CHAIMITE, O COMEÇO ESTEVE PARA SER…NA FORÇA AÉREA
Por Miguel Machado • 4 Nov , 2013 • Categoria: 07. TECNOLOGIA, 09. ONTEM FOI NOTÍCIA - HOJE É HISTÓRIA PrintA história da Chaimite tem características que em muitos países dariam um belo filme! Há de tudo um pouco, desde intriga política e comercial a transferência ilegal de tecnologia, engenho e arte, vendas concretizadas e falhadas em várias partes do mundo, operações de combate sobre várias bandeiras e de ajuda humanitária, sucesso e falência, e mesmo outros ingredientes ao nível das personalidades que ainda será cedo para desvendar. Hoje levantamos o véu sobre o inicio desta “epopeia” que se iniciou em 1965! Em breve deverá terminar o serviço activo em Portugal, com a retirada das Chaimites do Exército que estão no Kosovo. Outras no entanto continuam sob bandeira local a operar no Líbano!
Em 1967 durava a guerra em África há seis longos anos, chega a Lisboa um navio mercante proveniente de Espanha com uma “preciosa” carga a bordo: uma viatura blindada de rodas de transporte de pessoal, fabricada nos EUA pela firma Cadillac Gage.
“Commando Chaimite”
Discretamente descarregado perante alguns oficiais do Exército e da firma que o havia “encomendado”, a Sociedade Luso-Americana de Representações SARL, a viatura é guardada num dos armazéns das instalações das Oficinas Gerais de Material de Engenharia, em Belém, exactamente onde hoje foi implantando novo Museu dos Coches. Nascia o que se haveria de designar o “Pavilhão Chaimite”.
Depois de algumas pequenas modificações um tanto ou quanto artesanais a viatura, designada “Commando Chaimite” (em vários relatórios oficiais depositados no Arquivo da Defesa Nacional), faz uma demonstração das suas capacidades no Campo de Tiro de Alcochete. Estão presentes oficiais pára-quedistas com experiência operacional no Ultramar que subscrevem um relatório, apresentado dias depois, encerrado do seguinte modo: “…Resumindo, pode-se afirmar que a futura viatura “Commando Chaimite” com as modificações apresentadas neste relatório permitirá às tropas pára-quedistas quer na Metrópole quer no Ultramar enormes possibilidades operacionais…”.
O relatório, a coberto de nota assinada pelo Vice-Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, segue para o Secretariado-Geral da Defesa Nacional, entidade que a Força Aérea espera convencer a pagar 30 destas viaturas destinadas aos pára-quedistas.
As alterações propostas pelos pára-quedistas eram basicamente as seguintes:
Aumento das dimensões das portas laterais; apoios exteriores para ferramentas várias; aumento da capacidade de transporte de depósitos água e cofres para material diverso; robustecer algumas saliências dos acessórios de iluminação.
Quanto às capacidades da viatura em todo o terreno foram consideradas boas bem assim como as capacidades anfíbias. A blindagem foi considerada resistente a fogo de armas ligeiras e a temperatura dentro da viatura “…permite utilização normal”.
Curiosamente no programa elaborado no Campo de Tiro de Alcochete para a demonstração refere-se que a viatura é apresentada pela “Sociedade Luso Brasileira de Viaturas e Equipamentos SARL – BRAVIA” e não pela “Sociedade Luso Americana de Representações”, o que mostra bem o relacionamento entre as duas firmas.
Nascimento da “Chaimite”
Este processo de venda de viaturas blindadas aos pára-quedistas da Força Aérea, que o ramo acolheu, teve inicio em 1966. Um dos sócios da Sociedade Luso-Americana de Representações SARL, o major do Exército na Reforma, João Batista de Sousa Donas-Botto, propôs a venda ao Estado-Maior da Força Aérea, e trocou bastante correspondência com o Regimento de Caçadores Pára-quedistas sobre esta matéria. Note-se que ao mesmo tempo decorria, em paralelo, um outro processo de venda ao Exército, estando ambos naturalmente dependentes da fabricação em Portugal da viatura.
