AS “FAV” DOS PÁRA-QUEDISTAS PORTUGUESES
Por Miguel Machado • 14 Out , 2012 • Categoria: 07. TECNOLOGIA PrintEm 1989 o Corpo de Tropas Pára-quedistas da Força Aérea adquiriu 6 viaturas «Fast Attack Vehicle». Era o início da história destas singulares viaturas militares em Portugal. Em 2011, 22 anos depois, iniciaram a sua última missão: integram o núcleo museológico da Escola de Tropas Pára-quedistas da Brigada de Reacção Rápida do Exército, em Tancos.
Corpo de Tropas Pára-quedistas
Os anos passam e certamente muitos leitores não conhecem algumas particularidades das Tropas Pára-quedistas Portuguesas quando pertenciam à Força Aérea Portuguesa (1955-1993). Assim sendo este pequeno capítulo prévio, muito sintético e virado para o assunto do artigo, pode ser útil para perceber a aquisição destas viaturas.
Desde a sua criação que as tropas pára-quedistas, um pouco por todo o mundo, se distinguiam das demais unidades pela escolha de equipamento, armamento, uniformes e um sem número de artigos singulares, diferentes. Isto tinha quase e sempre a ver com a especificidade da sua actividade, o transporte aéreo e o salto em pára-quedas, mas também, há que reconhece-lo, uma certa vontade de ser diferente, de inovar, de estar mais actualizado e de lançar novos conceitos. Em Portugal, desde a criação das tropas pára-quedistas em 1955 que este caminho foi muitas e muitas vezes seguido (1) – ainda hoje! – e ao longo destes últimos quase 60 anos, muitos foram os equipamentos e armamentos específicos que as tropas pára-quedistas portuguesas usaram. Diga-se no entanto que, um pouco por todo o mundo, e em Portugal também, esta tendência foi gradualmente desaparecendo não só por questões económicas – estes materiais são regra geral mais caros – como pela tendência que a profissionalização trouxe de equipar melhor os cada vez menores contingentes ditos de “tropa normal”. Hoje em muitos exércitos e também no nosso, poucas diferenças de equipamento há entre um militar pára-quedista e um de infantaria, tendo-se deslocado a singularidade do equipamento e armamento para as forças de operações especiais.
É neste quadro que as “FAV” foram compradas, mas não só. Acresce que os processos de aquisições no Corpo de Tropas Pára-quedistas (CTP) da Força Aérea eram responsabilidade quase exclusiva deste Corpo – seguindo naturalmente os procedimentos legais, com a anuência do ramo e dentro do orçamento próprio. Os pára-quedistas tinham autonomia financeira, ou seja, simplificando, a FAP atribuía-lhes um orçamento anual e o CTP geria-o, decidia como gastava o dinheiro e em quê – e assim foram adquiridos e colocados ao serviço em Portugal, fardamentos inéditos, diverso tipo de armamento moderno, emissores/receptores, equipamentos, viaturas.
Veículos de ataque rápido
Os veículos ligeiros armados para ataque rápido tiveram um dos seus pontos altos – para muitos nasceram mesmo aqui – na 2.ª Guerra Mundial, com o Long Range Desert Group e o Special Air Service, unidades britânicas, que usavam viaturas convencionais, armadas e adaptadas, para efectuar incursões em território inimigo, nos desertos do Norte de África. Depois do conflito mundial, nas guerras em que se envolveram, sobretudo os britânicos, mas também algumas unidades de elite dos EUA, continuaram a usar este tipo plataformas, que foram evoluindo para viaturas dedicadas à finalidade, já não como meras adaptações de ocasião. Os “Jeep” e “Land-Rover”, armados, eram as máquinas preferidas e combateram, da Coreia ao Omã e Áden, passando pelo Vietname e Panamá.
É no entanto durante a operação “Desert Storm” em 1991, que o mundo fica a conhecer – entre outras viaturas usadas por unidades de forças especiais – aquilo que os ingleses designaram por “Light Strike Vehicle” (LSV) e os americanos “Desert Patrol Vehicle” (DPV). «Essencialmente o desenvolvimento de um buggy armado e com dois ou três lugares. Os ingleses do 22.º SAS usaram-no no deserto iraquiano mas não gostaram e abandonaram, mas os US Navy SEAL’s também o usaram, até ao fim do conflito, e adoptaram o conceito» (tradução livre do livro “Special Operations Patrol Vehicles, Afghanistan and Iraq”, de Leigh Neville, Osprey Publishinh, 2011). Os DPV americanos continuaram ao serviço e, quer no Iraque quer no Afeganistão foram (são?) usados pelos SEALs.
Ou seja, a BRIPARAS adoptou aquilo que por cá ficou conhecido por «FAV» (sigla de “Fast Attack Vehicle”), pela mesma altura que forças especiais dos EUA e Reino Unido. Escusado será dizer que em Portugal as viaturas foram, por ignorância disto, ridicularizadas por alguns…Só quando as viram em acção no estrangeiro perceberam que afinal de contas aquilo não era mal pensado de todo! Não sendo isento de críticas, era um veículo cuja utilização militar para certas finalidades podia ser muito interessante. Agora não era, como muitas vezes os utilizadores pretendem, um “faz-tudo”, isso nunca foi.
