A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (VII)
Por Miguel Machado • 6 Dez , 2015 • Categoria: 05. PORTUGAL EM GUERRA - SÉCULO XX PrintHoje, mais uma dura experiência de guerra, o primeiro inimigo abatido em combate. Chegamos ao sétimo artigo desta série. Vivências reais de alguém que sentiu necessidade de os contar. São textos curtos que do nosso ponto de vista constituem um grande contributo para se entender muito sobre a guerra, todas as guerras e esta no antigo Ultramar Português em concreto. Quem os escreveu apenas quer ser descrito como “um Primeiro-Cabo Pára-quedista“, e porque o conhecemos há muitos anos, respeitamos isso e aceitamos a publicação, que aliás insistimos para dar a conhecer nestas páginas do Operacional. Os factos foram passados em Angola, com militares do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas n.º 21, nos anos 70 do século XX.
A primeira vez
… Seria Maio de 1970 em Nambuangongo. A coluna reiniciou o movimento em direção ao para mim, desconhecido.
O relevo do terreno continuou, sinuoso e difícil, a mata e redor, parecia-me impenetrável. Já a tarde ia avançada, quando chegámos a um quartel do Exército, numa terra chamada Zala.
Começámos por vislumbrar, uma concentração de tropas nunca vista. Vários bivaques de tendas de campanha espalhavam-se na terra vermelha, junto ao heliporto. Fomos colocados fora de todo este aparato.
Sentados junto ao material alinhado, esperámos as instruções que estavam a ser ministradas aos graduados.
Num croqui improvisado, o comandante do grupo explicou toda a operação. A nossa companhia de caçadores pára-quedistas iria atacar um acampamento inimigo, bem estruturado e fortemente armado. Seriamos colocados no terreno por helicóptero.
Durante o longo curso de combate em Tancos, recebemos instrução de embarque e desembarque e de heli-assalto. No pinhal do batalhão de instrução, junto à Praia do Ribatejo, tínhamos montado cenário de uma sanzala (aldeia rural), com cubatas (casebre) e miniaturas de helicópteros. Por isso para mim, maçarico, nada era novo.
Os mais antigos e experientes sabiam que em combate tudo é possível, por isso, nas horas que antecediam a acção, faziam uma introspecção pessoal. Via-os a falar com eles próprios, ou quiçá, a conversar em pensamento com os seus entes queridos na longínqua Metrópole.
Não sei se dormi. Sei que a noite ao relento foi longa. Ao olhar os milhões de estrelas no firmamento, lembrei-me de tudo e de todos. Disse a mim próprio que nada me podia acontecer, tinha que voltar para a minha terra e para as gentes que sempre conheci.
Ao alvorecer, soou a ordem para levantar e preparar o material. Reparei que todos estavam já despertos. Talvez não tenham dormido, como eu, pensei.
O material era de fácil e rápida acomodação, todos tínhamos prática em fazer o “chouriço”, enrolando a manta na capa impermeável e adaptando-a à mochila em forma de U invertido.
Os graduados fizeram os últimos avisos e recomendações. Deslocámo-nos para a zona de embarque, divididos em equipas de cinco homens e aguardámos deitados no chão, junto ao lugar onde iriam aterrar os nove Allouette III, oito para transportar pessoal e um armado (heli-canhão) para protecção no desembarque.
O heli-assalto era composto de várias vagas. Seriam colocadas no terreno, duas companhias de caçadores pára-quedistas da Força Aérea e uma de comandos do Exército. Em cada viagem, os ALIII transportavam dois pelotões. O meu grupo ia na primeira vaga.
Outras tropas do Exército tinham sido colocadas anteriormente, emboscadas em pontos estratégicos em redor de toda a zona do objectivo, para evitar a fuga dos guerrilheiros.
A espera era difícil, pensávamos em tudo. Como cavalos de corrida antes da partida, a adrenalina do combate e a incerteza do que podia acontecer tomava conta de nós, formava-se um nó na garganta e no estômago, apenas desejávamos ser largados para iniciar a missão.
Mal surgiram os primeiros alvores da madrugada, alguém conseguiu detectar a aproximação dos helicópteros, pelo ruído ainda ténue e distante, provocado pelo movimento das suas pás e rotores.