Na realidade em Abril de 1965, tinha-se gorado a compra por Portugal de 50 viaturas V-100 “Commando” à Cadilac Gage, por motivos políticos. A administração americana pretendia um compromisso de não utilização das viaturas em África ao que o Ministro do Exército português respondeu:
“Não tem o Ministério do Exército qualquer dúvida em assegurar que as viaturas que deseja comprar não serão desviadas para países comunistas ou utilizadas em proveito de actividades comunistas, o que se verifica ser a preocupação fundamental das autoridades governamentais dos EUA.
Pelo contrário, não pode tomar-se o compromisso de não utilizar tais viaturas em qualquer região do território português – que constitucionalmente formam um todo – onde as necessidades de defesa o justifiquem, designadamente contra incursões vindas do exterior e de inspiração comunista ou com apoio comunista”.
Esta situação abriu a porta à solução que acabou por ser encontrada por Donas-Botto e pelo Exército, na pessoa do seu responsável máximo, Joaquim da Luz Cunha, e que veio a dar origem à “Chaimite”, uma viatura muito semelhante à V-100 “Commando”. Este blindado, o primeiro produzido em série em Portugal, teve por base não só a “misteriosa” carga chegada a Lisboa já em 1967, mas sobretudo nos planos da V-100 trazidos para o nosso país por um engenheiro americano, Gerald Larson, contratado por Donas-Botto, e uma série de peças adquiridas no estrangeiro – inclusive nos EUA – através dos contactos internacionais da Sociedade Luso-Americana de Representações.
Processo de aquisição
A Força Aérea tentou no final de 1966 e inicio de 1967 recolher junto do Exército, através do Secretariado-geral da Defesa Nacional, informação sobre a viatura, julgando-se à data que ela estava amplamente estudada. Embora com algumas resistências a informação disponível acabou por chegar à Força Aérea e o ramo manifestou-se muito interessado no veículo: “…de acordo com as características anunciadas pelo fabricante, parecem satisfazer aos requisitos operacionais que se exigem. Entre as circunstâncias que militariam a favor da preferência dada a esta viatura, julga-se, saber oficiosamente, estariam o seu fabrico em Portugal e a possível adopção pelo Ministério do Exército…” (O Vice-CEMFA em 5JAN1967, em nota ao SGDN). Na mesma nota a Força Aérea apresentava o preço do fabricante, 38.946.000$00 escudos, para 30 viaturas, sem armamento nem rádios, mas com sobressalentes para dois anos. Note-se que a SLAR Lda, afirmava poder fornecer 18 “Commando Chaimite” à FAP ainda em 1967. Sabendo-se hoje os atrasos que a encomenda para o Exército acabou por sofrer e que se mediu em anos, é notável a confiança que Donas-Botto conseguiu à data incutir junto das autoridades militares.
Aliás ainda em finais de 1966 João Donas-Botto assegurava que a construção dos cascos blindados das Chaimites estava iminente na Sorefame mas tal só se terá verificado já em Maio de 1967, segundo Informação do Secretariado-Geral da Defesa Nacional (Informação 2334/F/67 de 3 de Julho de 1967). Na realidade desde Dezembro de 1966 que Larson se tinha deslocado à Sorefame para avaliar das suas possibilidades de construir os cascos blindados com chapa importada. Sobretudo a soldadura terá levantado inúmeros problemas que ainda assim acabaram por ser resolvidos.
As viaturas para os pára-quedistas teriam 3 modalidades de armamento: duas metralhadoras 7,62mm; uma metralhadora 7,62mm e uma 12,7mm; uma metralhadora 7,62mm e um canhão de 20mm. Curiosamente, como lembra agora Fernàn Altuve Febres, engenheiro de armamento venezuelano presente no Campo de Tiro de Alcochete nesta apresentação em 1967, e que foi mais tarde representante no mercado internacional de firmas portuguesas como a BRAVIA, onde conseguiu alguns sucessos comerciais, esta versão canhão 20mm foi por ele estudada. Tratava-se de aplicar o MG 151 que a Força Aérea bem conhecia do ALIII, opção que João Donas-Bôtto acabou por não acolher.
