AS COMPLEXAS ESCOLHAS NO “PROCUREMENT” AEROMILITAR
Por Miguel Machado • 22 Fev , 2019 • Categoria: 07. TECNOLOGIA PrintO presidente francês Macron defendeu recentemente um maior protagonismo militar europeu traduzido, entre outras formas, numa maior orientação para a selecção e aquisição de material militar concebido e produzido na Europa, em detrimento daquele de outros fornecedores, nomeadamente americanos. É este o ponto de partida para o presente artigo, que marca a chegada ao Operacional de um novo colaborador, nesta interessante área cujas implicações vão muito para além da tecnologia.
Como sempre, perante uma primeira colaboração, apresentamos o autor. José Carlos Cardoso Mira, 54 anos de idade e 34 de serviço, Coronel Técnico de Manutenção de Armamento e Equipamento da Força Aérea, na situação de Reserva. Licenciado em Engenharia Mecânica, concluiu a parte curricular do Mestrado em Transportes. Possui a Pós-graduação em Estudos da Paz e da Guerra nas Novas Relações Internacionais. É detentor do Curso de Estado-Maior Conjunto e do Curso Geral de Guerra Aérea. Possui diversos cursos e acções de formação de curta duração, nomeadamente de qualificação técnica em cinco aviões, em informações militares e no controlo internacional de tecnologias sensíveis. Desempenhou na Força Aérea, ao longo da sua carreira, vários cargos e funções de Execução, de Instrução, de Estado-Maior e de Comando e chefia, a nível de Base Aérea, Inspecção-geral, Estado-Maior, Academia, Comando Logístico e Comando da Instrução. Integrou uma Força Nacional Destacada com aviões P-3P (Operation Maritime Monitor – ex-Jugoslávia – quinta operação militar real da NATO e terceira envolvendo unidades portuguesas). No Ministério da Defesa Nacional, foi Chefe de Divisão na Direção Geral de Armamento e Equipamentos de Defesa e Assessor em Cooperação Técnico-Militar na Direção Geral de Política de Defesa Nacional. No plano internacional, foi representante no Grupo de Trabalho da União Europeia sobre Exportações de Armas Convencionais (COARM); Acordo de Wassenaar sobre Controlos de Exportação para Armas Convencionais e Bens e Tecnologias de Duplo Uso; Missile Technology Control Regime e Grupo de Peritos Governamentais da Convenção da Organização das Nações Unidas Sobre A Proibição Ou Limitação Do Uso De Certas Armas Convencionais Que Possam Causar Efeitos Traumáticos Excessivos. Colaborou com a Autoridade Nacional da Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento, Produção, Armazenamento e Utilização das Armas Químicas. É investigador integrado do Centro de Investigação e Desenvolvimento do Instituto Universitário Militar. É autor de mais de 20 artigos de âmbito aeromilitar publicados na revista Mais Alto, nas Revista de Ciências Militares, Revista Militar, Revista “Nação e Defesa”, revista IUM Actualidades e no Capítulo de Aeronáutica de quatro Livros do Ano da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.
AS COMPLEXAS ESCOLHAS NO PROCUREMENT AEROMILITAR
O presidente francês Macron defendeu recentemente um maior protagonismo militar europeu traduzido, entre outras formas, numa maior orientação para a selecção e aquisição de material militar concebido e produzido na Europa, em detrimento daquele de outros fornecedores, nomeadamente americanos. Um outro desenvolvimento recente que se enquadra nesta matéria é o anúncio, por parte do governo belga, da selecção do caça americano F-35 para substituir os seus actuais F-16, juntando-se assim, na NATO, aos EUA, Reino Unido, Dinamarca, Noruega, Itália, Holanda e Turquia (neste último caso, o programa tem sofrido complicações diplomáticas de última hora). Considerando o referido no primeiro parágrafo, tal anúncio caiu mal em vários sectores europeus, principalmente vindo do país que alberga a “capital” da União Europeia.
