OPERAÇÃO “NÃO OS ESQUECEMOS!”
Por Miguel Machado • 22 Jan , 2012 • Categoria: 03. REPORTAGEM PrintFoi concluída no passado dia 12 de Janeiro de 2012, a chamada operação “Não os esquecemos!”. Cinco anos depois de militares portugueses terem retirado uma placa com o nome dos seus camaradas mortos na Bósnia do monumento ali existente, a sua memória volta a estar assinalada no mesmo local.
Tratou-se de uma iniciativa de um pequeníssimo grupo de antigos militares pára-quedistas, que decidiram voltar a colocar o nome dos 5 militares portugueses mortos na Bósnia-Herzegovina entre 1996 e 2004, no monumento existente em Doboj. Foi um processo demorado, com algumas peripécias e enganos, mas também tomadas de posição decentes. É uma história que merece ser contada.
Os militares portugueses nunca esqueceram os camaradas mortos
Alcino José Lázaro Mouta, Rui Manuel Reis Tavares, Francisco José da Ressurreição Barradas, Ricardo Manuel Borges Souto e Ricardo Manuel Pombo Valério, morreram na Bósnia em acções decorrentes da sua condição de militares expedicionários nos contingentes portugueses que ali ajudaram a restabelecer a paz.
Nos diversos batalhões que passaram pela Bósnia sempre a sua memória foi lembrada, inscrevendo o seu nome em lápides que foram acompanhando as unidades consoante os quartéis mudavam de localização. Durante anos não houve dia importante, visita de alta entidade, ou “simples” missa dominical em que a sua memória não fosse evocada. Por todos, visitantes e militares em missão.
Os primeiros dois mortos em Sarajevo (24JAN1996), ocorrido quando a força ainda se estava a instalar, pondo à prova os pára-quedistas no terreno e a determinação dos políticos em Lisboa, foram desde sempre lembrados pelos camaradas. O seu nome foi dado a locais de convívio em “Tito Barraks” (um dos quartéis portugueses em Sarajevo), mas não só. Na escola onde morreram foi o Exército italiano (e a comunidade local, bósnia) que os homenageou numa placa colocada no local exacto do acidente que também havia vitimado um italiano. Mais tarde a Escola recebeu com grande dignidade a madrinha que havia criado o Alcino Mouta, a qual, emocionada, visitou o local a seu pedido. Perto de Visegrado no local do acidente com uma viatura blindada que matou dois militares (em 06OU1996), os pára-quedistas colocaram uma lápide que regularmente recebia uma Guarda de Honra e era limpa para manter viva a memória destes camaradas mortos. O contingente italiano do qual dependiam os portugueses, inscreveu em 1997 os nomes dos 4 portugueses falecidos (e de dois italianos) num monumento que erigiu em Zetra (Sarajevo).
As unidades nacionais que iam passando pela Bósnia, sem qualquer distinção de cores de boinas ou clubismos, honraram sempre as melhores tradições militares e mantiveram esta memória viva. No Visoko onde os portugueses se instalaram depois de Sarajevo – Rogatica – Gorzade, uma placa com os nomes dos primeiros 4 militares mortos na Bósnia estava na parada da unidade, bem ao lado da Bandeira Nacional: dia e noite, verão e inverno, olhava para as formaturas, prevenções, emergências, festas, cerimónias, acompanhava a vida das unidades que se revezavam a cada 6 meses. E quem chegava certamente os olhava com um misto de respeito, curiosidade pelo sucedido e, porque não, aviso que “estas coisas acontecem”.
