A CRISE NA GUINÉ E A CAPACIDADE MILITAR NACIONAL
Por Miguel Machado • 2 Mar , 2009 • Categoria: 02. OPINIÃO Print
A actual crise na Guiné-Bissau trás à memória acontecimentos anteriores naquele e em outros países da Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa, que remetem para a capacidade nacional de intervir militarmente no estrangeiro em defesa dos nacionais portugueses que ali vivem e trabalham.
Aparentemente está tudo controlado, a vida decorre com maior ou menor dificuldade em alguns dos países da CPLP e um belo dia, estala a crise, matam-se altas patentes militares e mesmo o Presidente da República. Foi assim agora na Guiné-Bissau, por enquanto sem mais incidentes… A situação irá manter-se calma no país? Os portugueses que ali vivem e trabalham estão seguros? E em S. Tomé e Príncipe? Como está a evoluir a situação nas últimas semanas?
Estas e outras perguntas, embora possa não parecer no nosso dia-a-dia preocupados que estamos com a crise e as eleições que se avizinham, estão presentes em alguns “briefings” diários…
Como se avalia a necessidade de intervir? E se o poder político português decidir accionar os meios militares nacionais, quais são aqueles que estão disponíveis e em tempo útil, podem ser empenhados numa operação de urgência na Guiné-Bissau? E como se processa o planeamento?
Vamos tentar abordar estas questões, sem naturalmente as pretender esgotar, tendo por pano de fundo acontecimentos já relatados em livro – “Bissau em Chamas” dos Vice-Almirantes Reis Rodrigues e Silva Santos – e pelo conhecimento de situações anteriores, como a que teve lugar em Angola (e S. Tomé e Príncipe) em 1992 ou as operações de contingência já depois de 2000.
Ao contrário do que se possa pensar as Forças Armadas treinam frequentemente a possibilidade de intervir numa situação em que cidadãos portugueses possam estar em perigo algures num país africano em convulsão. Anualmente o exercício “Lusíada” não é mais do que isso. Trata-se da activação da Força de Reacção Imediata (FRI), uma força de reacção conjunta (dos três ramos das Forças Armadas), que sob a direcção do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas e o comando operacional de um dos ramos, treina uma intervenção deste tipo. Mas também é verdade que nem sempre as lições aprendidas em situações reais anteriores têm sido devidamente levadas em linha de conta. O exemplo mais gritante – e a última crise séria foi há 10 anos! – é a falta do Navio Polivalente Logístico que ninguém é capaz de dizer quando será uma realidade. Mais do que necessário não só para o transporte de tropas e equipamentos pesados como para o repatriamento de refugiados e até para servir de posto de comando de uma força expedicionária.
Então, em linhas gerais, o que se passa numa situação destas?
Regra geral as informações provenientes de várias fontes no terreno vão dando conta do agravamento da situação e, em Portugal tem-se essa noção, mesmo que isso, compreensivelmente, não possa ser divulgado. Mas, também já aconteceu, sermos completamente apanhados de surpresa e saber-se em Lisboa determinados acontecimentos depois de “rebentarem”.
No Centro de Operações Conjunto do EMGFA – que funciona no edifício do Restelo – são avaliados os dados que diariamente ali chegam dos comandos operacionais dos ramos (Comando Naval da Marinha, Comando Operacional do Exército e Comando Operacional da Forças Aérea) com os meios militares disponíveis: que fragatas, helicópteros, corvetas, reabastecedor e outros tem a Marinha disponíveis, ou seja, não estão empenhados em missões fora de Portugal ou dentro do país das quais não podem ser desviados, nem em trabalhos de manutenção e que forças de fuzileiros, incluindo do destacamento de acções especiais, e mergulhadores-sapadores estão prontos para avançar? E o Exército que unidades de intervenção rápida tem prontas para, numa questão de horas, embarcar, via aérea por exemplo, para a região? Pára-quedistas, comandos, e operações especiais. A Força Aérea inventaria os C-130 e P3 disponíveis, mas sobretudo quantas tripulações qualificadas para estes aviões, pessoal destinado à sua segurança da unidade de protecção da força e controladores aéreos e comunicações tácticas. Haverá necessidade de enviar helicópteros deste ramo?