Começou a azáfama. Sem alaridos, foi dada ordem para os primeiros dois pelotões, oito grupos de cinco homens se prepararam para embarcar. Em poucos minutos, estávamos no ar, voando em formação, de portas abertas e rasando as copas das árvores.
Eu, que sempre quis ser marinheiro, sentia-me a navegar num mar revolto de ramos de árvores, porque os pilotos, com perícia, voavam o mais baixo possível, para que não fossemos detectados ou atingidos por fogo inimigo. Estavam sempre a subir e a descer, pois as árvores eram uma mais alta que a outra. Se não fosse em guerra, até era divertido, pensava. Foi quando um barulho ensurdecedor se ouviu por cima de nós. Eram quatro aviões de combate, voando em parelhas e a grande velocidade.
Ficámos incrédulos, pois não sabíamos que também iam ser utilizados. Admirei o sincronismo de horários, porque os Fiat, levantaram de uma base distante.
Seguimo-los com o olhar. Ao longe, surgiram várias bolas de fogo e vimos enormes nuvens negras de fumo, saírem da mata. Depois chegou o som das explosões.
Ao aproximarem-se das nuvens de fumo, os helicópteros dividiram-se em dois grupos e procuraram clareiras na mata, para nos colocar. Normalmente ocorria nas machambas (hortas), onde os indígenas plantavam a mandioca, o seu principal alimento.
Os “Mosca” (designação do código radio que muitas vezes se atribuía aos helicópteros AL III), nunca tocavam no chão, ficavam a pairar em voo estacionário, e tínhamos que saltar depressa pois eles começavam logo a subir para se afastarem da zona. O meu grupo organizou-se rapidamente e iniciou o movimento para o assalto ao objectivo. Naquelas situações, corríamos pelos trilhos, sabíamos que o inimigo, não tinha tido tempo para os armadilhar.
Encontrámos muitas cubatas abandonadas à pressa, com pequenas fogueiras ainda acesas mas não tivemos resistência.
Eu, carregado com todo o equipamento e armamento, mais o rádio TR28, que pesava cerca de dez quilos, seguia para todo o lado o comandante de pelotão.
Começámos a ouvir rajadas contínuas das nossas AR-10 e a resposta de outras armas. Concluímos que o outro grupo, já tinha estabelecido contacto com o inimigo.
Aceleramos a marcha para tomar conta do ponto mais alto da zona. Num pequeno alto, enquanto o chefe estudava o mapa, eu um pouco atrás, deitado, apoiado na mochila, tentava recuperar o fôlego. Tinha a arma ao alto, encostada ao joelho encolhido. Comecei por ouvir um ruído, que me pareceu alguém a correr, subindo a encosta e vindo na nossa direcção. Segundos depois, comecei por ver a cabeça de um elemento inimigo a subir acelerado, dei um toque ao chefe, ele ficou quedo, não se podia mexer, pois tinha a arma por baixo do mapa. Com a arma apoiada no joelho, puxei a coronha para o ombro e fiz pontaria. Quando o homem estava a uns quinze metros de nós, encarou-nos, ia para reagir, mas não teve tempo. Não se ouviram outros barulhos, sinal de que vinha sozinho. Corremos ao cadáver, eu agarrei o homem pelos ombros e virei-o. Ao olhá-lo, senti-me a tremer. Quando procurávamos em todos os bolsos, documentos ou qualquer outra informação, vi o local de impacto do projéctil. Um pouco à esquerda do osso externo. Desfiz-lhe o coração e por isso morreu instantaneamente.
Depois de revistado, ficou onde morreu.
Reiniciámos o deslocamento com mil cuidados, pois, caso o guerrilheiro viesse acompanhado, os seus camaradas podiam estar emboscados, esperando por nós.
Não demorei muito tempo a sentir que algo de anormal se estava a passar comigo. Primeiro comecei a interrogar-me, como fora possível eu matar um homem que não conhecia e não me tinha feito mal nenhum. Nem a mim nem à minha família. Quis desculpar-me, pensando que estava em guerra e que, se não o matasse, matar-me-ia ele a mim. Fiquei melhor com a explicação conseguida, mas depois, lembrando-me do tiro e do sítio onde acertei, pensei que se me acontecesse o mesmo a mim, nem o Dr. Christian Barnard, que fizera a primeira operação ao coração dois ou três anos antes, me salvaria, caso estivesse ali para me operar de urgência.