Monumento no quartel de Doboj
Transferido o batalhão português para Doboj, a placa foi também com a unidade. Novo batalhão rendeu a força que fizera a mudança e tratou – como é típico nas missões, quem chega tenta melhorar o que encontra – de dar nova dignidade à memória dos mortos portugueses na Bósnia. Foi construído com meios do 1.º Batalhão de Infantaria Pára-quedista, nas suas oficinas um significativo monumento: a base em mármore inspirada numa pedra tumular; ao alto a porta de um avião C-130 em metal, à escala, com a Cruz de Cristo num pedaço de fuselagem, pendentes pela parte superior esquerda da porta, as tiras extractoras com o lema da “casa-mãe” dos pára-quedistas, “QUE NUNCA POR VENCIDOS SE CONHEÇAM”; sob o túmulo virada para a porta, para o espaço, a pedra e placa com os nomes trazidos do Visoko. O monumento foi colocado junto à capela da unidade, também ela em grande parte trazida do Visoko, e ladeado por dois ciprestes. Sendo todos os militares mortos na Bósnia, até àquela data, pára-quedistas, homenagem mais carregada de simbolismo seria difícil. O monumento – os mortos ao serviço da paz, olhando a porta que tantas vezes tinham transposto e cujo pára-quedas se tinha aberto pela acção das tiras extractoras com o lema da Escola – foi inaugurado em 23 de Maio de 2003, exactamente no dia da unidade de Tancos. Mesmo percebendo que poderia ser difícil a quem não foi pára-quedista avaliar bem este simbolismo da porta do avião, pela qual todos, do general ao soldado, sem qualquer distinção, saltam e correm os mesmos riscos, a verdade é que o monumento rapidamente se transformou no novo ex-líbris da unidade.
A realidade veio mostrar que pára-quedistas ou não-pára-quedistas todos aceitaram o monumento como seu. E assim era!
Mais uma vez, da simples visita de cortesia à do ministro da tutela, todos os que chegavam a Doboj, homenageavam os que perderam a vida ao serviço da Pátria, junto ao monumento, que entretanto mudou de localização dentro do quartel. Foi aqui, na unidade, que em Julho de 2004 faleceu o Soldado Pára-quedista Valério, a dias de regressar a casa no fim da missão.
Adulteração da finalidade do monumento
Em 2007 o impensável aconteceu! O último batalhão que serviu na Bósnia recebeu ordem para assinalar com um memorial a colocar na cidade de Doboj (a escassos quilómetros do quartel), a presença do Exército Português naquelas paragens. Justíssimo e de louvar a iniciativa e a aceitação das autoridades locais.
Queremos acreditar que apenas por desconhecimento da sua história ou pelas contingências próprias destes momentos de retracção, decidiu-se modificar o monumento existente. Foi retirada a placa com o nome dos mortos – onde está hoje ninguém parece saber (*)- apagado o lema dos pára-quedistas e inscrito o lema do Exército (Em Perigos e Guerras Esforçados), desmontada toda a estrutura – fácil porque o batalhão que o concebeu, adivinhando que estes quartéis são sempre transitórios o construiu desmontável – e colocado na cidade de Doboj, em lugar com dignidade, junto à Câmara Municipal.
“Inaugurado” com cerimónia pública em 24 de Fevereiro de 2007, na presença do então Secretário de Estado da Defesa Nacional, João Mira Gomes, o 1.º Batalhão de Infantaria da Brigada de Intervenção, sob o comando do Tenente-Coronel Joaquim do Cabo Sabino, presta homenagem aos mortos no decurso do evento, mas os seus nomes, esses, já haviam sido retirados do monumento por esta mesma unidade.
Um arrepio de indignação que só a disciplina cala gelou os militares que iam tomando conhecimento deste facto. Muitos militares portugueses, pára-quedistas ou não, ficaram chocados perante este “apagar” da história em nome de um qualquer interesse insondável ou simples desleixo.
O assunto aparece no Facebook e na imprensa!
Mas nada aconteceu até que em Junho 2010, um ex-pára-quedista, Miguel Miranda, coloca uma foto do monumento adulterado na sua página no Facebook e de seguida cria mesmo um Grupo, “Que Nunca Por Vencidos se Conheçam” para denunciar o facto. Quase de imediato mais de 1.000 pessoas manifestam a sua indignação “online”.
Mas o facto é que nada muda. Tomo então a iniciativa de iniciar uma investigação sobre o sucedido, que também me era completamente desconhecido até então. Telefono ou encontro-me com os militares ligados à construção do monumento, percebo a sua génese mas não consigo apurar quem determinou ao último batalhão que serviu em Doboj que executasse as modificações verificadas. Ninguém o sabe ou quem possa saber não diz.
Sócio que sou da Liga dos Combatentes, entidade que tem a responsabilidade de zelar pela memória dos militares caídos nos teatros de operações exteriores e nesse sentido tem desempenhado um papel de relevo de França a Moçambique, passando pela Guiné e Cabo Verde, decido informar esta associação patriótica. Faço-o escrevendo a história do sucedido na revista “Combatente”.