Mas poderá ser mesmo viável substituir totalmente o armamento americano por euro-equipamento militar? Será desejável fazê-lo? Quais os limites? Qual o posicionamento dos pequenos países euro-atlânticos nesta matéria? Não será seguramente este pequeno texto que vai responder definitivamente a todas estas questões, mas talvez possa contribuir para a reflexão sobre o assunto, nomeadamente no que respeita ao campo aeromilitar, provavelmente aquele, a par com a arma submarina, que mais elevadas ressonâncias financeiras apresenta.
Cabe dizer, desde logo, que alguns Estados de média dimensão, cujas Forças Armadas apresentam um volume já apreciável, em recursos humanos e materiais, têm resolvido a questão de uma forma que se diria “salomónica”, ou seja, operando simultaneamente equipamentos de ambas as origens, europeia e americana. São exemplos, no aeroespacial, a Espanha (caças Eurofighter Typhoon e F-18), Itália (caças Eurofighter Typhoon e agora os F-35) ou o Reino Unido (também caças Eurofighter Typhoon e F-35), o que sem dúvida aumenta custos e complexidade logística. Por isso, os Estados de dimensão mais pequena não têm estruturas financeiras que permitam esta solução, sendo obrigados a uma escolha problemática.
Textos publicados em sites nacionais focando a área da Defesa referem já, sucintamente, as formas pelas quais se concretiza a aquisição de equipamentos militares aos EUA e a entidades europeias, focando-se aqueles mais na aquisição de material já desenvolvido e disponível, e não tanto na participação em programas de concepção e desenvolvimento inicial desses mesmos equipamentos, constituindo este último, obviamente, um processo mais complexo. Esta opção foi exercida, por exemplo, por alguns dos países adquirentes do F-35, em graus diferentes, com diferentes participações financeiras, logo com diferentes capacidades de influenciar o programa. Um processo semelhante tem ocorrido, entre Portugal e Brasil, no que respeita ao programa KC-390.
A participação naqueles programas encerra tantas variáveis, de ordem operacional, tecnológica, logística, industrial, financeira e de política externa que, quase sempre, após os habituais longos anos de processo de tomada de decisão, a opção escolhida é alvo das mais variadas críticas, porque se privilegiou este critério em detrimento daquele, que o observador crítico entende como mais importante.
No campo do aeroespacial militar, a decisão belga agora tomada levou efectivamente a críticas dos sectores “europeístas”, os quais não aceitam que não tenha sido uma opção europeia a escolhida, em concreto os caças Eurofighter Typhoon ou Dassault Rafale. Não se tendo estado ligado, claro, ao processo belga de tomada de decisão, arriscamos dizer que a componente operacional e tecnológica prevaleceu aqui sobre a de política externa, como aliás se poderá ter passado noutros dos casos europeus citados.
Com efeito, o aeroespacial militar europeu padece neste momento de uma importante desvantagem tecnológica relativamente à indústria americana: a indisponibilidade de uma aeronave de combate concebida desde o início para apresentar características de furtividade (stealth) em radar e de outras assinaturas. Fosse pela separação, décadas atrás, dos programas de jactos de combate europeus em duas famílias concorrentes (ou “fratricidas”, o Typhoon e o Rafale), devido a diferenças politico-tecnológicas, e consequentes excessivos tempo e recursos que ambos os programas consumiram no seu desenvolvimento, fosse por eventual falta de investimento (ou sua dispersão) na investigação científica de base nas questões da detectabilidade radar, fosse ainda pelo alargado desinteresse político europeu pelos assuntos da Defesa, o facto é que a Europa se encontra um passo atrás dos EUA no respeitante a esta questão. E será difícil a um Estado dispender largos milhões de dólares, ou euros, num só programa de jactos de combate, comprometendo-se por várias décadas, se a tecnologia envolvida não for a de última geração, especialmente quando a doutrina aeromilitar actual sublinha as questões relativas à operação em espaço aéreo permissivo ou contestado.
