O MAIOR CANHÃO DO MUNDO
Por Miguel Machado • 23 Dez , 2010 • Categoria: 03. REPORTAGEM, 14.TURISMO MILITAR PrintO património histórico-militar é hoje, reconhecidamente, um elemento de valorização turística, explorado em muitos países do mundo. Nos últimos anos tem crescido exponencialmente o número de visitantes. Aqui fica mais um exemplo, onde o aproveitamento da história militar é potenciado ao máximo, e daí resulta claro benefício para o país em causa.
Malta, ilha “militar”
O arquipélago de Malta estrategicamente localizado no “meio” do Mediterrâneo, foi palco ao longo da sua milenar história de inúmeros combates e batalhas. Desde o século XVI que as principais cidades da ilha principal foram fortificadas, primeiro pelos cavaleiros Hospitalários (mais tarde conhecidos por Ordem de Malta) e depois nos séculos XIX e XX pelo exército britânico, de quem Malta se tornou independente em 1964.
Vários portugueses ilustres deixaram o seu nome ligado a Malta, nomeadamente alguns que foram Grão-Mestres dos Hospitalários. Ainda hoje na toponímia local e em fortificações e outros edifícios públicos, alguns nomes lusos são recordados. E bem recentemente esses contactos continuam. Por exemplo em Medina, antiga capital de Malta o chamado Palácio Vilhena (antigo Grão Mestre), onde funciona entre outras coisas um museu de história natural, foi recuperado pela Fundação Calouste Gulbenkian, e inaugurado em 2002 pelo Presidente da República de Malta, como atesta uma placa em língua portuguesa ali colocada.
Neste país de 400.000 habitantes e 316 km2 composto por 3 ilhas – Malta, Comino e Gozo – que aderiu à União Europeia em 2004, o turismo ligado ao património histórico e militar é uma realidade constante sendo várias as fortificações abertas ao público (e várias em processo de recuperação), e os museus dedicados à temática militar de todas as épocas, mas muitos dos séculos XIX e XX. Tendo sido durante mais de um século a principal base da Royal Navy no Mediterrâneo, um ponto de apoio para o exército colonial britânico, cenário de terríveis combates aéreos e bombardeamentos maciços no decurso do último conflito mundial, e tendo ainda desempenhado um papel importante no conflito do Suez em 1956, é natural que os espaços museológicos deste período sejam em grande número.
Por seu lado as Forças Armadas de Malta têm uma dimensão adaptada à realidade do país, dispondo de um quartel-general (comando de brigadeiro-general), 3 regimentos, componentes naval, aérea e uma reserva treinada.
“O Maior Canhão do Mundo”
Das várias instalações histórico militares que se poderiam escolher para ilustrar o objectivo deste artigo escolhemos uma, o Fort Rinella, a meia-hora de autocarro da capital Valletta. Foi aliás feita uma extensão de uma das linhas dos serviços públicos de autocarros de Malta, exclusivamente para servir o forte.
Este forte tem algumas particularidades interessantes. Desde logo um dos “slogans” publicitários utilizados para atrair visitantes: veja o Maior Canhão do Mundo. Mesmo que em Gibraltar, como aliás é mostrado nas várias publicações sobre o forte disponíveis, haja outro sobrevivente igual, e é esta quantificação seja um bocado difícil, tendo em conta peças de costa e sob carris dos EUA e da antiga URSS. Mas é um facto que à data da sua construção, o “tubo” deste modelo seria realmente o mais pesado alguma vez construído com 103,64 toneladas e um calibre de 450 mm e ainda o maior alguma vez construído com este tipo de carregamento: pela boca.
“Ameaça” italiana
É curiosa a história que levou o Reino Unido a instalar quer em Malta quer em Gibraltar estas enormes peças de artilharia de costa. No fundo um episódio de autêntica “corrida aos armamentos” e “dissuasão” nos finais do século XIX. Em 1874 a marinha italiana em processo de modernização, encomenda a uma firma inglesa, a Armstrong & Co quatro destas peças para equiparem cada um dos seus novíssimos e ultramodernos couraçados, os “Duilio” e “Dandalo”. Os testes de fogo da primeira arma, realizados em Itália depois do transporte do primeiro protótipo desde Inglaterra, com grande publicidade, foram devastadores. De tal modo que Sir William George Armstrong (o fabricante) e dois outros ingleses envolvidos na criação e construção da arma, foram condecorados pelo rei de Itália.