O processo de aquisição da “Comando Chaimite” para a Força Aérea, descrito na referida informação de Julho de 1967 conclui, não se pronunciando sobre as capacidades da viatura ou a sua adequabilidade às tropas a que se destinava, que não havia verba para tal aquisição, “… a não ser que Sua Excelência o Ministro da Defesa Nacional determine que pelo Fundo de Defesa Militar se concedam os créditos necessários…”.
Finalmente em 27 de Julho de 1967, por despacho do Ministro da Defesa Nacional, Manuel Gomes de Araújo, terminam as esperanças da Força Aérea em dotar os seus pára-quedistas com uma viatura blindada moderna e que à época claramente causava grande expectativa naqueles que tomavam contacto com o projecto. No extenso despacho o ministro descreve as características das tropas pára-quedistas, do seu emprego operacional e equipamento quer para o combate apeado quer para o transporte por aeronave, em termos doutrinários e também daquilo que era o seu emprego na luta anti-subversiva no então Ultramar Português. Em relação à viatura refere “…penso não ser susceptível de transporte por aviões de que dispomos ou possamos vir a dispor e muito menos a lançamento em pára-quedas. Assim não se adapta ao transporte normal destas tropas… … não se desconhece nem nega a utilidade desta viatura no combate. Mas raras vezes poderia ser aproveitada, a menos que o emprego dos “páras” ficasse subordinado no tempo e no espaço à possibilidade da sua utilização… …Meio muito útil na luta terrestre deve ser atribuído, pelo menos em primeira prioridade, às tropas de terra e nestas em primeiro lugar às unidades de reconhecimento que, equipadas com elas e com viaturas blindadas tipo AML ou CC ligeiros, ficam com grande aptidão para a abertura de manutenção da liberdade de movimentos… … Há, por isso, que dotar em primeiro lugar e logo que possível o Exército… …E como os meios financeiros são por sua vez limitados há que fixar prioridades: Força Aérea, aviões e helis para as suas necessidades próprias e para as de cooperação com o Exército e Armada; Exército, unidades bem instruídas, meios apropriados de deslocação e meios de transmissão; Armada, vigilância e segurança das águas costeiras e interiores…”.
Em 30 de Dezembro de 1967 o Exército compra um primeiro lote de 28 viaturas, agora já designadas V-200 Chaimite, por 40.000.000$00 escudos (este preço incluía os sobressalentes) as quais só começam na realidade a ser entregues em…1970.
Quanto aos pára-quedistas fizeram toda a guerra em África sem usar qualquer tipo de viaturas blindadas. Terminado o conflito quando o Corpo de Tropas Pára-quedistas criou a Brigada de Pára-quedistas Ligeira, no inicio dos anos de 1980, e adequou a sua organização aos desafios da altura – a guerra convencional na Europa – foi opção dos seus comandos não adquirir viaturas blindadas.
Haveria que se esperar por 1995, já depois portanto da transferência das Tropas Pára-quedistas da Força Aérea para o Exército (01JAN1994), para um dos seus batalhões, o então designado 2º Batalhão de Infantaria Aerotransportado, poucas semanas antes de partir para a Bósnia, ser equipado com 26 V-200 Chaimites. Os “boinas verdes” que em 1967 não puderam comprar esta viatura tornaram-se assim, quase 30 anos depois, nos seus maiores utilizadores operacionais. Na realidade, acasos da história, a Bósnia-Herzegovina durante o ano de 1996, foi o teatro de operações onde mais Chaimites se utilizaram em toda a história da viatura.
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Nota: este artigo foi originalmente publicado na revista “Mais Alto” da Força Aérea Portuguesa, na sua edição n.º 380 de Julho/Agosto de 2009, com o título “Quando a Força Aérea quis comprar… Chaimites!”, embora com menos imagens actuais.
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