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JUSTIÇA DISCIPLINAR MILITAR

Por • 10 Fev , 2009 • Categoria: 02. OPINIÃO Print Print
Os deveres militares decorrem de valores permanentes em forças armadas organizadas, valores que existem e atravessam todas as épocas e regimes.

Os deveres militares decorrem de valores permanentes em forças armadas organizadas, valores que existem e atravessam todas as épocas e regimes.

O presente artigo da autoria de Victor Manuel Gil Prata (*) é um contributo muito informado para o  desejável debate relativo à Disciplina Militar que deverá ter lugar agora, quando estão em curso alterações à legislação vigente. O “Operacional” orgulha-se de mais este contributo recebido, colocando à disposição dos leitores uma opinião que deve ser levada em linha de conta nomeadamente pelas pertinentes questões que coloca.

Justiça Disciplinar Militar

O Exército Português, através do seu Programa D. Afonso Henriques, vai realizar um Seminário sobre “O Exército e a Justiça”, a incidir especialmente na vertente da disciplina militar e da importância desta como instrumento indispensável da acção de comando. De facto, trata-se de um tema de grande actualidade e oportunidade, atendendo a que a médio prazo irá ser revogado o RDM, em vigor desde 1977 e que já merecia alterações.
Este debate deve ser também travado no interior da Instituição para a salvaguardar de quem julga não ser de atender às especificidades próprias da Instituição militar no que respeita ao regulamento disciplinar. Já alguns escreveram que o fim do serviço militar obrigatório deveria ser acompanhado por um processo de “civilização” da função militar, o que se conseguiria com a aproximação do estatuto dos militares do QP e em RC ao regime jurídico da função pública; à atribuição aos militares de funções não estritamente militares de defesa militar, tais como protecção civil (…) e outras missões relacionadas com o bem-estar da colectividade; (…) e à revisão do RDM.
A Constituição portuguesa consagra que às Forças Armadas incumbe a defesa militar da República e que a defesa da Pátria é um direito e um dever fundamental de todos os portugueses. Como objectivos da defesa nacional define a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externas.
Não me vou prender na distinção entre defesa da República e defesa da Pátria. Apenas refiro não acreditar que o termo “República” surja no texto constitucional com a ideia de regime político, pois não vejo qualquer possibilidade de que a ameaça ou agressão externas a que as Forças Armadas tenham de fazer face possa ter como objectivo o derrube do regime político em vigor.
Assim, o momento exige que se comente o regulamento disciplinar dos militares das Forças Armadas, tendo em conta o seu projecto de revisão.
Há valores considerados como fundamentais e como tal merecedores da tutela do Direito. Este acolhe-os através de normas jurídicas, das quais resulta deveres individuais para os cidadãos. No universo militar, com maior acuidade, estes deveres surgem de variada legislação militar, como o Estatuto dos Militares das Forças Armadas, o Estatuto da Condição Militar, do próprio Código de Justiça Militar e de muita outra legislação entre a qual o Regulamento de Disciplina Militar. É a violação destes deveres militares que constitui a infracção disciplinar.
Enquanto que a tipificação é condição essencial da norma penal, em obediência ao princípio da legalidade e da tipicidade, a infracção disciplinar caracteriza-se pela prática ou omissão de actos, por parte do funcionário ou agente, em colisão com os deveres gerais ou especiais decorrentes da função que exerce. Assim, a infracção disciplinar não carece da formulação de uma tipologia de factos ilícitos, porque é “constituída por toda e qualquer violação de deveres inominados”.
Como e porquê se exigiria à generalidade dos funcionários públicos ou privados que respeitassem deveres de iniciativa, de coragem, de abnegação, de sacrifício, de obediência ou de prontidão? No entanto essa exigência faz sentido a quem, integrado na instituição militar, prossegue os fins desta.
Os deveres militares decorrem de valores permanentes em forças armadas organizadas, valores que existem e atravessam todas as épocas e regimes. O primeiro desses deveres é o da defesa da Pátria que, se necessário, é cumprido com o sacrifício da própria vida. Note-se que esta exigência é apenas feita a militares e a mais nenhum funcionário ou agente, militares que não gozam do direito de cobardia ainda que receiem pela vida, quando o cumprimento da missão exija que corram esse risco.
Os valores fundamentais dos quais decorrem os deveres do militar são os da missão, da hierarquia, da coesão, da disciplina, da segurança e da obediência aos órgãos de soberania. Destes decorrem valores individuais, cuja observância se traduz no respeito por deveres que os tutelam. Assim, enquanto que a preservação dos valores fundamentais é dever de todos os cidadãos e a sua violação grave constitui crime tipificado no Código Penal e no Código de Justiça Militar, no que concerne a patriotismo, civismo, profissionalismo, respeito pela vida humana, lealdade, verdade, honra, honestidade ou coragem, por serem valores individuais dos militares, deles decorrem deveres do militar cuja violação constitui a infracção disciplinar.
Estes deveres não devem, na nossa opinião, ser enumerados de modo taxativo mas sim exemplificativo. A não ser assim, onde consagraríamos o dever de iniciativa, de coragem ou de abnegação?
Por maioria de razão, não se podem enunciar taxativamente as infracções disciplinares, como alguns invocam. Só por desconhecimento ou por má-fé se poderá exigir que um regulamento disciplinar enuncie todos os tipos de acções ou omissões que constituam infracção disciplinar. O universo das acções exigíveis a um militar não se coaduna com essa previsão. Como referimos antes, infracção é toda a acção ou omissão que atente contra qualquer dever imposto ao militar. Condutas tipificadas como proibidas são próprias do direito penal.
Daqui se retira que, havendo normas jurídicas que tutelam os valores referidos através da tipificação de crimes ou da definição de deveres a respeitar pelo militar, há acções ou omissões que constituem crime e simultaneamente infracção disciplinar, podendo ainda relevar para efeitos cíveis. A título de exemplo, o extravio por um militar de uma arma de guerra que lhe fora distribuída pelo Exército releva enquanto crime estritamente militar, punido nos termos do art.º 81.º do CJM, releva ainda como infracção disciplinar por violação de um dever de zelo e tem também relevância cível porque o Estado tem direito a ser ressarcido do valor da arma extraviada. Em síntese, o crime é um plus para o minus que é a infracção disciplinar.


