A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (V)
Por Miguel Machado • 27 Nov , 2015 • Categoria: 05. PORTUGAL EM GUERRA - SÉCULO XX Print… Quando ouvimos os dois tiros ao longe, na nossa retaguarda, ficamos a saber, que os vestígios da nossa passagem na queimada tinham sido detectados pela sentinela móvel.
Aceleramos a marcha, mas quando chegamos ao acampamento inimigo, este já tinha sido abandonado. Contactado o oficial de operações, recebemos ordem para incendiar o acampamento e avançar para um novo ponto de coordenadas.
Os pelotões foram divididos em grupos de cinco homens, para embarcar nos helicópteros Alouette III da Força Aérea que nos viriam buscar e ser colocados em duas zonas distintas, nas quais se julgava poder ser passagem do inimigo. Emboscados, esperaríamos a chegada das aeronaves que nos deveriam lançar na caça do numeroso grupo que estava em marcha.
Com o bi-grupo – dois pelotões – instalado, uns cem metros no interior da mata, a minha equipa, recebeu a ordens para se deslocar até junto da chana (planície coberta por capim alto e pequenos arbustos, típica da região leste de Angola), com a missão de, quando avistássemos os helicópteros, lançar granadas de fumos e mostrar as telas coloridas para indicar as posições de aterragem.
Estávamos os cinco instalados em linha, virados para a zona limpa. A retaguarda era protegida pelos nossos. Ouvimos vozes, vindas da mata do outro lado da chana. Pouco depois, surgiu um grupo inimigo. Começaram a procurar algo no capim baixo. Avisei a minha equipa para nos mantermos quietos e não disparar, não queria ser denunciado. Mantínhamos os homens em mira de fogo e esperámos o que ia acontecer. Foi quando alguém do nosso grupo à retaguarda se deslocou e foi avistado. Não pelos pisteiros inimigos, que à nossa frente, procuravam o nosso rasto, pois pensavam que tínhamos atravessado a chana, mas por outros elementos inimigos que estavam estacionados no interior da mata. Nós os cinco, deitados no chão, cobertos apenas pela vegetação, sem nada a proteger-nos, ficamos no meio de dois fogos. Eram os nossos a disparar por cima de nós para o lado dos turras e estes metralhar a posição dos nossos grupos.
Limitamo-nos a esperar que a metralha terminasse, porque, se abríssemos fogo seriamos facilmente referenciados. Pensei em tudo. Lembrei-me do Batalha, que meses antes foi apanhado numa situação idêntica e ficou cacimbado, sendo transferido para o Quintas (hospital psiquiátrico em Luanda). Não sei quanto tempo demorou a refrega. Recordo o medo que senti, os ramos das árvores cortados a cair sobre nós e a areia a levantar com os impactos dos projécteis. Imóveis para não sermos referenciados ouvimos as ordens dos nossos sargentos à retaguarda, chamando os homens do morteiro e da bazuca. Depois vimos as nuvens de fumo e pó dos impactos das granadas na mata em frente, de onde disparava o grupo inimigo.
As armas de tiro tenso disparavam continuamente dos dois lados, e nós no meio do caos. Até que o inimigo fugiu em debandada e voltou o silêncio. Foi quando suou a voz: – Enfermeiro à frente! Ao mesmo tempo que uma secção da retaguarda se aproximou à nossa procura. Foi um alívio para eles quando nos viram pois julgavam que algo de mau nos tinha acontecido.
Neste pequeno grupo tivemos um ferido. O 1º cabo Peixeiro, do 2º pelotão, uma bala extraviada acertou-lhe numa perna junto à virilha, foi evacuado para o hospital.
Depois de algum tempo em voo rasante ao arvoredo, os hélis pairaram no ar, saltamos e corremos para o interior da mata. No início não nos apercebemos, mas conforme ocupávamos as posições para emboscar, começamos a ouvir/ver um grande número de abelhas. Tinham as colmeias nos buracos dos troncos ocos das árvores. Apertamos os camuflados, e com a rede mosquiteira em redor da cabeça, sentíamo-nos seguros. Eram abelhas de mel, poisavam em nós e, se estivéssemos quietos não nos faziam mal.
Imóveis e silenciosos, mantínhamos a emboscada, esperando o tal grupo. Foi quando começamos a ouvir um grande alvoroço no outro estremo do dispositivo.
A confusão estendeu-se rapidamente a todo o grupo. Apercebi-me que as abelhas aos milhares atacavam todos os que se mexiam. O pânico era generalizado. Estava ao lado do meu comandante de secção e, recordo-me de lhe dizer que tínhamos que fugir para terreno aberto. Foi o que mandaram fazer. Agarrei todo o material e corri com a minha equipa. Nunca tinha visto pára-quedistas a chorar com um ataque dos turras, mas naquele momento, os camaradas no sector mais atingido estavam em pânico, fugiam esbracejando sem saber para onde.
Os que não estavam picados começaram a organizar uma posição defensiva, enquanto outros socorriam os camaradas. Demorou algum tempo até conseguirmos ter todo o grupo junto.
O enfermeiro também estava preocupado, porque não tinha soro para todos os que tinham sido picados e já apresentavam inchaços. O comandante do grupo foi rápido a solicitar a evacuação urgente de todo o grupo, conhecia as consequências para alguém que fosse alérgico às ferradas de abelhas.
Já no quartel do Exército para onde fomos recuperados, soube que a revolta das abelhas aconteceu, quando um camarada foi dar à calça, os insectos procuraram a humidade da urina e ele tentou afugentá-las.
Para o meu grupo, a missão acabou dois dias mais cedo, mas recordo esta situação, como uma das mais confusas que vivi…
Nota explicativa:
Aqui estamos longe dos considerandos de ordem política e estratégica que consomem – e ainda bem, note-se, são necessários – académicos e estudiosos, nacionais e estrangeiros, sobre a presença militar portuguesa em África. Esta é uma face da guerra, aquela que muitos viram olhos nos olhos, e que mais de 40 anos depois continua viva, por vezes demais, na sua memória.
É a guerra “com as botas no chão” na verdadeira acepção da expressão, a guerra da capacidade técnica individual muito aperfeiçoada nos mais baixos escalões da hierarquia, do espírito de sacrifício nas suas expressões mais dolorosas, da camaradagem, do heroísmo em combate, da dor dos ferimentos sofrido e causados, da sobrevivência e da morte. A dos amigos e a dos inimigos.
Não é fácil encontrar quem tenha experiência de combate real e ao mesmo tempo esteja disposto a escrever sobre os factos com esta sinceridade. Estamos agradecidos ao autor, esperamos com esta publicação dar o nosso contributo para a divulgação daquilo que foi a guerra sob o ponto de vista de quem fez.
As fotos que acompanham o texto, cedidas por amigos, ilustram situações de guerra reais das Tropas Pára-quedistas em África mas não têm outra ligação directa com estes relatos escritos.
Leia aqui o primeiro artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (I)
Leia aqui o segundo artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (II)
Leia aqui o terceiro artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (III)
Leia aqui o quarto artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (IV)
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