«UMM RECON», O ÚLTIMO RUGIDO DO “COURNIL” MILITAR
Por Miguel Machado • 5 Ago , 2011 • Categoria: 07. TECNOLOGIA, EM DESTAQUE Print
Esta viatura de reconhecimento, um UMM “Cournil” transformado em Tomar no Regimento de Infantaria N.º 15, foi exemplar único. Destinou-se a tentar um aproveitamento operacional de alguns dos UMM “Alter II” existentes nos finais dos anos 90.
Necessidade sentida e campanha
Como tantas vezes acontece “na tropa” muitas ideias nascem nos baixos escalões e caminham depois para a concretização. Até unidades e muitos cursos têm nascido assim, em Portugal como no estrangeiro!
Corria o ano de 1997 e o então Alferes Pára-quedista em Regime de Contrato, João Veiga da Fonseca, hoje com 44 anos, estudante universitário e gerente de micro empresa que opera na área do treino de cães (Vipdog), regressava da missão na Bósnia-Herzegovina onde fora Comandante de um Pelotão de Atiradores: “Recordo-me perfeitamente de ter ficado chocado, na Bósnia em 96, da maneira como continuavam equipadas aquelas viaturas. Olhava-se para o interior e o chão estava atulhado de material, que andava “a chocalhar” ao sabor das curvas e das travagens. O operador da arma colectiva pisava o material… A culpa, note-se, não era das esquadras, mas sim do facto de terem que operar com uma viatura que não estava preparada para levar o material. E eis que em 1997 estava de volta ao Pelotão de Reconhecimento… e com o mesmo problema entre mãos“.
Veiga da Fonseca teve um percurso militar bem curioso, merece uma referência especial! Voluntário para as Tropas Pára-quedistas em 1988, fez a sua formação na Base Escola de Tropas Pára-quedistas onde foi depois instrutor de diversos cursos até 1990 e passou à disponibilidade. Em 1992 (ainda no tempo do CTP – Corpo de Tropas Pára-quedistas da Força Aérea) ofereceu-se para participar no exercício “Júpiter” como “Reservista”, modalidade que o CTP manteve a funcionar até à sua extinção. Nesse ano foi publicada uma lei que possibilitava o reingresso nas fileiras de militares na disponibilidade, Veiga da Fonseca ofereceu-se mas levou com um “balde de água fria, o CTP não se mostrou interessado“. Não desistiu e ofereceu-se para o Exército tendo sido colocado no Regimento de Comandos: “A ideia era ir fazer o Curso de Comandos do Quadro Permanente (os que já eram Oficiais ou Sargentos Milicianos seguiam essa via), numa altura onde já se sabia que os Comandos iam ser extintos, e que esse seria o último curso. No final das provas ficamos apurados apenas 4, para um curso que demorava 3 meses e que envolvia cerca de 50 instrutores. Claro que o curso não se realizou…“. Assim foi colocado na Companhia de Manutenção do Regimento e …ofereceu-se para as agora denominadas Tropas Aerotransportadas! Fez a “reciclagem” em Dezembro de 1993 – instrução de pára-quedismo dada em Tancos e obrigatória para quem vinha do Exército e tinha cursos e pára-quedismo feitos no estrangeiro – e em 1 de Janeiro de 1994 é transferido para o 1.º Batalhão de Infantaria Aerotransportado que ficou colocado em Tancos (ex-Base Aérea 3). Em 1995 comanda o Pelotão de Reconhecimento deste batalhão e, depois da Bósnia em 1996, ainda fez uma outra missão neste teatro de operações como adjunto do oficial de Assuntos Civis e outra em Timor, onde foi Comandante do Pelotão de Reconhecimento do Batalhão (integrado na 13.ª Companhia de Pára-quedistas)/Força de Intervenção Rápida do Sector Central da ONU em Timor. Passou à disponibilidade em 2003 com mais de 11 anos de serviço quando era Comandante da Companhia de Apoio de Combate do 1.º Batalhão de Infantaria Pára-quedistas em Tomar.
Não sendo original a transformação pelos utilizadores militares de viaturas para as adequar às necessidades surgidas em campanha, este é mais um caso, “made in Portugal“, que não teve continuidade mas que julgamos ter interesse apresentar aqui no “Operacional”. Porque mostra que é possível fazer algo de inovador quando se tem vontade e algum apoio e porque, quem sabe, volte a inspirar quem sente hoje o mesmo que sentiram na altura os “construtores” do UMM RECON e novos projectos surjam.
