“A ÚLTIMA MISSÃO” de Moura Calheiros
Por Miguel Machado • 17 Dez , 2010 • Categoria: 08. JÁ LEMOS E... PrintAgora que concluímos a sua leitura não podemos deixar de transmitir alguns apontamentos do que mais nos marcou nesta leitura e bem assim como algumas fotografias – muitas do Alfredo Serrano Rosa que por esses tempos de África já andava (felizmente para nós hoje) com a máquina fotográfica junto da arma – e mapas, dando talvez uma melhor ideia do que é o livro em presença.
Já apresentamos nas páginas do “Operacional” este livro do Coronel Moura Calheiros com um texto fornecido pela editora que se destinou a divulgar a obra por altura do seu lançamento, no passado dia 29 de Novembro de 2010. Hoje deixamos as nossas impressões.
Embora o autor tenha optado por descrever as acções relativas à guerra (em Angola, Moçambique e Guiné) intercaladas com o texto em que nos descreve, em detalhe, a missão (concluída em 2008) de recuperação das ossadas dos militares portugueses enterrados em Guidage desde 1973, aqui não vamos ter preocupação de seguir o mesmo procedimento, mas antes abordar cronologicamente esses vários tempos.
O livro de Moura Calheiros é uma obra muito documentada onde a sua memória é completada por referências a documentos oficiais – que agora procurou e investigou em diversos arquivos – e entrevistas com intervenientes nas acções, alguns antigos inimigos. Moura Calheiros não escreveu um romance, isto é história. No entanto a obra está muito longe dos habituais livros de história ,e mesmo de muitos não-oficiais mas hoje aceites como tal. A sua escrita é bem agradável de ler, nada técnica e tem uma grande preocupação de explicar tudo aquilo que lhe pareça poder não estar no conhecimento do leitor. Um exemplo, Moura Calheiros explica em pormenor, passo a passo, como foi a política de repatriamento dos mortos no antigo Ultramar, desde o inicio da guerra em 1961 até à actualidade. Porque uns foram enterrados em África e outros não, porque uns foram repatriados e porque hoje, num regime político muito diferente, o poder continua a não os querer repatriar. Outro exemplo, porque foram abandonados à sua sorte – em termos legais – os militares portugueses de origem guineense após a independência do país.
O livro tem descrições do que era a vida do militar português em África muitíssimo bem escritas. Transportam sem dúvida o leitor para aquelas terras, para as condições em que fizemos a guerra, primeiro em Angola, depois em Moçambique e mais ainda na Guiné. Moura Calheiros andou com as “botas no chão”de arma na mão. A sua visão não é a de um oficial de estado-maior baseado em estatísticas e relatórios. A impressão geral que se retém é a de uma guerra travada, muitas vezes (quase sempre!), em deficientes condições logísticas, razoavelmente armados mas cada vez mais em inferioridade perante um inimigo bem armado e em que o treino recebido na então Metrópole, inicialmente totalmente desadequado, teve que evoluir à custa da experiência no terreno. Nem sempre tão rapidamente quanto poderia ter acontecido.
O modo (irresponsável para não dizer criminoso) como em Moçambique, junto ao rio Messalo, se colocaram minúsculos destacamentos portugueses face a um inimigo mais forte que sucessivamente os vai aniquilando é uma das “passagens” do livro, muito bem descritas, em que se pode perceber a diferença de sensibilidade entre quem toma as decisões e quem as executa.
Já na Guiné, a viagem numa Lancha de Desembarque Grande, onde várias centenas de militares de todas as cores e armas, amalgamados, se juntam a caminho de uma operação é outro exemplo do modo como se pode olhar para esta “simples” colocação de uma força na zona de acção. Vista do lado de dentro da LDG quase que é motivo para perguntar como eram depois capazes de combater? Moura Calheiros responde no livro. Mas o livro, recheado de episódios que ilustram bem o que foi a guerra vista “junto ao solo”, também se refere a outros aspectos mais “elevados”, como a inutilidade de uma operação em solo estrangeiro, para supostamente aliviar a pressão sobre Guidage, e que ficou muito mal contada para a história. Um dos inimigos de então, Manuel dos Santos, escreve também sobre isto algumas páginas do livro.
Os combates pelo Cantanhez e posterior ocupação do território, com armas mas também com enxadas; o romper do cerco de Guidage com as estradas pejadas de novas minas para as quais não tínhamos “antídoto”, sob um brutal poder de fogo do inimigo que só o apoio aéreo dos Fiats (rudimentar mas eficiente) conseguiu “in extremis” evitar baixas insuportáveis; a defesa de Gadamael, com guarnições da nossa artilharia a serem aniquiladas pelo fogo inimigo, tripulações da Marinha a desembarcarem companhias de pára-quedistas sempre debaixo de bombardeamentos, muitas vezes de bem longe da fronteira; mas também o sabor da vitória e o sentido do dever cumprido. Aqui uma nota para referir que Moura Calheiros, talvez por pudor, embora descreva cenas de combate com muito realismo e as baixas nos nossos militares, foge a “mostrar-nos” a morte do inimigo. Embora se adivinhe por vezes a eliminação física dos terroristas, esse epílogo de muitas acções, fica por contar.