Na sequência deste artigo um jornalista, Manuel Carlos Freire, do “Diário de Noticias”, pega no assunto e escreve dois artigos sobre o tema, em 8 e 11 de Outubro de 2010. Também ele não consegue averiguar o que aconteceu à placa ou quem deu a ordem de modificação do monumento, mas o assunto ganha alguma relevância pública. O Ministro da Defesa Nacional de então, Augusto Santos Silva é confrontado por um jornalista sobre o assunto em Alter do Chão no decurso de um exercício – o “Orion” – e desvaloriza-o referindo (citado pela agência Lusa) que “…Na Bósnia há monumentos que homenageiam militares portugueses que lá prestaram serviço e que lá prestam serviço, esse é que é o ponto importante… …O ponto importante é que, através dos meios de que os povos civilizados dispõem, um dos quais é justamente a memória e a celebração da memória, nós homenageamos em cada momento aqueles que dão o seu melhor em favor dos interesses nacionais… …Esse é que é o ponto, o resto são pormenores…“. Por seu lado em declarações ao “Diário de Noticias”, também transcritas pela Lusa, o Tenente-General Chitto Rodrigues, presidente da Liga dos Combatentes, manifesta opinião contrária ao ministro, achando que ” …o monumento deveria preservar o seu lado de homenagem aos militares mortos…“.
Em 19 de Outubro de 2010 em reunião havida na Direcção Central da Liga dos Combatentes – para a qual havia sido convocado em Setembro de 2010 depois da publicação do artigo no “Combatente” e tendo por base uma proposta escrita que elaborei com várias alternativas de resolução do assunto – chega-se a um consenso que deveria ser colocada em Doboj uma placa com a identificação dos militares falecidos, adaptando-a ao monumento existente sem alterar mais nada. Reconheceu-se na altura (e eu também) que outra qualquer intervenção no monumento seria de difícil concretização. Assim o monumento manteria a finalidade de assinalar a presença portuguesa na Bósnia e voltaria a lembrar os militares ali falecidos. Tudo parecia bem encaminhado.
Depois desta reunião, houve mais um ou dois contactos com a Liga nos meses seguintes mas nada avançou. Desconheço até hoje os motivos.
Vamos avançar sózinhos: operação “Não os Esquecemos!”
Nasce assim num pequeno grupo de antigos pára-quedistas que serviram na Bósnia em 1996 a convicção que só eles próprios poderão alterar este estado de coisas. Embora em “conversa de café” todos concordem que se devia fazer alguma coisa, nenhuma instituição ou associação está disposta a avançar.
Sabendo que o actual Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, General Piloto Aviador Luís Araújo havia ficado muito sensibilizado, em 2008, com a missão que a União Portuguesa de Pára-quedistas liderou na Guiné para recuperar os corpos de 3 pára-quedistas ali enterrados desde 1974, e na qualidade de Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, deu todo o apoio à iniciativa – e dignidade aos funerais, por exemplo – tentei um último contacto institucional. Escrevi ao CEMGFA, em Outubro de 2010, abordando o sucedido com este assunto e colocando a questão da autorização militar para proceder à colocação de uma placa.
Não sendo uma missão dispendiosa – “cêntimos” quando comparada com outras bem mais complexas levadas a cabo nesta área da salvaguarda da memória – os tempos não estão para brincadeiras e, tento, enquanto aguardo uma resposta oficial, obter suporte financeiro para algumas eventuais despesas gerais. Sem este suporte seria muito difícil de avançar. De imediato recebo apoio do António Amaro, ex-sargento pára-quedista, actualmente empresário, também indignado com a situação, o qual se junta à agora designada Comissão Organizadora da operação «Não os Esquecemos!», que assim começa a germinar.
Havia vontade, agora há também os recursos.
Em conversa anterior com José Barbosa, antigo comandante do Destacamento de Apoio de Serviços em Sarajevo no início de 1996, sabia do interesse de Aquilino Oliveira, um dos feridos no fatídico acidente de 24 de Janeiro de 1996, em voltar ao local. Em 2004 chegou inclusive a escrever ao Ministro da Defesa, Paulo Portas, com essa intenção, mas sem sucesso. Telefono-lhe, coloco-o ao corrente e de imediato manifesta o seu interesse em participar.
