AFEGANISTÃO, ESPÓLIO MUSEOLÓGICO DA AERONÁUTICA MILITAR
Por Miguel Machado • 15 Fev , 2016 • Categoria: 14.TURISMO MILITAR, EM DESTAQUE PrintOs militares portugueses em missões um pouco por todo o mundo deparam-se com acontecimentos, pessoas, locais, que naturalmente fogem ao comum dos seus concidadãos. A maioria guarda-os na memória, alguns partilham fragmentos nas redes sociais, o nosso colaborador Paulo Gonçalves, tenente-coronel da Força Aérea Portuguesa que serviu na missão das Nações Unidas no Afeganistão, decidiu partilhar aqui uma dessas curiosidades que poucos conhecem.
Quando um viajante chega a Cabul em avião comercial, ao sair do aeroporto depara-se com um monumento que prende a atenção. Trata-se a um caça supersónico Sukhoi 17, em atitude de descolagem, colocado na rotunda de acesso ao terminal civil. Para se entrar com o carro no trânsito local, quase que se tem de passar por debaixo da asa direita do avião, estendida na sua máxima amplitude pelo sistema de geometria variável. Um espetáculo!
Qualquer pessoa mais atenta é levada a questionar-se:
– “Como teria sido a Força Aérea do Afeganistão, antes do País entrar na situação em que se encontra?”
O próprio aeroporto está cheio de recordações desses tempos gloriosos. Longe dos olhares dos curiosos, e debaixo de uma apertada vigilância, as áreas militares da infraestrutura aeronáutica têm grandes quantidades de material e aviões abandonados. Alguns dos equipamentos ainda estão nas caixas, semidestruídas, originais de fábrica, com as capsulas plásticas protetoras colocadas nas tubagens de admissão. A guerra com os taliban parou tudo e todos no tempo, e aqueles equipamentos nunca chegaram a ser usados.
Mas quando se discute o assunto com os afegãos, a nossa curiosidade sobre a história aeronáutica deste País aumenta consideravelmente. Ficamos a saber que a Força Aérea Afegã (FAA), além de ter disposto em tempos de centenas de aviões, “produziu” um cosmonauta que operou na estação espacial Soviética – MIR. Os afegãos alegam ainda, que a língua Pashtun foi a quarta língua falada no espaço. Efectivamente, o coronel Abdul Ahad Momand, piloto de caça da FAA, em 1988, fez parte de uma tripulação Soiuz 7K de três cosmonautas soviéticos e, quando estavam a bordo da estação espacial MIR, falou via rádio, em Pasthun, com o presidente afegão e com sua mãe. Na altura, o coronel Momand não se apercebeu da relevância da ocasião, mas acabava de fazer com que o Pashtun fosse a quarta língua falada a partir do espaço, depois do russo, do inglês e do chinês.
Depois de muito viajar pelo país e perguntar sobre o assunto, fui finalmente informado onde estaria o Santo Gral da história aeronáutica afegã. Num jardim privado e murado, em plena capital, a sul do rio Cabul e paredes meias com o estádio de futebol onde os taliban as execuções públicas. O local não é difícil de se encontrar, contudo, por justificadas razões de segurança, os militares da OTAN estão proibidos de frequentar aquelas paragens. Valeu-me estar ao serviço das Nações Unidas, fora das restrições e regras de empenhamento da OTAN, e ter um carro blindado distribuído.
Atualmente, o espólio museológico da aeronáutica militar afegã está em poder de uma organização não-governamental (NGO), dedicada à desminagem do Afeganistão, denominada OMAR (Organisation for Mine Clearence & Afghan Rehabilitation).
Segundo apurei, durante as sucessivas guerras que há décadas vêm assolando o Afeganistão, foram colocadas no país cerca de 30 milhões de minas, do mais variado tipo e origem. Várias organizações, como a OMAR, têm recebido apoio internacional para a desminagem do território. Durante esta actividade, muitas vezes são recolhidos artefactos militares dignos de exposição pública. Desta forma, a OMAR decidiu fazer o seu próprio museu privativo, com todo o tipo de artefactos militares que encontra nas zonas minadas. Vai daí, englobaram coleção aeronaves e mísseis da Força Aérea Afegã, que de alguma forma estavam ao seu alcance.
Perde-se na tradução, de dari para inglês, a razão e forma como aquelas aeronaves apareceram no local. Não existe uma catalogação coerente, desconhecendo-se de onde vieram. Só se sabe que eram da Força Aérea Afegã e estavam em zonas minadas. Compreensivelmente, não é permitido ao grande público visitar o museu, devido ao elevado grau de ameaça e à pouca capacidade de resposta, na segurança do perímetro do museu ao ar livre. Ou seja, existe uma interessante coleção de aeronaves, e outros equipamentos militares, que estão ali para exclusivo deleite dos elementos da OMAR e seus distintos visitantes particulares.
Em contrapartida, zelosos da boa apresentação do seu jardim, enriquecido com a sua colecção de aviões privativa, a OMAR têm vindo a dar alguma manutenção às peças e, acima de tudo, a evitar que estas desapareçam na voracidade do contrabando, e da corrupção que caracteriza a sociedade afegã. Como o leitor poderá ver nas imagens, nem sempre a manutenção é a mais correta e os puristas ficarão ofendidos com certas pinturas que as aeronaves ostentam. Mas a tinta e o clima seco afegão evitam a corrosão e os estragos do sol, preservando as peças para futuro restauro.
Espalhados por vários aeródromos afegãos, há ainda muito material de elevado valor museológico, como por exemplo, um MIG 15 abandonado perto da pista de Mazar-e-Sharif, ou os restos de um FIAT CR 42 Falco (caça biplano) expostos na Embaixada de Itália, em Cabul. Acrescenta-se à equação o poder aéreo que a OTAN trouxe à região. É também digno de “arqueologia aeronáutica” fazer-se o levantamento das cerca de 200 aeronaves que, só nos últimos dez anos, caíram no Afeganistão devido a avaria técnica, ou a fogo hostil dos taliban.
Talvez um dia o Afeganistão saia da crise em que está mergulhado, consiga restaurar a sua história aeronáutica, e abra as portas das colecções a todos os visitantes amantes da aviação.
(Nota: as legendas das fotos são uma responsabilidade partilhada com o Operacional)
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