A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (VI)
Por Miguel Machado • 2 Dez , 2015 • Categoria: 05. PORTUGAL EM GUERRA - SÉCULO XX Print… Seria Maio do ano de 1970 e eu estava no segundo mês da minha comissão militar em Angola.
Para que não existissem quebras de segurança, nunca sabíamos onde íamos atuar. A coluna foi formada por viaturas Unimog 404. Uma para cada secção, armada e equipada para o combate. Como não nos dirigimos para a Base Aérea nº 9, ficámos a saber que não seriamos colocados na zona de ação por meio aéreo.
Continuamos no itinerário rumo ao norte. Para mim, ainda Maçarico, tudo era novo e só fazia o que via fazer aos camaradas mais antigos e experientes. A mochila, abastecida com ração de combate para oito dias, seguia por baixo do banco, a arma ia ao alto, apoiada no chão da viatura e segura entre pernas.
Recordo como era bonito o alvorecer em Angola. Mesmo sentado incomodamente no banco de ripas da viatura militar, em movimento, embevecido e curioso, aspirava os odores emanados da terra húmida, tentando reter todas as imagens, que para mim, criado nas paisagens abertas da lezíria Ribatejana, me pareciam surreais.
Olhava para as silhuetas das enormes árvores recortadas no horizonte, as quais, por serem tão altas pareciam tocar na Lua, e pensava que nem as maiores árvores do alto da Belavista, na minha terra, onde as águias e as cegonhas fazem os ninhos, são tão altas.
O dia clareava muito cedo em Angola. Num ápice, desaparecia a escuridão noturna e a madrugada mostrava-nos uma palete de cores soberba e até então desconhecida.
As árvores não continham apenas os vários tons de verde. Durante o deslocamento, vislumbrei algumas com tons amarelos, castanhos e outras com tons avermelhados. Cheguei a pensar que percorria o País das fadas.
Ao fim de duas horas de deslocamento em velocidade moderada, o ritmo da coluna diminuiu, o caminho até aí de alcatrão, passou a ser em terra batida, estreito e com enormes buracos, onde as molas amortecedoras dos Unimog, aos solavancos, mostravam porque é que os mais velhos chamavam à viatura o burro do mato.
Chegámos a um quartel do Exército, com o nome de Balacende. Li numa tábua junto à porta de armas improvisada.
A coluna parou. Ordens para apear e deram quinze minutos para fazer as necessidades fisiológicas.
Os militares do Exército aproximaram-se a ver o aparato da nossa tropa, alguns encontraram amigos ou conhecidos das suas terras.
Reiniciámos o deslocamento, os condutores estavam instruídos para guardar as distâncias indicadas entre viaturas, pois a qualquer momento, podia rebentar uma emboscada e nunca devia nem podia, ficar mais que uma viatura na chamada “zona de morte”.
Como um menino num parque de diversões, continuava a descobrir e a admirar o relevo do terreno naquela zona de Angola. Matas densas, que não mostravam mais que as primeiras árvores, onde podiam estar camuflados e emboscados, grupos guerrilheiros. Seguidas de grandes morros sem florestação, com curvas apertadíssimas por entre penhascos e um sem fim de obstáculos a transpor.
Os meus camaradas mostravam-se mais tensos que eu, percebi que já tinham tido más experiências naquele caminho, por isso, deixei de apreciar a beleza natural e concentrei-me na resposta a dar, caso surgisse um qualquer incidente.
Durante a marcha, passámos por um novo acampamento militar, o Onzo, depois por várias fazendas (Roças) mas, só paramos em Nambuangongo. Era um aquartelamento militar de grande dimensão.
Recebemos ordens para apear e almoçar, foram feitos avisos sobre o lixo e que não nos podíamos ausentar, pois, logo que as viaturas estivessem reabastecidas de combustível, continuaríamos a viagem.
O meu pelotão ficou a almoçar, numa zona por detrás de uma igreja. Era um cemitério, muito limpo e bem cuidado. Ia para me sentar no muro baixo, quando um camarada gritou: – Oh Ramón, este era lá da tua zona. Desloquei-me para a campa indicada e, confirmei que ali, estava sepultado um soldado do Exército, natural de uma pequena freguesia do concelho limítrofe ao meu.