Embora Itália estivesse em paz com o Império Britânico o protagonismo que a marinha deste país assumia no Mediterrâneo foi olhada como uma potencial ameaça pelos ingleses, tanto mais que Gibraltar e Malta estavam na rota para a Índia, via canal do Suez (aberto em 1869).
Enquanto a Royal Navy iniciava a construção de navios capazes de rivalizar com os italianos (o HMS “Inflexible”) O Ministério da Guerra Britânico enviou a Malta e Gibraltar o seu inspector-geral das fortificações que em relatório concluiu que embora estes pontos de apoio estivessem bem fortificados e armados, a sua artilharia de costa tinha menos alcance e menor capacidade de perfuração que os novos navios italianos iriam adquirir. Sugeriu assim a instalação de armas idênticas (100 toneladas) em ambas as colónias, para defesa dos respectivos portos principais. Dada a natureza das armas e os locais onde se deviam instalar foi decidido, em vez de aproveitar as fortificações existentes, construir de raiz fortes novos, especialmente adaptados. Além dos construídos em Gibraltar, o chamado Grande Porto de Valletta, recebeu dois, um de cada lado da entrada, de modo a ter os sectores de tiro com sobreposição suficiente para evitar eventual tentativa de forçar a entrada. A Oeste nasceu a “Cambridge Battery” e a Leste a “Rinella Battery”.
Os sapadores britânicos iniciaram a construção das baterias de Malta em 1878 e fizeram a sua entrega à artilharia em 1884. Mais 2 anos de trabalhos de acabamentos e adaptações e a bateria foi dada como operacional em 1886.
Vida operacional (relativamente) calma
A arma instalada no Forte Rinella teve um emprego operacional praticamente nulo, uma vez que nunca entrou em combate. Terá cumprido a sua função dissuasora e de treino, até 1906, data em que a arma foi oficialmente retirada de serviço (embora ali permanecesse instalada). Com uma vida útil calculada para 120 disparos, após o que teria que ser revista, a artilharia britânica procedia apenas a cerca de 4 disparos por ano de modo a treinar as guarnições. Além das preocupações com o desgaste também o preço era uma limitação. Cada disparo custava o equivalente ao salário diário de 2.400 soldados!
Já o forte dadas as suas características e localização foi utilizado mais alguns anos como ponto de observação para outras baterias de costa próximas e a partir dos anos 30 do século XX entregue à Royal Navy (o que seria a salvação da peça, como veremos), que o utilizou como depósito de munições dada a profundidade e características do seus paióis. Nesta época a Itália (mais uma vez ligada à história do forte) havia invadido a Abissínia (1935) e receou-se um bombardeamento aéreo à Ilha.
No decurso da 2ª Guerra Mundial o forte continuou a ser usado como depósito de munições, abrigo para as populações locais e como posto de observação de um dos regimentos estacionados em Malta. Foi neste conflito a única vez que o forte foi atingido: Por bombas da aviação dos países do Eixo.
Em 1952 o Exército Britânico decidiu extinguir a sua artilharia de costa em todas as suas instalações e Malta não foi excepção. Centenas de peças, antigas e modernas, foram removidas e vendidas a peso para sucata. A arma gémea da Cambrige Battery foi cortada em pedaços a maçarico e alienada. Mas a de Rinella escapou porque o Almirantado decidiu que aquela ordem ali não tinha efeito, o forte era da Royal Navy.
Em 1965 um ano após a independência as instalações foram transferidas para o governo de Malta e o forte foi tendo usos variados, nomeadamente como cenário para filmes.
Finalmente em 1991 o governo entregou o forte à “Fondazzione Wirt Artna,” uma fundação que dinamiza vários museus e algumas das antigas fortificações de Malta, e o forte gradualmente foi sendo reposto no seu aspecto original, encontrando-se hoje na sua quase totalidade recuperado. Os objectivos desta organização que conta com apoios oficiais mas muito de entidades particulares e trabalho voluntário, é a de recuperar o património histórico de Malta e transformar vários locais em “museus vivos”, como este, onde além das instalações se pode assistir e mesmo tomar parte em verdadeiras lições de história.