Já agora, cabe dizer que nem todos os fabricantes americanos apresentam aeronaves stealth no mercado internacional. Na realidade apenas um o faz, com a devida autorização governamental e só para alguns Estados amigos (o F-35, dado que o anterior F-22 foi negado para qualquer exportação), sendo as outras propostas dos EUA aeronaves em tudo semelhantes aos jactos europeus. Quer uns, quer outros, têm sido seleccionados por alguns Estados não-NATO, por razões financeiras (o F-35 é o mais dispendioso programa militar americano) ou por negação de exportação pelos EUA.
No que respeita à doutrina aeromilitar, a proliferação de sistemas de defesa aérea avançados, por exemplo aqueles empregando os chamados “double-digit SAMs” (mísseis superfície-ar identificados no Ocidente por SA-10, SA-12, SA-20 e respectivos melhoramentos e cópias) leva, na opinião dos peritos, a que apenas aeronaves tripuladas stealth possam operar, nas fases iniciais de um conflito, em espaços aéreos por aqueles defendido (situação de espaço aéreo contestado), podendo as aeronaves não-stealth vir a operar apenas após ter sido estabelecida uma situação de espaço aéreo permissivo pela acção das primeiras, entre outros meios.
Refira-se que existem outras formas de operar em espaço aéreo contestado, evitando a entrada no mesmo das aeronaves tripuladas não-stealth, nomeadamente pelo emprego de mísseis ar-ar de longo alcance e mísseis de cruzeiro, estes últimos apresentando boas probabilidades de sucesso dadas as suas menores dimensões, o voo rasante que executam e o facto de, alguns, apresentarem características de furtividade. É esta a solução que tem sido empregue pelas forças aéreas europeias que têm intervindo em conflitos recentes, contornando a limitação stealth das suas aeronaves.
Alguns observadores dirão que esta solução remove o elemento humano da proximidade dos alvos, com as correspondentes desvantagens, por exemplo nos possíveis danos colaterais. Por outro lado, também terá de existir duplo investimento, nas aeronaves em si e nos mísseis de longo alcance a empregar por elas. No entanto, foi este o caminho seguido pela Polónia, que decidiu armar os seus F-16, de versão muito recente, com mísseis de cruzeiro certificados para este tipo de caça. Poderá ser um exemplo a seguir por outros operadores de F-16, eventualmente associado à modernização dos F-16 mais antigos para a versão mais moderna, já proposta ao mercado.
O alvo temporal de entrada em serviço do futuro avião de combate europeu (para já apenas franco-alemão), actualmente em esboço e presumivelmente stealth, é 2040, o que põe a questão de saber se as aeronaves actualmente em uso poderão operar até lá, admitindo ainda eventuais atrasos do programa. Para além disso, lamentavelmente, logo à partida parecem verificar-se os primeiros sinais da repetição da anterior dualidade Rafale-Typhoon, uma vez que alemães e franceses, de um lado, e britânicos, do outro, não se entenderam, para já, num projecto comum: paralelamente aos planos franco-alemães, os britânicos, numa manifestação de Brexit aeronáutico antecipado, apresentaram já um modelo de um eventual futuro caça avançado, dito Tempest, para o qual procuram colaborações, europeias ou não. Seria uma delas a Suécia, produtora do Gripen (o terceiro caça europeu das últimas décadas) mas Japão ou Turquia parecem posicionar-se também.