Os deveres militares diferenciam-se dos deveres impostos a outros funcionários

Os deveres militares diferenciam-se dos deveres impostos a outros funcionários

Os deveres militares diferenciam-se ainda dos deveres impostos a outros funcionários porque aqueles são quase sempre de natureza pessoal e estes são normalmente de natureza funcional. Não são exigíveis a funcionários os deveres de camaradagem, de solidariedade, de aprumo ou de disponibilidade. Os valores fundamentais acima identificados exigem que os actos da vida do militar concorram em todo o momento para o bom funcionamento e imagem da Instituição em que está integrado, a fim de conseguir a sua eficácia e eficiência. As Forças Armadas existem em permanência para que possam cumprir o seu fim que é a defesa militar do país. Para isso, têm de se manter operacionais e dispor de efectivos, material e instrução que as mantenha aptas a intervir em caso de emergência. Ora, a sua existência, de modo organizado, operacional e subordinadas ao poder político, implica que sejam balizadas por valores, sem os quais o que existe são grupos armados e não Forças Armadas.

Já alguém afirmou que a disciplina é como um vírus: tal como cria e fortalece os exércitos quando existe, também os enfraquece e mata quando está ausente. O moral elevado e a disciplina andam de mãos dadas. Batalhas perdidas ou calamidades não desesperam exércitos cuja disciplina se mantenha firme. Esta é a raiz anti-sísmica das Forças Armadas e é aceite ou é imposta.