Forte Rinella
O forte em forma de pentágono, praticamente enterrado, com uma silhueta muito baixa, é circundado por um fosso que tem a particularidade de, no seu interior, ter casamatas com seteiras para que, na falta de água para o encher, todos ao ângulos possíveis pudessem ser cobertos pelas espingardas dos defensores.
O vértice virado para o Mediterrâneo é ocupado pela peça que tem de cada um dos seus lados os dispositivos de carregamento. Esta arma era carregada pela boca, ora virando para a esquerda ora para a direita, onde, enterradas, funcionavam duas torres metálicas de carregamento e duas câmaras de municionamento através das quais, cargas de pólvora e munições, eram mecanicamente introduzidas no cano. Este sistema duplo permitia fazer fogo com uma maior cadência de tiro – 1 disparo cada 6 minutos – que as mesmas armas nos navios italianos – 1 tiro cada 20 minutos. As munições tinham um peso 907 kg era propulsionadas por uma carga de pólvora negra de 250 kg, naturalmente também carregadas pela boca, e atingiam a distância de 6.400 metros, o que para a época era muito bom.
Note-se que a peça funcionava com um inovador sistema hidráulico a vapor – o primeiro a ser montado em todo o Império -, instalado no sub-solo, embora pudesse ser operada manualmente. Neste caso eram necessários 40 homens e 4 horas de trabalho para que a pressão necessária para mover a peça fosse atingida. A guarnição normal desta bateria era de 35 militares da Royal Malta Artillery, sendo 16 (6 sargentos e 10 praças) a guarnição da arma.
No sector oposto ao da arma, enterradas e protegidas por grossas paredes de pedra, ficavam os alojamentos à “prova de bomba” para toda a guarnição.
Todas as instalações do forte eram enterradas desde as latrinas aos depósitos de água.
História viva
O forte pode ser visitado diariamente, todo o ano, excepto Natal, Ano Novo, Sexta-Feira Santa e Páscoa. Pelas 14h30 decorre uma vista guiada (em inglês) e reconstituição histórica com “pessoal” fardado à século XIX, onde os visitantes podem assistir a várias actividades militares da época, desde treino de defesa terrestre do forte, a ataques com baionetas ou trabalhos de manutenção do armamento e a cenas da vida quotidiana – beber chá e biscoitos. Mediante pagamento pode-se mesmo disparar com espingardas da época vitoriana.
Mesmo fora das visitas guiadas os “funcionários” em serviço – recepção e bar – estão fardados à época e todas as dependências dispõem de placas explicativas bem ilustradas com desenhos e fotografias que permitem a perfeita compreensão do que por ali se passava.
Na zona das camaratas podem ser vistos os diferentes tipos de fardamento, condecorações, e diversos equipamentos de uso diário, além de fotografias, muitas oferecidas por familiares de militares ingleses que ali serviram. É também nesta zona que se encontra uma maqueta do forte onde é possível analisar os seus diversos detalhes e um curiosos poster de recrutamento da Engenharia Britânica no qual todos os detalhes do serviço militar naquela arma no final da época vitoriana estão descritos.
O Forte Rinella é uma (e por sinal pequena embora tendo uma enorme peça!) das muitas fortificações que em Malta, Comino e Gozo, podem ser visitadas. Nestas três ilhas existem largas dezenas de fortes, fortificações, campos entrincheirados para defesa da costa e portos principais, linhas defensivas (a “Victoria Lines” atravessa transversalmente toda a ilha principal) e subterrâneos que ao longo da história de Malta serviram a defesa da Ilha. Estão muito estudados, há abundante bibliografia sobre eles e parte é explorada turisticamente, com reconstituições históricas. De um modo geral todos os museus dispõem de lojas onde uma grande variedade de recordações e livros alusivos são vendidos. Há bastante divulgação quer em guias turísticos quer em publicações promocionais (por exemplo na Air Malta) quer naturalmente nos balcões de informação turística e hotéis. Mas paga-se! Todos estes locais cobram entradas e taxas especiais para algumas animações.
Quer ver o Forte Rinella no Youtube? Clique aqui: Fort Rinella and The Armstrong 100 Ton Gun.
Bibliografia consultada: “Fort Rinella And Its Armstrong 100 Ton Gun”, de Mário Farrugia, 2004.
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