O UMM nas Tropas Pára-quedistas
No rescaldo do regresso a Portugal europeu dos contingentes militares que haviam travado a nossa última guerra em África e das vicissitudes do processo revolucionário de 1975, as Forças de Segurança e as Forças Armadas Portuguesas necessitavam de renovar a sua frota de viaturas administrativas para uso geral e também em grande medida as viaturas tácticas 4X4. A situação nos diferentes ramos, diferentes eram, mas algumas semelhanças tinham. Entre outras (como hoje e quase sempre ao longo da história), uma grande diversidade de marcas e modelos em uso e muitas a gasolina, combustível que estava (já então!) cada vez mais caro.
Assim, a Guarda Nacional Republicana, o Exército e o Corpo de Tropas Pára-quedistas da Força Aérea entre outros departamentos oficiais, viram na viatura proposta pela União Metalo-Mecânica, UMM “Cournil”, por motivos que agora não iremos aprofundar, mas entre os quais naturalmente se destacavam o baixo preço e o facto de serem construídos em Portugal, um boa oportunidade para renovar várias frotas.
Como bem sabe quem anda ou andou fardado, as aquisições de viaturas militares nem sempre correspondem exactamente às necessidades dos utilizadores. Em muitos casos isso nem se deve a nada de especial mas apenas para se conseguirem adquirir mais viaturas por um determinado preço, ainda que estas sejam mais “simples” do que seria desejável. Ou seja, em vez de pouco e bom, cada viatura com extras específicos, desenhada “à medida do destinatário”, as unidades operacionais acabam por receber viaturas “tácticas” iguais às viaturas “administrativas”. Nem sempre isso aconteceu mas aconteceu muito e a cor verde ou o padrão camuflado com que se pintam as viaturas militares, só por si, não faz uma viatura táctica. Infelizmente! E não se pense que isto é/foi exclusivo nacional. Por esse mundo civilizado muito disto foi visto, embora, cá como lá, estas últimas missões do Iraque e do Afeganistão e o tipo guerra que originaram, ano após ano, e as baixas causada nas “forças de paz”, levaram a alterações profundas. Entre nós – apesar do adiamento que se verifica no respectivo Programa da actual Lei de Programação Militar, ciclicamente preterido por outros menos úteis – também aconteceram muitas melhorias neste campo, ainda que não atingíssemos o desejável e comparável com os aliados envolvidos nas mesmas operações.
Os pára-quedistas haviam recebido a partir da sua compra em 1980, mais de 150 UMM “Cournil” que foram distribuídos não só para funções administrativas, mas sobretudo operacionais nas unidades da então existente Brigada de Pára-quedistas Ligeira (BRIPARAS) do Corpo de Tropas Pára-quedistas da Força Aérea. Dada a tremenda falta de viaturas tácticas que então a BRIPARAS sofria, a chegada dos “Cournil” foi uma lufada de ar fresco! Claro que a viatura era muito básica, e estamos a falar das primeiras que foram desde logo testadas em condições bem duras nos exercícios que a BRIPARAS fazia por todo o país, nomeadamente os da série “Júpiter”. Mas algumas modificações foram sendo sugeridas ao fabricante e…teve que servir. Mais tarde os pára-quedistas também receberam os UMM “Alter II” (um luxo!), mas em menor quantidade e os UMM “Cournil” continuaram em uso. Alguns foram equipados com armamento (Browning 12,7mm, LGA Mk19, MG 42/54, míssil Milan, reboque de transporte de morteiro 81mm), outros adaptados para auto-macas, outros ainda transformados em ambulâncias e um ou outro dotado de capota metálica para utilização administrativa.
Entretanto as Tropas Pára-quedistas foram transferidas da Força Aérea para o Exército em 1 de Janeiro de 1994 e bem assim como todo o seu pessoal, material, armamento e infra-estruturas. Por seu lado algum, pouco, pessoal, material e armamento do Exército passou a ser usado nas unidades pára-quedistas. Em termos de viaturas o lote mais significativo terá sido proveniente do Regimento de Comandos, o qual incluía alguns UMM “Cournil”, bem usados.