Mesmo sem decisão política este planeamento tem de ser feito. “Tradicionalmente” as decisões do poder político são feitas o mais tarde possível, muitas vezes “a reboque” dos acontecimentos que vão sendo publicados na imprensa e o planeamento militar, para haver o máximo de garantias de sucesso possível, necessita de ser iniciado quanto antes.
E, muito importante, senão mesmo determinante, pode-se contar com o apoio da República de Cabo Verde? É que no continente africano muitos países não são propriamente adeptos de “abrir as portas” a operações militares estrangeiras, mesmo que com fins humanitários. Os aeroportos e os portos do arquipélago, nomeadamente o Sal e Mindelo, têm-se revelado ao longo dos anos, pontos de apoio imprescindíveis a estas operações.
Força de Reacção Imediata (FRI)
A FRI tem uma constituição “base” pensada para efectuar uma missão de curta duração, ou seja, cerca de uma semana, sem ser reabastecida. A sua organização para uma operação real será feita como não podia deixar de ser, caso a caso, tendo em vista a missão em concreto. Ainda assim os meios de cada ramo que a podem integrar estão definidos.
Avaliando os meios que os ramos disponibilizaram em operações de contingência anteriores, podemos dizer que serão estes os meios e forças que os três ramos disponibilizarão em caso de necessidade:
O comando da força no teatro de operações seria composto por um estado-maior com pessoal dos três ramos – a núcleo base está sempre nomeado, ou seja, hoje eles sabem quem são e as suas responsabilidades – e meios de comunicações estratégicas (comunicar com Portugal) e tácticas (comunicar na área das operações).
Da Marinha uma fragata da classe “Vasco da Gama” (agora se vê porque fazem falta mais fragatas e nesta altura como se sabe a “Bartolomeu Dias” ainda está na Holanda e as da classe “João Belo”, que foram empregues em operações anteriores, já estão no Uruguai), desejavelmente com dois helicópteros Lynx embarcados; uma corveta da classe “João Coutinho” ou “Baptista de Andrade”; o único navio reabastecedor, o “Bérrio”; uma companhia de fuzileiros; o destacamento de acções especiais; destacamento de mergulhadores sapadores. O submarino é um meio que pode ter utilidade neste tipo de operações, quer para desembarcar forças especiais quer para dissuasão perante navios “terceiros” que andem na região, mas actualmente – o “Tridente” ainda está na Alemanha a finalizar a construção – apenas temos um, o “Barracuda”, que não estará em condições de rumar à Guiné.
O Exército tem como opções o empenhamento de um comando de batalhão e todos os meios e pessoal que este órgão envolve, nomeadamente em termos de comunicações tácticas, uma companhia de atiradores que pode ser de pára-quedistas ou comandos, elementos de operações especiais, elementos de apoio de apoio de fogos (morteiros e armas anti-carro), destacamento sanitário.
A Força Aérea terá a seu cargo, prioritariamente, o transporte aéreo táctico e mesmo estratégico mas não só. Nesse sentido disponibiliza os C-130 possíveis, dificilmente mais do que 3, 1 P3, eventualmente helicópteros ALIII – que podem ser transportados desmontados – e ainda 2 parelhas de F-16 que, tendo recebido os “targeting pods” recentemente – testados no exercício “Real Thaw 2009” em Fevereiro – poderiam, pela primeira vez, dar algum apoio aéreo próximo a forças terrestres, e ainda as comunicações tácticas e estratégicas. Em colaboração com os pára-quedistas do Exército tem sido previsto a preparação para o lançamento em pára-quedas de cargas, o que pode ter como finalidade abastecer forças no terreno ou fornecer apoio humanitário.
Assim sendo e dando-se a circunstância de Portugal dispor actualmente de poucas forças terrestres no exterior – e nenhuma de reacção rápida – os efectivos necessários a uma operações deste tipo não seriam difíceis de obter em curto espaço de tempo e os meios disponíveis seriam…muito parecidos com os envolvidos há uma década. Infelizmente.