Tomamos a decisão de avançar sem qualquer apoio oficial, o Aquilino faz aliás “ponto de honra” em pagar a sua própria viagem, outras despesas são repartidas, cabendo o principal esforço ao António Amaro. A operação começa a ser planeada em detalhe.
Quer por questões logísticas quer operacionais, uma “equipa de 4” pareceu-nos o ideal para cumprir a missão. Dos alojamentos às deslocações, tudo ficava simplificado com um número mínimo de pessoas envolvidas. Como nos tempos que correm “o que não é noticiado não aconteceu”, lembramo-nos do jornalista (o único) que havia abordado este assunto para o grande público. Foi convidado e aceitou.
Tínhamos dois objectivos:
Visitar o local do acidente de 24 de Janeiro de 1996, em Sarajevo;
Colocar uma placa com o nome dos “militares portugueses caídos na Bósnia-Herzegovina” em Doboj.
Estando a preparação da operação a decorrer calmamente, em 3 de Janeiro de 2012, tudo se precipitou (e ainda bem!). Sou informado telefonicamente da concordância do CEMGFA e do Chefe do Estado-Maior do Exército, General Pina Monteiro, com a colocação de uma placa da nossa responsabilidade no monumento em Doboj. Para quem como nós sempre lutou para que a homenagem fosse um acto oficial e não uma mera acção voluntarista de um grupo de antigos militares, o reconhecimento das Forças Armadas e do Exército pelo sacrifício dos seus militares foi quanto nos bastou adaptar o planeamento a esta nova realidade. E não foi para nós pouco! A missão na Bósnia ía chegar ao fim, o último dia em que haveria (dois) militares portugueses em Doboj seria 12JAN12. Ou seja, tivemos que antecipar a missão mais de 10 dias, o que nos causou um aumento significativo das despesas com viagens e estivemos em risco de não conseguir a placa em tempo. Tudo teve que ser reformulado mas tudo se conseguiu e a missão foi cumprida na sua totalidade. Não podia ter corrido melhor!
Em 11 de Janeiro viajamos para Sarajevo e na tarde desse mesmo dia cumprimos com profunda emoção o primeiro objectivo da visita na Escola em Zetra;
Em 12 rumamos a Doboj onde com o apoio do Tenente-Coronel Francisco Martins, do Sargento-Chefe Paulo Gonçalves e de operários bósnios, se procedeu à colocação da placa “Aos Militares Portugueses Caídos na Bósnia-Herzegovina”. Realizou-se uma cerimónia simples mas digna e sentida. Foi colocada uma coroa de flores no monumento e guardado um minuto de silêncio pela memória dos falecidos.
Cinco anos demorou a repor a dignidade perdida naquele monumento. Mas foi reposta! Por nossa iniciativa é certo, com o nosso esforço e dinheiro, mas com a presença e apoio de militares portugueses em missão na Bósnia.
Do mesmo modo que em Sarajevo, como disse o Aquilino Oliveira, ele sentiu no dia 11 de Janeiro de 2012, que se fechou um ciclo iniciado 16 anos antes, que recuperou alguma paz interior mesmo que os estilhaços no corpo mantenham presente a dor física que o atormenta, também ali em Doboj, cinco anos depois do acto inqualificável, a paz regressou ao nosso sentir. Muitos e muitos militares veteranos da Bósnia que usam várias cores de boinas, já nos fizeram sentir isso nestes últimos dias.
Missão Cumprida!
Miguel Silva Machado
Quer ver o vídeo da cerimónia no “Diário de Noticias”? Clique aqui.
Quer ler sobre a missão inicial na Bósnia? Clique em:
A MISSÃO NA BÓSNIA EM 1996 E O ACIDENTE DE 24 DE JANEIRO
MILITARES PORTUGUESES MORTOS EM TODAS AS MISSÕES DE PAZ
(*) Depois deste artigo publicado a placa original, foi detectada em Tancos onde chegou via Depósito Geral de Material do Exército.
Ver também a evolução deste processo:
MONUMENTO EM DOBOJ/BÓSNIA: A CAMINHO DA SOLUÇÃO?
NÃO DESISTIMOS DA LUTA PELA MEMÓRIA DOS PÁRAS MORTOS NA BÓSNIA!
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