordo. A disciplina deriva da hierarquia e é esta que garante a autoridade.

Estes conceitos não são só para militares, aplicam-se a todos os que andam no mar.

E foi assim que fomos (e viemos) a Ceuta.

Compreendo agora melhor a frase do Poeta, “navegar é preciso, viver não é preciso”.

Mas também se aprende que se vive, navegando.

E felizes são aqueles, que têm algo para recordar.

11/09/2015

João José Brandão Ferreira

Oficial Piloto Aviador

(1) Resultou da fusão da Associação de Pequenos Veleiros de Cruzeiro e da Associação de Veleiros de Cruzeiro. Engloba cerca de 1000 veleiros e 4.000 praticantes.

(2) Algumas das marinas que nos acolheram foram as de Portimão, Mazagon, Rota, Barbate e La Línea.

Nota: Este artigo foi originalmente publicado no Blog O Adamastor. As imagens agora publicadas, excepto as que referem “Foto O Adamastor” são da responsabilidade do Operacional, bem assim como todas as legendas.

A Conquista de Ceuta: 1409 – 1415, fita de tempo

(Clique na imagem e leia em detalhe)

Fita de Tempo da Conquista de Ceuta, exposta na exposição "Torres Vedras no caminho de Ceuta. 600 anos", no Museu Municipal Leonel Trindade nesta cidade, até 10 de Outubro (Clique na imagem e leia em detalhe).

Fita de Tempo da Conquista de Ceuta, exposta na exposição “Torres Vedras no caminho de Ceuta. 600 anos”, no Museu Municipal Leonel Trindade nesta cidade, até 10 de Outubro 2015.

 

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