O medo apoderou-se de mim, comecei a transpirar por todos os poros, sentia que ia levar um tiro a cada passo que dava, comecei a ficar com febre, as pernas começaram a tremer-me e não conseguia acompanhar o chefe. Ele, que ia à minha frente, não reparou, mas o camarada que seguia atrás de mim começou a ver que eu caminhava desordenadamente e que não seguia ao ritmo do pessoal. Fez o sinal com a boca imitando os sapos para que se fizesse um alto.
Fui assistido e medicado para a febre, distribuíram todo o meu equipamento e armamento pelos camaradas da minha secção. Acompanhei o enfermeiro sempre no meio do pelotão, depois deixei de saber o que se passava.
Umas vezes parecia-me ouvir tiros e gritos isolados, sentia que me puxavam para andar mais depressa, tinha sede, ardia em fogo e tremia de frio. Noutros momentos acalmava, ao receber frescura na testa e no peito. Sentia na boca e nos lábios, gotas de água ou algo húmido, voltava a esquecer-me de tudo e a perder a razão do tempo e do espaço.
Ouvia novamente os sons longínquos de tiros e sentia os puxões para que corresse e a sede sempre presente. Não sei o que fizeram, nem dei por passar dois dias e duas noites naquele estado.
Acordei. Notei que estava todo transpirado e o cheiro desagradável que exalava do meu corpo e roupa, depois vi o rosto do camarada que estava debruçado a olhar para mim, reconheci o enfermeiro. Vi que se estava a rir. Perguntou quem eu era e como me sentia, fui falando com ele. Foi quando ele disse: – Desta já escapaste! E voltou a rir-se.
O sargento comandante de secção veio junto de mim, perguntou como estava e se me sentia com forças para andar. Não me recordo da resposta, pois sentia-me confuso. Ajudaram-me a sentar, o enfermeiro deu-me uma lata de sumo ou de leite com chocolate, bebi com dificuldade, sentia fome mas não era capaz de engolir. Senti os intestinos às voltas, deviam estar vazios.
Levantei-me trémulo e desequilibrado, dei uns passos a medo, ganhei confiança e senti que era capaz. Voltei a sentar-me.
Comi fruta cristalizada da ração de combate, tinha muito açúcar, dava energia…
Nota do autor: Se existem histórias que nunca deveriam ser contadas. Estas, então, deviam abandonar de vez a nossa mente.
Nota explicativa do Operacional:
Aqui estamos longe dos considerandos de ordem política e estratégica que consomem – e ainda bem, note-se, são necessários – académicos e estudiosos, nacionais e estrangeiros, sobre a presença militar portuguesa em África. Esta é uma face da guerra, aquela que muitos viram olhos nos olhos, e que mais de 40 anos depois continua viva, por vezes demais, na sua memória.
É a guerra “com as botas no chão” na verdadeira acepção da expressão, a guerra da capacidade técnica individual muito aperfeiçoada nos mais baixos escalões da hierarquia, do espírito de sacrifício nas suas expressões mais dolorosas, da camaradagem, do heroísmo em combate, da dor dos ferimentos sofrido e causados, da sobrevivência e da morte. A dos amigos e a dos inimigos.
Não é fácil encontrar quem tenha experiência de combate real e ao mesmo tempo esteja disposto a escrever sobre os factos com esta sinceridade. Estamos agradecidos ao autor, esperamos com esta publicação dar o nosso contributo para a divulgação daquilo que foi a guerra sob o ponto de vista de quem fez.
As fotos que acompanham o texto, cedidas por amigos, ilustram situações de guerra reais das Tropas Pára-quedistas em África mas não têm outra ligação directa com estes relatos escritos.
Leia aqui o primeiro artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (I)
Leia aqui o segundo artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (II)
Leia aqui o terceiro artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (III)
Leia aqui o quarto artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (IV)
Leia aqui o quinto artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (V)
Leia aqui o sexto artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (VI)
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