Em 1996 surge a missão na Bósnia-Herzegovina e o 2.º Batalhão de Infantaria Aerotransportado que a iria cumprir já não leva os seus UMM “Cournil”. Considerou-se (e bem!) que não estavam em condições operacionais e assim alguns UMM “Alter II” lá rumaram aos Balcãs. Cumpriram com brio, não havendo outros, eram os melhores! Na realidade, embora sem qualquer protecção balística e com condições de habitabilidade muito espartanas – ali operava-se meses seguidos com temperaturas negativas – o Alter acabou por ter um desempenho em estrada e em todo-o-terreno, com e sem neve, muito razoável, sendo as dimensões uma das suas principais mais-valias em muitas missões dentro e fora de povoações.
UMM RECON
A «PROPOSTA DE ALTERAÇÃO DE VIATURAS LIGEIRAS DOS PEL REC DOS BIAT» elaborada pelo Tenente RC Pára-quedista João Veiga da Fonseca, Comandante do Pelotão de Reconhecimento da Companhia de Apoio de Combate do 1.º Batalhão de Infantaria Pára-quedista, é um documento muito interessante e que nos serve de guia para este texto que se segue. Os anos de experiência “no terreno”, a curiosidade pelo que de melhor se ia fazendo no estrangeiro, alguma irrequietude, o apoio do escalão superior e um conjunto de militares com capacidades várias, fizeram o UMM RECON (nome que não era o usado na época como se verá, a proposta apontava para designações adaptadas à doutrina em vigor no Exercito).
A ideia era fazer-se um teste transformando um dos “Cournil” (que seriam abatidos em breve), e retirar as lições necessárias para fazer uma proposta idêntica vocacionada para o UMM “Alter II”.
“Ficam-nos na memória imagens de pelotões de reconhecimento em missão na Bósnia, a digladiarem-se diariamente com a falta de espaço; a falta de apoios e pontos de fixação de material que resultavam numa caixa “atulhada” com material solto e empilhado, de difícil acesso e sujeito a um desgaste superior ao que seria normal; a falta de equipamento que seria de todo razoável existir na palamenta de um veículo com características adaptadas a essa missão, o que resultava em paragens de funcionamento absolutamente desnecessárias“. Lê-se na introdução justificativa para depois se afirmar que “é necessário observar as características tácticas que a viatura deve possuir de maneira a servir a sua equipagem, analisar detalhadamente o equipamento a transportar em cada missão, a especificidade de equipamento de cada uma das esquadras. Tudo isto considerado, estaremos pois prontos para executar o seu respectivo plano de carregamento“.
A abordagem do problema foi feita do modo mais prático possível! “Coloquei o desafio ao pelotão da seguinte maneira: reunimos, ao lado de uma viatura, todo o material e munições de uma esquadra, colectivo e individual. Para se ter uma ideia, no chão e ao lado da viatura ocupava uma área quase igual à da própria viatura. E disse, simplesmente, que queria e esperava ideias e soluções “brilhantes” para resolver o “imbróglio” que era arrumar tudo aquilo. Tudo deveria ser devidamente acondicionado na viatura, preso à mesma com suportes, cintas ou o que se considerasse mais adequado, prático de utilizar e respeitando as regras básicas da ergonomia e, claro de segurança. Como a viatura não era blindada, previligiar-se-ia a capacidade de observação a 360º, e a capacidade de rápida entrada e saída na viatura, maximizando a possibilidade de resposta ao fogo e a sobrevivência da tripulação.
Havia necessidade de aumentar a autonomia (com suportes suplementares de jerricans de 20Lt, e transportar um 2º pneu sobresselente (para evitar deslocamentos à retaguarda para manutenção/reparação). Entre tantos outros pormenores…
No pelotão tinha um serralheiro mecânico e um pintor profissional de automóveis, o que ajudou bastante na execução, já que deram formação a outros elementos do Pelotão que integraram nas suas equipas de trabalho específicas dentro do projecto.
Saliento que quer o estudo dos problemas, quer o desenvolvimento prático das soluções para os mesmos, foram fruto do empenho e colaboração de todos, do mais antigo ao mais moderno“, diz-nos Veiga da Fonseca.
O trabalho demorou 3 meses durante os quais a viatura foi configurada de uma série de maneiras diferentes, estudaram várias alternativas, e tiveram em consideração factores como a não alteração de ângulos de ataque e saída, deslocamento do centro de gravidade da viatura, aerotranportabilidade por aeronaves de asa fixa e móvel, assinaturas térmicas e de ruído, facilidade de utilização da viatura como plataforma de armas e de transporte, e características ergonómicas de utilização.