As reflexões finais de Moura Calheiros são um dos pontos fortes do livro. A sua opinião sobre o modo como o reconhecimento a quem combatia foi sendo feito, na Guiné especialmente, é contundente. Para quem foi militar de carreira e conhece os “mecanismos dos louvores e condecorações”, é fácil acreditar que assim foi. Também aquilo que o comandante de companhia, o capitão, sentia e o modo como encarava a vida e a morte em operações é uma interessantíssima peça desta obra. Sobre a guerra na Guiné que tantas opiniões diferentes sempre origina, Moura Calheiros está convicto que não perderíamos aquela guerra mas também dificilmente a ganharíamos. Em síntese diz que não sairíamos derrotados porque sempre fomos a todos os locais da então Província Ultramarina onde quisemos ir e mesmo com oposição armadas sempre o fizemos, mas também nos escapava a vitória não só pela desmotivação de importantes sectores nacionais como pela enorme capacidade militar do PAIGC que estava cada vez mais bem armado, treinado e apoiado em bases no exterior.
Ainda para terminar esta “parte da guerra” do livro uma última observação. Moura Calheiros é rigoroso na escrita mas transmite uma imagem da guerra sem usar, por exemplo, expressões em calão. É um oficial a escrever como (certamente, não sei!) comandou. Andou de armas na mão, sofreu como os seus sargentos e praças (que repetidamente são por ele elogiados), matou e viu morrer, mas evita a linguagem “terra à terra”. Defende, elogia, todos os que sofreram a guerra no terreno: dos militares em quadrícula aos fuzileiros especiais, dos pilotos e operadores do helicanhão ou DO-27 às enfermeiras pára-quedistas; das tripulações das lanchas da Marinha aos pilotos de Fiat; dos sacrificados caçadores que picavam as estradas minadas aos comandos; e o Batalhão de Caçadores Pára-quedistas com o seu comandante, coronel pára-quedista Araújo e Sá, para Moura Calheiros um herói injustamente esquecido. O livro é também muito sobre a missão de resgate dos corpos dos militares enterrados em Guidage. Além de nos transmitir com algum detalhe o que foi o processo que conduziu a esta missão – mesmo que talvez pela sua proximidade no tempo omita alguns aspectos de bastidores – aborda passo a passo a missão na Guiné de hoje o que nos proporciona também uma interessante leitura. Moura Calheiros compara a Guiné Portuguesa, limpa, organizada e em progresso, mesmo em guerra, e a terrível realidade da Guiné -Bissau de hoje, com passagens, muito duras e outras com toques de alguma tragicomédia. Ao mesmo tempo mostra bem o modo como os portugueses, hoje, são ali acarinhados, facto que confessa o surpreendeu mas naturalmente muito apreciou e emocionou. Envergonha-se do modo como Portugal tratou no pós-25 de Abril de 1974 os guineenses que serviam nas Forças Armadas Portuguesas. Os que sobreviveram ainda guardam as suas cadernetas militares!
O livro faz também o percurso de vida dos 3 jovens pára-quedistas que ali morreram em 1973, o seu ambiente familiar, a vida nos pára-quedistas e o tempo de Guiné até à sua morte em combate. Para Moura Calheiros estes jovens, pelas suas origens humildes e pela difícil vida que haviam trilhado até se juntarem ao esforço de guerra em África, são uma boa amostra daquilo que foram a generalidade dos portugueses que defenderam o Império. Não se julgue que há aqui juízos políticos, é uma constatação sobre os jovens que viu serem enviados para África, uns voluntários como os pára-quedistas, a maioria porque assim era e tinha chegado a sua altura.
As peripécias e dúvidas que se colocaram à Equipa que ali se deslocou em 2008 ocupam parte importante da obra e fica bem claro o reconhecimento do autor aos que se juntaram a essa empresa que alcançou, refira-se, sucesso completo.
Estamos perante um obra marcante sobre a última guerra que Portugal travou em África no século XX. Interessará a quem lá andou mas também, estou certo, a quem a queira estudar.
O livro tem formato 17x24cm, é profusamente ilustrado com fotos a cores e a preto e branco e mapas, tem 638 páginas e é uma edição da “Caminhos Romanos” (ver ficha técnica).
Miguel Silva Machado
Consulte aqui o site do livro: “A Última Missão”
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