Os princípios da hierarquia e da disciplina surgem em toda a legislação militar como a base institucional das Forças Armadas: a primeira para fixar funções e responsabilidades e a segunda para garantir o desenvolvimento regular das actividades militares numa instituição que assegura a gestão da violência. No Regulamento Disciplinar de 1913, a disciplina militar era definida como “o laço moral que liga entre si os diversos graus da hierarquia militar, nasce da dedicação pelo dever e consiste na estrita e pontual observância das leis e regulamentos militares”. Era assim adquirida como fonte de coesão e espírito de corpo e acolhida conscientemente por todos os que escolhiam servir a Pátria nas Forças Armadas. Além do cumprimento estrito dos seus deveres, o militar tem de reflectir a sua adesão consciente aos valores militares. É por isso que, desde o seu ingresso nas fileiras e até fora de efectividade de funções, os militares participam activamente na manutenção e reforço do espírito de corpo e na manutenção de valores éticos, o que condiciona a própria vida privada do militar e o vincula ao cumprimento de alguns deveres.
Isto demonstra que a nenhum grupo profissional se exige tanto dos seus membros como aos militares. O sacrifício da própria vida é, mais do que ser um risco do serviço que presta, um dever do militar em certas circunstâncias. E é esta a realidade que o honra e o distingue dos outros profissionais. Estas especiais condições de serviço são assim incompatíveis com a existência de um estatuto idêntico ao dos demais funcionários.
Perante a variedade e importância das responsabilidades dos militares, os seus comandantes, directores e chefes dispõem de um conjunto de competências próprias para prosseguirem as atribuições que estão cometidas às Forças Armadas. De entre estas competências existe a competência disciplinar dos superiores hierárquicos. Estes têm responsabilidade plena pelo cumprimento da missão da sua Unidade e pelo que se faz ou deixa de fazer. E se a competência se pode delegar, já o mesmo não é possível em termos da responsabilidade. Assim, o comandante é o primeiro interessado no bom cumprimento da missão ou tarefas cometidas à sua unidade. Para as cumprir e fazer cumprir dispõe de um instrumento que é a sua competência disciplinar, que consiste no poder potestativo de instaurar processos para apreciar infracções disciplinares, de impor sanções e também de conceder recompensas. Assim, em processo disciplinar, o comandante é juiz em causa própria porque, se constata ou toma conhecimento da violação de algum dever, ordem ou instrução que ponha em causa o cumprimento da sua missão deve, se tiver competência adequada à gravidade da infracção, mandar instaurar procedimento e aplicar sanções.
Esta é uma competência desconcentrada porque está atribuída aos diferentes níveis de comando. O comandante tem uma margem de discricionariedade para apreciar a oportunidade e adequação de escolher e aplicar uma ou outra das sanções tipificadas em função das circunstâncias que envolveram a infracção. Não obstante, apesar de esta ser uma competência discricionária, é necessário que o procedimento disciplinar obedeça a determinados trâmites e garanta ao infractor o direito de se defender dos factos que lhe são imputados, salvaguardando-se, assim, um conjunto de garantias de defesa e a aplicação de uma sanção razoável e adequada à infracção cometida, sem as quais a pena apenas contribuiria para a indisciplina e o descrédito da acção de comando.
Perante a constatação de uma infracção, o superior hierárquico decidirá por despacho se, por razões de conveniência, de oportunidade ou de boa harmonia do serviço, deve organizar processo, deve submetê-lo à consideração superior ou deve arquivá-lo.
Como já referimos, as infracções são inominadas, mas as sanções estão tipificadas no regulamento disciplinar: são as que estão definidas e mais nenhuma além daquelas. Caberá ao superior hierárquico com competência disciplinar escolher e graduar a pena a aplicar. Ora, um inconveniente deste projecto de regulamento é precisamente o de não distinguir as infracções em razão da sua gravidade e dos deveres violados, permitindo a aplicação de penas desproporcionadas.


O sacrifício da própria vida é, mais do que ser um risco do serviço que presta, um dever do militar em certas circunstâncias.

O sacrifício da própria vida é, mais do que ser um risco do serviço que presta, um dever do militar em certas circunstâncias

Há na imposição de um dever um interesse que se pretende prosseguir. Donde, a gravidade da infracção tem a ver com a natureza dos bens jurídicos associados ao dever violado e com a consumação ou não da sua lesão. Na determinação da pena tem–se ainda em conta a culpa do infractor. Esta implica um juízo de censura aplicado àquele que tinha o dever e a possibilidade de adoptar a conduta devida e não o fez. Também este juízo é susceptível de graduação porque a conduta indevida pode ser negligente ou dolosa, admitindo ainda cada uma vários graus, tal como no direito penal.