A proposta apontava para a criação de duas “novas” viaturas (aqui com a designação oficial): “Viatura Tactica Ligeira Porta Met Pes UMM Alter” e a “Viatura Táctica Ligeira Porta LGA UMM Alter”
Se aceite a proposta e o “modelo” (recorda-se que foi usado um UMM “Cournil”), caberia à Direcção de Serviços de Material, orientar a “produção em série”! Haveria ainda, se aceite o modelo, mais duas fases intermédias, nomeadamente a confrontação deste protótipo com as opiniões dos técnicos do Gabinete de Estudos Serviço de Material, da Companhia de Reabastecimento Aéreo e da Logística do Comando das Tropas Aerotransportadas e, depois, uma bateria de testes tácticos e relativos aos aerotransporte e ao lançamento em pára-quedas.
As características propostas eram (resumidamente apresentadas aqui por questões de espaço, a proposta é muito mais desenvolvida e justificativa!) para uma viatura táctica ligeira de um Pelotão de Reconhecimento Aerotransportado, independentemente de ser uma viatura porta Metralhadora Pesada ou uma viatura porta Lança Granadas Automático.
– Autonomia de combustível (aumentar o nº de jerry-cans transportados);
– Autonomia de intervenção imediata de manutenção exterior (a palamenta da viatura deve possuir o equipamento mínimo indispensável para evitar ou resolver os problemas mais frequentemente encontrados);
– Baixa assinatura de ruído (isolamento do compartimento do motor);
– Cabine aberta (garantir uma perfeita visão dos sectores de vigilância e para estabelecer uma comunicação pronta com os elementos que vão na caixa);
– Caixa aberta (uma exigência derivada da existência da arma pesada e da necessidade de garantir uma perfeita visão para os sectores de vigilância);
– Capacidade de fixação do equipamento orgânico (é imperativo que o material vá bem arrumado e acondicionado);
– Capacidade de fogo a 360º (trocar os suportes em uso);
– Capacidade de funcionar com o pára-brisas rebatido (não sendo o pára-brisas em vidro à prova de bala, deverá a viatura poder ser conduzida em todas as situações tácticas com o pára-brisas recolhido);
– Capacidade de ocultação de emergência (lançadores de potes de fumos);
– Capacidade de transporte do equipamento orgânico (A viatura deve, sem reboque, poder transportar o equipamento orgânico de uma esquadra);
– Dispositivos de segurança (roll bar, quebra fios, afasta ramos, protecção da barra de direcção e protecções para as ópticas);
– Ergonomia (o equipamento deve estar disposto de maneira a que permita uma fácil utilização e monitorização);
– Estabilidade de tiro com a arma montada em cima da viatura ( endurecer o sistema de suspensão da viatura);
– Facilidade de entrada e saída na viatura (existência de apoios para melhorar o acesso, ou por exemplo, a inexistência de portas na cabine);
– Iluminação (conjunto de luzes tácticas como faróis de infravermelhos, olhos de gato, e luz de blackout);
– Peso (reduzir ao máximo o peso, retirando-se todos os componentes não absolutamente necessários);
– Possibilidade de troca de armamento (o suporte para as armas só com a troca do berço, deveria servir para as duas viaturas);
O último rugido!
A viatura foi inteiramente reformulada no Pelotão de Reconhecimento pelos seus militares. O Regimento de Infantaria N.º 15 apoiou no que podia e algumas ferramentas chegaram a ser compradas pessoalmente pelo Comandante de Pelotão para os trabalhos não pararem. A viatura agradou a quem com ela contactava, militares da unidade e visitantes, militares e civis, alguns de altíssimas responsabilidades, mas o facto é que não houve condições para a proposta ser levada à prática.
Como já temos afirmado nestas páginas, e em concreto para as missões exteriores a regra (que tem raras excepções) é só se comprar material quando ele já fez falta, nunca antes disso! Por estes anos do projecto UMM RECON a situação na Bósnia já estava mais calma (os “Alter II” e depois os “Nissan Patrol” serviam), no Kosovo em 1999, menos calmo inicialmente, talvez porque as M11 “Panhard” se juntaram à força, não pareceram necessárias, além dos “Nissan Patrol”, outras viaturas ligeiras, e para Timor em 2000 aos “Alter II” juntaram-se os “HMMWV”. Depois veio o Afeganistão, mas isso já é outro assunto.
Quer ver um UMM “Cournil” pronto para lançamento em pára-quedas? Veja este post no blog “Rodas de Viriato”: UMM Cournil “LAPES”
Miguel Machado é
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