Em tal enquadramento, qual a posição de Portugal? Como noutros dos (dimensionalmente) pequenos países euro-atlânticos, esta questão está já na ordem do dia profissional de alguns. A questão central parece-nos ser: 1) substituição dos F-16MLU actuais por si próprios, diga-se assim, modificados para a versão mais recente e englobando mísseis ar-ar de longo alcance e mísseis de cruzeiro, torneando as limitações stealth das aeronaves ou, 2) imitando todos os outros parceiros do actual consórcio F-16 European Participating Air Forces (Dinamarca, Noruega, Holanda e agora Bélgica), avançar para uma aquisição FMS do F-35, continuando a partilhar com aqueles os custos de exploração e modernização e mantendo-se na vanguarda tecnológica, ou ainda, 3) posicionar-se para participar desde cedo no futuro avião de combate europeu, procurando uma posição interessante para as indústrias de Defesa e centros de investigação nacionais, mas tendo assim que modernizar e estender a vida dos actuais F-16, aguardando pelas novas capacidades num futuro algo distante? Teoricamente, poderíamos ainda equacionar uma quarta hipótese, a aquisição de Typhoon ex-RAF ou FA Italiana, remodelados. Seria uma opção europeia mas não em linha com o requisito stealth, não nos parecendo que constituiria um avanço suficientemente notável relativamente a F-16 updated.
No que respeita às indústrias nacionais de Defesa, as opções que envolvem a modernização dos aviões actuais poderiam envolver alguma actividade, enquanto a opção F-35, nesta fase, dificilmente o permitiria. Já o mais interessante para aquelas indústrias seria a terceira opção, cremos. Mas, relevantemente, pesaria ainda nesta análise o aspecto focado no início: largos milhões de euros para entidades americanas ou europeias? Seriamos alvos de euro-críticas no primeiro caso?
Neste último ponto, nas últimas décadas, as grandes aquisições militares nacionais têm privilegiado a Europa: fragatas MEKO 200, fragatas ex-holandesas, submarinos classe 214, carros Leopard, viaturas PANDUR, helicópteros EH101, aviões C295 e o helicóptero substituto do Al.III, o Koala, sendo as excepções ao referido os F-16, P-3 e, também em curso, o KC-390. Em abono da verdade, terá que ser dito que o procurement português se afastou de dois importantes programas europeus, o avião A400M e o helicóptero NH90. Mas mesmo assim o balanço parece pender para o Velho Continente, cujas indústrias de Defesa beneficiaram ou beneficiam directamente de algumas das aquisições, as de material novo, e indirectamente de todas elas, se consideramos as necessidades de sustentação ao longo dos respectivos ciclos de vida.
Tornariam aquelas aquisições menos criticável uma eventual opção americana na substituição do caça actual? (especialmente se outras aquisições fossem euro-orientadas, como forma de compensação). Poderia talvez haver lugar a alguma margem de relacionamento externo intra-europeu que minimizasse as manifestações de desagrado, caso fosse julgado que a opção de valorização mais rápida da componente operacional e tecnológica prevalecesse sobre a opção do enquadramento europeu.
Estamos em crer que Portugal, ao contrário dos demais pequenos países euro-atlânticos, e mesmo de grandes Estados-membros, não joga o xadrez das aquisições e projectos militares em apenas dois tabuleiros, mas em três, por razões históricas e estratégicas: Europa, EUA e Brasil. No entanto, a componente europeia deverá merecer especial atenção dos decisores, dado que estão em cima da mesa diversas inciativas da União, como sejam a Cooperação Estruturada Permanente e o Fundo Europeu de Defesa, relevantes para as Forças Armadas e para as empresas portuguesas.
Parece pois ser imperioso que os processos nacionais de tomada de decisão se concretizem com a necessária ponderação mas sem atrasos prejudiciais, de forma a que, salvaguardando sempre a eficácia das capacidades operacionais dos ramos militares, as quais fazem a diferença entre cumprir ou não a missão e com que custos, as restantes variáveis do processo sejam igualmente equacionadas, incluindo a crescente integração numa Europa da Defesa, já em movimento.
Nota pessoal – sendo este o primeiro texto do autor para o “Operacional”, aqui fica uma especial saudação a todos os seus leitores.
Miguel Machado é
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