Como já afirmámos, a lei reconhece às entidades com poder disciplinar alguma margem de discricionariedade para decidir. Assim, essas entidades poderão ter critérios de apreciação diferenciados o que poderá conduzir também a uma diferenciação na aplicação de sanções. Por esta razão o superior hierárquico da entidade que pune deve ter a possibilidade de alterar essa decisão por motivos de justiça, adequação e proporcionalidade, atenuando ou agravando a sanção. A sanção tem uma função correctiva que visa a boa harmonia e desempenho do serviço, mas para alcançarmos a disciplina é necessário que o procedimento disciplinar permita ao arguido todas as possibilidades de se defender, sem as quais não haveria verdadeira acção de comando, abrindo caminho a arbitrariedades.
Assim, os princípios gerais do Direito, com consagração constitucional, têm aplicação no processo disciplinar enquanto garantias de defesa do infractor:
• O princípio da defesa permite-lhe constituir defensor, que pode ser advogado ou oficial, consultar o processo, indicar testemunhas e requerer diligências. A omissão de diligências consideradas essenciais à descoberta da verdade é uma nulidade insuprível.
• O princípio da audiência é o direito do arguido ser ouvido também a seu requerimento, porque ele é um sujeito participativo no processo, podendo influenciá-lo.
• O princípio do contraditório confere ao arguido o direito de contraditar todos os elementos ou factos carreados para o processo antes de ser proferida decisão.
• O princípio da presunção da inocência significa que é ao instrutor que compete o ónus da prova e que, havendo dúvidas sobre a culpabilidade do arguido, o processo deve ser arquivado.
• O princípio da obrigatoriedade do processo implica que qualquer sanção deve ser sempre consequência de um processo.
• O princípio da verdade material é uma obrigação que recai sobre o instrutor do processo competindo-lhe recolher todas as provas que permitam a reconstituição dos factos ocorridos e inocentar o arguido se for o caso. Para isso deve proceder a todas as diligências que considere convenientes, ainda que não requeridas pelo arguido.
• Está ainda consagrada uma outra garantia, que é o direito de recurso. O arguido pode apelar às instâncias superiores no sentido de alterar ou impugnar uma decisão desfavorável. O superior hierárquico ao qual é dirigido o recurso tem a faculdade de rever ou confirmar, modificar ou revogar actos praticados por subordinados. O recurso pode também ser contencioso quando dirigido aos tribunais administrativos.
Aqui chegados e tendo em consideração o projecto de regulamento de disciplina militar, que se encontra em fase de aprovação na Assembleia da República, é nossa opinião que este projecto apresenta uma melhor sistematização dos deveres do militar e uma melhor enunciação exemplificativa de condutas passíveis de sancionamento. No entanto, a preocupação do legislador “civilizar” o RDM é por demais evidente, parecendo-nos que consegue que este seja mesmo menos rigoroso na sua aplicação do que o regulamento disciplinar de qualquer das forças de segurança e até mesmo do estatuto disciplinar dos trabalhadores que exercem funções públicas.

A preocupação do legislador de "civilizar" o RDM é por demais evidente, parecendo-nos que consegue que este seja menos rigoroso na sua aplicação do que o regulamento disciplinar de qualquer das forças de segurança

A preocupação do legislador de "civilizar" o RDM é por demais evidente, parecendo-nos que consegue que este seja menos rigoroso na sua aplicação do que o regulamento disciplinar de qualquer das forças de segurança

Assim, algumas questões se colocam às quais gostaríamos de encontrar resposta, designadamente:
Como entender que o superior hierárquico não possa agravar uma decisão sancionatória até ao início da execução da mesma, ou mesmo em sede de decisão de recurso hierárquico? Razões de justiça relativa e de boa harmonia no serviço exigem que o superior hierárquico goze desta faculdade face à margem de discricionariedade dos subordinados na aplicação de sanções. Qualquer regulamento disciplinar das forças de segurança prevê esse agravamento e o estatuto disciplinar dos funcionários civis do Estado também o prevê quando o recurso for interposto pelo participante da infracção.
Não entendemos também por que razão a competência disciplinar não está relacionada com o exercício da função em vez de com o posto. Assim, um tenente que exerça funções de comandante de companhia tem responsabilidade da função, mas não tem a correspondente competência disciplinar. O que não faz sentido.
Consideramos que, dada a gravidade das penas a aplicar de reforma compulsiva e separação de serviço, deve estar indicado o tipo de infracções que, pela sua gravidade, inviabilizam a manutenção do vínculo funcional com as Forças Armadas.
Também não faz sentido que, se aos militares reformados apenas é exigível o dever especial de aprumo e aos militares fora de efectividade de serviço os deveres especiais de disponibilidade e de aprumo, os mesmos sejam susceptíveis de sofrer a pena de separação de serviço. Esta pena é desproporcional à simples violação dos deveres especiais em causa, pelo que se deve reforçar a ideia de que os militares naquelas situações continuam sujeitos aos deveres gerais, apesar de estarem apenas sujeitos aos referidos deveres especiais.
Consideramos que se deve introduzir uma cláusula de exclusão de responsabilidade disciplinar quando o militar cumpre uma ordem legítima dada em razão de serviço, desde que não implique a prática de um crime. Para nós é insuficiente a referência feita no projecto de RDM de que “o dever de obediência consiste em cumprir ordens e instruções desde que o seu cumprimento não implique a prática de um crime”. Consideramos que se deve reanalisar os termos deste artigo uma vez que com esta redacção o militar poderá escusar-se ao cumprimento de uma ordem consequente de uma decisão política de, para dar um exemplo com alguma actualidade e muito discutido em seminários militares, abater um avião sequestrado que se prepare para provocar mais vítimas do que as que se encontram no avião. A obediência a uma ordem destas, em teoria, implica a prática de crime ainda que o mesmo se considere justificado pelas causas de exclusão da ilicitude. Só que não cabe ao militar, a quem as ordens devem ser claras “para militar perceber”, apreciar essas causas de justificação e verificar assim se está ou não dirimida a sua responsabilidade. Deve resultar claro do regulamento disciplinar que é excluída a responsabilidade do militar que, em condições excepcionais e de emergência, obedeça a uma ordem legítima e legal de determinada entidade responsável.
Também não entendemos porque não está prevista a possibilidade de um subordinado denunciar uma infracção de que tenha conhecimento ou presenciado, praticada por superior hierárquico. Um civil pode fazer a denúncia, mas o subordinado só a pode fazer se da violação do dever militar resultar uma lesão dos seus direitos.
Porque não está também previsto que o comandante que constata directamente uma infracção elabora ou manda elaborar auto de notícia para instauração de procedimento? O comandante que tem a responsabilidade pelo cumprimento da missão e constate uma infracção tem de a participar superiormente? Não faz sentido atendendo que é ele que tem a responsabilidade inerente à função e a competência para punir.