Questões delicadas
Apesar do que foi dito não se julgue que uma eventual operação de repatriamento de nacionais de uma Guiné-Bissau em convulsão seria fácil. Desde logo para além de apoio de algum país ou países na região seria necessário ou pelo menos muito, mas muito conveniente, contar no mínimo com a neutralidade senão o apoio das autoridades de Bissau. Mesmo que em termos teóricos Portugal tenha meios militares para “entrar em força” em Bissau, seria muito discutível a capacidade para a manter com oposição armada. Uma força desembarcada por mar na capital guineense ou colocada por aterragem ou mesmo salto em pára-quedas em Bissalanca, teria sérias dificuldades em levar a cabo uma operação de evacuação de não combatentes com os meios materiais actualmente disponíveis em Portugal. A falta de meios navais necessários para garantir o abastecimento quer de víveres quer de munições a uma tal força, seria um dos aspectos de difícil solução. Para se ter uma noção dos meios que tal operação envolveria pense-se na frota que os ingleses concentraram para o assalto às Falkland/Malvinas em 1982, ou a quantidade navios e meios aéreos (de asa fixa e rotativa) que em 2000 colocaram na costa ocidental de África para executar – com sucesso – a operação “Barras”, o resgate de seis militares seus capturados por rebeldes na Serra Leoa. Ou ainda, aqui bem perto em 2002, os meios que Espanha envolveu na operação “Romeu-Sierra”, o assalto a uma minúscula ilha no Mediterrâneo (junto a Marrocos), o penedo de Perejil, ocupada temporariamente por menos de uma dúzia de soldados marroquinos.
Outra questão com a qual é sempre difícil de lidar reporta-se à confidencialidade das operações e à liberdade de imprensa. Sendo os meios a envolver numa operação de grande envergadura, impossíveis de manter “encobertos”, e sabendo-se que havendo vidas de nacionais em perigo na Guiné, qualquer atitude agressiva por parte de Portugal pode agravar a sua situação, esta é uma questão crucial para levar a bom termo uma eventual operação. Nem sempre tal tem sido possível em contingências anteriores.
Ainda hoje (2 de Março) o primeiro-ministro numa comunicação televisiva anunciava ao país e aos portugueses na Guiné-Bissau que “…o governo acompanha com muito detalhe e muita proximidade a evolução da situação…“, ao mesmo tempo que se manifestava disponível para apoiar as autoridades políticas e militares de Bissau para se fazer respeitar a ordem constitucional no país.
Em Abril e Maio de 2005, por exemplo, no decurso de mais um período de instabilidade na Guiné-Bissau, notícias sucessivas na imprensa portuguesa davam conta de preparativos de meios navais para operações. Títulos como “Marinha preparada para intervir”, “Corveta parte amanhã”, “Militares lusos avisam a família”, “Fragatas portuguesas a caminho”, “Bérrio pode seguir para a Guiné-Bissau”, encheram os jornais, rádios e televisões, enquanto as fontes oficiais falavam de “…exercícios ao largo da Madeira sem qualquer ligação ao período de tensão na Guiné…”.
Sabendo-se como as noticias hoje em segundos chegam a todo o mundo e que quer o que se passa em Bissau é transmitido pelos correspondeste portugueses no terreno como o que se passa em Portugal chega no instante seguinte a Bissau, está bem de ver como é difícil lidar com esta questão. Noutros países, por exemplo no caso do resgate dos militares ingleses na Serra Leoa acima referido, foi possível ao Ministério da Defesa chegar a um acordo com os OCS para não haver, durante um certo período, noticias sobre o assunto. O mesmo se passou, mas não foi mantido muito tempo, com a presença do Príncipe Harry no Afeganistão. E em Portugal, seria possível? É um assunto que não reúne consenso a nível dos órgãos de comunicação social, logo muito dificilmente tal seria alcançável por cá.
Em conclusão, uma missão de evacuação de cidadãos portugueses em África é possível, já foi feita em 1992 e em 1998, mas algumas das limitações então verificadas mantêm-se. Manda o bom senso que sejam resolvidas quanto antes.
Miguel Machado é
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