As FAV em Portugal
Após a sua chegada a S. Jacinto, à então Base Operacional de Tropas Pára-quedistas n.º 2, foram atribuídas ao Pelotão de Reconhecimento do Batalhão de Pára-quedistas n.º 21 da Brigada de Pára-quedistas Ligeira (BRIPARAS). Estava previsto serem compradas mais 12 viaturas, 6 para cada um dos outros dois batalhões de pára-quedistas da BRIPARAS, aquisições que nunca se vieram a concretizar.
Na sua configuração inicial – em 1989 – as FAV tinham 2 lugares sentados e apoio (deficiente, diga-se) para uma arma colectiva. Três foram equipadas com metralhadoras pesadas Browning 12,7mm e outras três com o Lança Granadas Automático AGL MK19 mod. 3 “Saco” 40mm, tipo de arma que em Portugal também não existia até esta aquisição. Nesta versão, a qual para facilitar a diferenciação, vou designar por “FAV Mk 1”, o artilheiro/apontador tinha que deixar o banco ao lado do condutor e subir para junto da arma a utilizar, sentado precariamente numa tira de lona ou em pé.
Características principais
Fabricadas na firma Chenowth Racing Products de S. Diego (EUA), tinha estrutura tubular de grande resistência (aço/crómio); 4×2 com 2 tripulantes; suspensão independente às 4 rodas, com 2 amortecedores com mola hedicoidal por roda, à frente e 3 amortecedores por roda com duas barras de torção com resistência de 21Kg/cm2; Peso vazio, 726Kg; largura dos pneus do eixo dianteiro, 22cm e do traseiro, 30cm; motor Volkswagen modificado para alto rendimento com 4 cilindros, arrefecimento misto a óleo e ar, 1984cc e 94HP (4.400rpm); velocidade máxima 140Km/h; aceleração sem carga, 0-50km/h em 3,6 segundos; ultrapassa obstáculos verticais até 33cm.
Comprimento, 3,7m; largura, 1,9m; altura 1,4m (FAVMk1) e 1,75m (FAVMk2).
A “FAV Mk2”
Após alguma utilização as viaturas foram modificadas em S. Jacinto, tendo-lhe sido colocado um banco para o “artilheiro” e suportes para mais armas: metralhadora ligeira FN MAG 7,62mm (junto ao chefe de viatura) e posto de tipo míssil Mílan para ser disparado como alternativa à arma principal, a 12,7mm ou o Mk 19. O pneu suplente foi colocado na frente, em cima da viatura e foram ainda adicionados suportes para 3 contentores munições Mílan e uma estrutura tubular adicional para proteger o “artilheiro” em caso de capotamento da FAV.
As modificações foram feitas nas oficinas da unidade! E tal só foi possível, primeiro pelo espírito de iniciativa que reinava naquela época nos baixos escalões e na cobertura e apoio que os comandantes conferiam; segundo porque a BOTP 2 tinha “herdado” da antiga Base Aérea n.º7 um parque de máquinas que não sendo muito recente era de enorme versatilidade, a que se juntavam funcionários especializados, com anos e anos de serviço nesta unidade aérea capazes de “fazer tudo”, contando com apoio de militares “técnicos de material terrestre” da Força Aérea.
Instrução e emprego táctico
As FAV da BRIPARAS foram recepcionadas e desde logo se deu início à formação de condutores para estas “máquinas”. Segundo Jorge Nascimento (in “Boina Verde n.º 157, ABR/MAI1991) «…recorde-se que até à data – 1989 – as características da viaturas todo-o-terreno que os pára-quedistas utilizavam em reconhecimento, apesar de exploradas com êxito, eram muito limitadas, quer em velocidade, quer em transposição de obstáculos, quer em capacidade de sobrevivência, quando comparadas com as FAV’s. Não havia condutores capazes de, em todo-o-terreno, executarem percursos limitados a velocidades entre 80 e 120 Km/h. Após a criação dos primeiros instrutores capazes de tirar o máximo rendimento desta viatura, graças aos ensinamentos do técnico americano que se deslocou a Aveiro para proceder à apresentação e instrução desta viatura, iniciaram-se uma série de cursos (COVIREC), Curso de Operador de Viaturas de Reconhecimento…». Com o entusiasmo bem típico daqueles tempos, suportado no profissionalismo dos sargentos instrutores e praças (escolhidas!) que começaram a operar as viaturas, no planeamento feito no batalhão e no apoio do comando da unidade, iniciaram-se testes para o futuro emprego operacional das viaturas. Estes cursos tinham o apoio de mecânicos civis da unidade e de pessoal técnico de material terrestre da Força Aérea que na BOTP 2 prestava serviço. O treino de condução decorria em S. Jacinto, no campo de tiro do Muranzel e ainda em Sever do Vouga numa pista de auto-cross (Talhadas). Continua Jorge Nascimento, à data Primeiro-Sargento Pára-quedista, «…apesar das suas origens estarem ligadas às vastas planícies desérticas, a viatura manifestou-se francamente boa em terreno acidentado, florestado ou não, seco ou encharcado. A grande desvantagem encontrada reside no facto de não