Foi sentado na pedra, aos pés da campa, que comi parte da minha ração de combate. No final, recordo que dei uma palmada na lápide e desejei que o camarada descansasse em paz.
As nossas viaturas foram chegando, depois de reabastecidas. Esperámos ordens de embarque.
A simples chegada de novas tropas ao aquartelamento, era motivo de romaria para os soldados do Exército, colocados há muitos meses naquele fim do mundo, mas lugar de passagem obrigatória para quem seguia para norte. Encontravam sempre alguém da sua zona e era uma alegria. Foram eles que informaram que devia ser uma grande operação, porque desde o dia anterior que passavam colunas militares…
…Quando terminei a minha comissão em África, empreguei-me numa fábrica de montagem de automóveis, a Ford Lusitana. Fui colocado na secção de soldadura a aprender um determinado serviço. O camarada que me estava a ensinar, um rapaz quatro ou cinco anos mais velho que eu, apresentou-se, falou da experiencia que possuía na fábrica e começou a construir as peças que eu iria aprender a fazer.
Explicava enquanto fazia o serviço, pois tinha que alimentar a contínua linha de montagem. Eu ia colaborando. Da parte da tarde, já era eu que construía a peça e em conversa, o homem perguntou-me em que província ultramarina tinha feito a comissão. Quando lhe disse que tinha vindo de Angola, recordei-me do almoço em Nambuangongo, sentado numa campa, e como ele me tinha dito de onde era natural, contei-lhe o episódio, porque o soldado sepultado era da sua terra e podia eventualmente conhecê-lo.
Concentrado, continuei a construção da peça, mas apercebi-me que algo estava mal, pois o homem estava a chorar. Perguntei-lhe o que se passava, ao que ele em pranto respondeu que era o seu irmão. Sabia-o, porque foi ele o único militar da terra falecido em África. Agarrado a mim, fez-me várias perguntas sobre a campa e o cemitério, depois, entre soluços, disse que ia contar aos pais, à cunhada viúva e ao sobrinho que não tinha conhecido o pai.
Foi um momento emocionante.
O homem foi recompor-se para a casa de banho, eu fiquei a pensar que na vida nada acontece por acaso, e que a guerra, não se passava apenas nas matas de Angola, nos planaltos de Moçambique ou nas bolanhas da Guiné. As famílias enlutadas, também a viviam na Metrópole.
E porque é que, em dez milhões de pessoas no nosso país, a primeira vez que falei da situação vivida em Nambuangongo, tinha que ser logo com o irmão. Dá que pensar!…
Nota explicativa:
Aqui estamos longe dos considerandos de ordem política e estratégica que consomem – e ainda bem, note-se, são necessários – académicos e estudiosos, nacionais e estrangeiros, sobre a presença militar portuguesa em África. Esta é uma face da guerra, aquela que muitos viram olhos nos olhos, e que mais de 40 anos depois continua viva, por vezes demais, na sua memória.
É a guerra “com as botas no chão” na verdadeira acepção da expressão, a guerra da capacidade técnica individual muito aperfeiçoada nos mais baixos escalões da hierarquia, do espírito de sacrifício nas suas expressões mais dolorosas, da camaradagem, do heroísmo em combate, da dor dos ferimentos sofrido e causados, da sobrevivência e da morte. A dos amigos e a dos inimigos.
Não é fácil encontrar quem tenha experiência de combate real e ao mesmo tempo esteja disposto a escrever sobre os factos com esta sinceridade. Estamos agradecidos ao autor, esperamos com esta publicação dar o nosso contributo para a divulgação daquilo que foi a guerra sob o ponto de vista de quem fez.
As fotos que acompanham o texto, cedidas por amigos, ilustram situações de guerra reais das Tropas Pára-quedistas em África mas não têm outra ligação directa com estes relatos escritos.
Leia aqui o primeiro artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (I)
Leia aqui o segundo artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (II)
Leia aqui o terceiro artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (III)
Leia aqui o quarto artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (IV)
Leia aqui o quinto artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (V)
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