A “SÁBADO” ERROU, PRESTOU MAU SERVIÇO À HISTÓRIA DE PORTUGAL
Por Miguel Machado • 24 Nov , 2019 • Categoria: 11. IMPRENSA PrintA avaliar pelo que o director escreveu no editorial da edição n.º 812 (21 a 27NOV2019) da revista “Sábado”, a intenção até era boa “…espera-se agora que o Governo seja coerente e produza medidas concretas de apoio aos ex-combatentes, dando operacionalidade a uma Secretaria de Estado (Secretaria de Estado de Recursos Humanos e Antigos Combatentes) cujo funcionamento e um imperativo ético e nacional.” Assim dedicou a capa e 14 páginas à “Guerra Colonial – Os primeiros soldados enviados por Salazar”. Só que o artigo não se dedica aos que foram realmente os primeiros: as Tropas Pára-quedistas da Força Aérea Portuguesa.
Os primeiros a partir da então Metrópole depois do ataque terrorista de 15 de Março de 1961 no Norte Província Ultramarina de Angola, foram os militares do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas da Força Aérea Portuguesa.
No dia 16 de Março de 1961 descolaram do aeroporto de Lisboa num Super Constellation dos Transportes Aéreos Portugueses e aterraram em Luanda a 17. Seguiram logo para o Norte de Angola onde iniciaram as operações de socorro às populações e combatendo os terroristas da UPA. A 19 de Março seguiram mais dois pelotões de pára-quedistas, também via aérea, e entre 20 e 29 de Abril já estavam em combate no Norte de Angola duas Companhias de Pára-quedistas e já tinham inclusive sofrido o 1.º morto em combate, o Soldado Pára-quedista Joaquim Afonso Domingues.
Tudo isto antes do dia 1 de Maio de 1961 data em que na reportagem se refere a chegada a Angola dos “primeiros soldados enviados” por Salazar.
Isto que escrevo é algum segredo? De maneira nenhuma, está mais do que documentado em livros e revistas desde 1961 até 2019!
Artigo “Os primeiros a ir para a guerra”
Lendo o artigo assinado por Marta Martins Silva, “Os primeiros a ir para a guerra”, páginas 36 a 49 da edição n.º 812 (21 a 27NOV2019) da revista “Sábado”, percebe-se que tem uma parte de investigação com várias referências, e entrevistas a ex-combatentes. As fontes bibliográficas declaradas são um livro (Os anos da Guerra Colonial de Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso), um artigo de uma revista (Revista Militar, artigo de Pedro da Silva Monteiro, “A logística de Portugal na guerra subversiva de África – 1961 a 1974”), uma breve referência a “…uma compilação de 16 livros sobre a Guerra Colonial…” sendo coautor Orlando Castro e notícias de jornais da época (Diário Popular e Diário de Noticias). As pessoas referidas são seis, cinco antigos militares do Exército e a mulher de um deles.
Não nos vamos pronunciar sobre o que é referido pelos intervenientes nos acontecimentos da época, é a visão dos próprios, mas não podemos deixar de assinalar alguns aspectos que no texto e mesmo em sub-títulos aparecem como verdades, ou sendo-o, induzem em erro sobre datas e quando de facto se iniciou a reacção aos ataques.
Claro que havendo no artigo uma única referência às Tropas Pára-quedistas – ainda por cima com datas erradas “…13 de Abril Salazar ordenou e as primeiras tropas a ir para Angola foram paraquedistas e companhias de caçadores especiais (de avião)…” (e os Caçadores Especiais estavam em Angola não foram enviados depois do 15 de Março), tropas percebe-se que a autora desconhece datas, locais e o modo como foram empregues, o mesmo acontecendo em grande medida com o determinante papel da Força Aérea Portuguesa – tem duas referências, “8 de Junho data em que desapareceu o primeiro avião da Força Aérea em Angola com três tripulantes a bordo” e Reforço, em Julho de 1961 a Força Aérea foi reforçada em Angola com caças-bombardeiros F-84G destacados da Ota – ignorando não só o Exercício Himba em 1959 que preparou a instalação da FAP em Angola, como todo o esforço de guerra em apoio às populações e aos pára-quedistas antes da chegada dos reforços vindos via marítima de Lisboa. Sobre a Marinha há também uma pequena nota dizendo “10 de Novembro, chegada a Luanda de avião do Destacamento de Fuzileiros Especiais 1, 1.ª Unidade da nova Infantaria da Marinha”.