haver qualquer tipo de protecção para os operadores em situações meteorológicas adversas. Outra área também explorada foi a condução nocturna com e sem aparelhos de visão nocturna. Quando utilizada por condutores experientes neste tipo de viatura, e recorrendo à iluminação do carro, conseguem-se níveis de condução bem próximos da sua utilização diurna. Em relação à condução com aparelhos de visão nocturna, e repare-se que estou a falar de condução pura em todo-o-terreno, o caso muda de aspecto: a condução é muito mais exigente, a experiência de condução tem de ser muito mais elevada, a adaptação ao aparelho tem de ser total, e exige um reconhecimento prévio e exaustivo da zona a operar. O último teste realizado, e talvez aquele de maior espectacularidade, foi o emprego de quatro FAV’s numa aterragem de assalto no aeródromo de Viseu, integrado no Curso de Instrutores/Monitores de Operações em Áreas Urbanizadas. A operação inédita quer para o Corpo de Tropas Pára-quedistas quer para a Esquadra 501, revestiu-se de preparação, planeamento e treino bastante cuidado. Após a escolha minuciosa dos condutores, procedeu-se a treinos de entrada e saída das viaturas em planos inclinados, simulando a rampa do C-130. De seguida, passou-se à adaptação e treino de condução com as equipas de assalto e apoio, agarradas à estrutura do carro… …a acção em si, após a aterragem, foi executada tal como tinha sido prevista, conseguindo-se uma sincronização perfeita entre equipas, condutores, viaturas e aviões. Tal como chegamos, embarcamos e descolamos deixando em terra uma série de observadores que com certeza ainda hoje não esqueceram a precisão e a rapidez posta na realização da operação.»
Na realidade o emprego das FAV neste tipo de acções mostrou-se quase uma rotina em S. Jacinto com elevado grau de proficiência para guarnições das viaturas e equipas de assalto/apoio. Aproveitando a área de instrução de operações em áreas urbanizadas de que a Base Operacional de Tropas Pára-quedistas N.º 2 dispunha, a escassos metros da pista do aeródromo, e esta nova capacidade – única em Portugal – não havia visita de alta entidade nacional ou estrangeira que não fosse “brindada” com uma destas demonstrações. Mas não só, as FAV passaram a participar nos exercícios quer do batalhão quer da BRIPARAS (a série Júpiter), em vários pontos do país e nas mais diversas condições atmosféricas. A Companhia de Forças Especiais da BRIPARAS (que foi extinta com a transferência dos pára-quedistas para o Exército), chegou a usar as FAV – como passageiros – mas as viaturas permaneceram sempre no Batalhão de Pára-quedistas n.º 21 (que passou a ser o 2.º Batalhão de Infantaria Aerotransportado e depois 2.º Batalhão de Infantaria Pára-quedista no Exército). Na realidade o debate sobre qual devia ser o “lugar” das FAV na organização da BRIPARAS nunca foi conclusivo e as viaturas foram-se mantendo em S. Jacinto, sendo empregue em exercícios, demonstrações e exposições um pouco por todo o território nacional.
Em 2004 foram transferidas de Aveiro para a Escola de Tropas Pára-quedistas com o intuito de equipar os precursores aeroterrestres (reconhecimento avançado), no Batalhão de Apoio Aeroterreste, hoje Batalhão Operacional Aeroterrestre da Brigada de Reacção Rápida. Chegaram a Tancos e foram “aumentadas à carga” da Companhia de Comando e Serviços da unidade nunca chegando a ser entregues aos Precursores Aeroterrestres. Na realidade além de problemas burocráticos relacionados com o quadro orgânico de material da unidade que não as contemplava, também a nível mecânico se verificavam já muitas deficiências. Acresce que nos precursores a viatura não despertou grande entusiasmo, devido a estes problemas mas também ao seu consumo e efectivo da guarnição: grande o primeiro e pequeno o segundo!
Assim a componente “relações públicas” da viatura passou a ser o seu uso principal e quer na ETP quer em exposições no exterior da unidade lá foram cumprindo mais esta missão, ajudar à divulgação das tropas pára-quedistas.
Em 2011 finalmente partiram para a última missão, com a transferência para o núcleo museológico.
(1) Mesmo sem ser exaustivo, note-se que os pára-quedistas portugueses foram os primeiros elementos das Forças Armadas a usar um boina como cobertura de cabeça, a introduzir o uniforme camuflado (ainda hoje o padrão de camuflado usado pelos três ramos foi introduzido primeiro nas tropas pára-quedistas da Força Aérea, que depois o trouxeram para o Exército que o adoptou e depois os outros ramos), a usar o abafo “gore-tex”, a usar a espingarda 5.56mm, a usar o novo capacete tipo “fritz”, etc.
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