Sendo uma evidência que o dispositivo militar português não estava preparado para enfrentar um ataque com a dimensão do que sucedeu a 15 de Março de 1961 – inicialmente terão sido cerca de 5.000 atacantes, número que em dias subiu até aos 25.000 segundo alguns autores, tendo morto 500 europeus e 20.000 africanos – também é verdade que alguma coisa estava a ser feita para enfrentar possíveis actos violentos. E este é assunto que teima em ser esquecido – é uma daquelas verdades inconvenientes para muitos historiadores ou curiosos que têm escrito sobre a Guerra do Ultramar com fontes muito limitadas ao Exército – a Força Aérea preparava há muitos anos a sua participação num eventual conflito ultramarino, e, além do exercício Himba em 1959, há hoje muitos elementos que o documentam. Sobre isto aconselho a leitura do livro “Plano de voo África, o poder aéreo português na contra-subversão 1961-1974” de Johh P. Cann, uma edição da Comissão Histórico-cultural da Força Aérea em 2017. Além do apoio dos Auster, Noratlas e Dakotas que já estavam na na Base Aérea n.º 9 em Luanda, em 20 de Março de 1961, 4 aviões T-6 (de origem francesa) aterram no Negage e de imediato iniciam acções de combate no Norte de Angola. Mais T-6 chegaram da Metrópole e ainda em Abril, as DO-27, pequeno mas muito versátil avião que se tornou muito importante neste período da guerra no Norte. Tudo isto portanto antes da chegada do navio “Niassa” a Luanda referido na reportagem.
Os pára-quedistas em Angola
Em 1959 1 Companhia de Pára-quedistas do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas (BCP) foi projectada para a Guiné, S. Tomé e Príncipe e Luanda (Angola) no âmbito do exercício Himba da Força Aérea Portuguesa que envolver 6 PV-2, 3 SC-54 e 3 C-47. Em Angola além de Luanda os pára-quedistas efectuaram saltos em pára-quedas “em massa” , em Nova Lisboa e Sá da Bandeira, numa demonstração de capacidades.
Em 1960 um pequeno destacamento de cães militares do BCP foi transportado via aérea para Luanda onde reforçaram a segurança da Base Aérea n.º9. Estas equipa cinófilas vieram a participar nos patrulhamentos da cidade após os ataques de 4 de Fevereiro 1961 e em Março, após os ataques no Norte foram empregues em conjunto com as companhias idas de Tancos.
Em 1961, a 17 de Março chega a 1.ª Companhia de Caçadores Pára-quedistas do BCP, depois em Abril a 2.ª CCP e em Maio a 3.ª CCP. Por Portaria de 8 de Maio de 1961 é criado o Batalhão de Caçadores Pára-quedistas n.º 21, com as suas companhias dispersas por vários locais de Luanda, e em 1964 num novo quartel em Belas – Luanda. Ali esteve até 1975.
Bibliografia disponível
Percebe-se pelo tom geral do artigo que a intenção foi dar um panorama “miserável” das nossas forças, é uma visão possível da guerra, mas quem investiga deve, achamos nós, ir um pouco mais longe, tanto mais que passadas décadas há muita bibliografia e estudos sobre o tema.
Qual foi a guerra em que os primeiros militares a ser empenhados estavam bem preparados para a fazer? Não negando que mais poderia ter sido feito, é da história que os primeiros militares a entrar em combate são sempre os menos preparados! Estavam os polacos os franceses e até os ingleses ou os russos bem preparados para enfrentar os alemães na 2.ª Guerra Mundial? E os americanos quando chegaram à Europa estavam preparados? Estavam os franceses bem preparados para enfrentar as guerrilhas no Vietname ou mesmo inicialmente na Argélia? E nós na 1.ª Guerra Mundial? E mesmo nas missões de Paz, sabíamos ao que íamos na Bósnia em 1996? Íamos bem treinados, armados e equipados? Se quem ataca, tem o tempo que acha necessário para se preparar, equipar e treinar, quem defende, muitas vezes – quase e sempre – não está na realidade bem equipado e treinado. Só o tempo e as lições aprendidas permitem melhor enfrentar o inimigo, seja em que guerra for contra quem for.
Ainda assim é de salientar, apenas em relação a esta reportagem, que os pára-quedistas partiram para Angola com as novíssimas espingardas automáticas (AR-10), ou receberam-nas em Angola na chegada, armas estas que segundo muitos utilizadores até se viriam a revelar superiores à G-3 que também utilizaram mais tarde. Partiram todos fardados de camuflado. Claro que o seu treino para aquela guerra não era então o mais adequado mesmo que houvesse também nos páras quem tivesse estado em França (e na Argélia) a estudar estes fenómenos. O modo como o treino de contra-guerrilha dos Páras foi sendo desenvolvido teve a ver com a realidade que foram enfrentando, as épocas e os locais onde foram empregues.
Parece algo incrível que havendo tanta bibliografia disponível, até em livros que a autora refere – por exemplo, “Os anos da Guerra Colonial de Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso – a participação dos Páras idos de Portugal em Março e Abril de 1961, no inicio da guerra do Ultramar em Angola, tenha sido limitada aquela pequena e incorrecta nota.
Aqui fica o nosso contributo para a reposição a verdade, esperando também nós que as questões relativas à Guerra do Ultramar e aos que nela combateram tenham o devido acompanhamento pelo governo.
E, já agora, deixamos aos leitores alguma bibliografia – nas mais diversas editoras e por diferentes autores – onde o que aqui referimos vem claramente expresso.
(Nota: artigo editado em 250920NOV2019 na parte respeitante à pequena nota sobre a partida dos pára-quedistas para Angola. Tem realmente uma pequena referência, mesmo que com datas erradas)
Miguel Machado é
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