Deve resultar claro do regulamento disciplinar que é excluída a responsabilidade do militar que, em condições especiais e de emergência, obedeça a uma ordem legítima e legal

Deve resultar claro do regulamento disciplinar que é excluída a responsabilidade do militar que, em condições especiais e de emergência, obedeça a uma ordem legítima e legal

No RDM em vigor, a participação de infracção feita por oficial que tenha presenciado os factos presume-se verdadeira, ainda que seja uma presunção ilidível. O mesmo não está agora previsto. Será que foi ponderado o prejuízo que a falta desta presunção pode provocar na acção de comando?
Relativamente aos efeitos do recurso hierárquico, verificamos que suspende a execução da pena. Apesar de estarmos de acordo com esta solução, chamamos a atenção de que a mesma solução não foi adoptada no regulamento disciplinar da GNR, nem tão pouco no estatuto disciplinar dos funcionários que exercem funções públicas, onde se admite a execução imediata da pena se da sua suspensão resultar grave prejuízo para o interesse público.
Verificamos também que a forma dos actos é sempre escrita. Não entendemos se também se refere a uma obrigação de forma sempre escrita do processo. Se assim é, pensamos ser exagerado que, no caso de uma infracção considerada leve e cuja sanção correspondente seja uma repreensão, se exija também um processo escrito. Julgamos que podia dispensar-se esta forma a não ser que fosse requerida pelo arguido, mantendo-se no entanto a proibição de preterição do direito de audiência do mesmo. É que se assim não for, poder-se-á permitir que caia em desuso este tipo de sanção pelo esforço burocrático que uma infracção leve exige.
Por último, permitimo-nos questionar sobre que tipo de tribunal administrativo é competente para julgar o recurso de uma decisão de aplicação de medidas cautelares, de que é exemplo a suspensão preventiva. Nos termos do art.º 6.º do DL 34/2007 de 13Ago, só se recorre para o tribunal central administrativo das decisões que apliquem sanções disciplinares de detenção ou mais gravosas. Caberá assim aos tribunais administrativos de círculo a apreciação das medidas cautelares aplicadas pelos chefes de estado-maior dos ramos?
Outras questões de menor importância poderíamos colocar, no entanto como longo vai o texto vamos dispensar-nos de o fazer.
Gostaríamos no entanto de reafirmar que admitimos que este projecto apresenta uma sistematização dos deveres mais adequada. Porém parece-nos evidente uma preocupação na sua elaboração de atenuar uma carga de rigor disciplinar imposto a militares, que está justificada pelas especificidades da sua função como decorre do que foi dito atrás. Talvez a ideia errada de que com o fim do serviço militar obrigatório o RDM não precisa de manter essa carga esteja na sua origem. Nada de mais errado, porque o RDM tem e sempre teve o conjunto dos militares como universo de aplicação, independentemente de quadros, classes, postos ou situação. E não foi o fim do SMO que fez alterar esta realidade.
Essa preocupação torna-o de aplicação menos exigente do que a de regulamentos de outros corpos especiais ou outros funcionários, cuja “disciplina (parafraseando um Coronel do Exército) constitui como que as paredes-mestras do edifício – paredes que na prática, muitas vezes, define como tabiques amovíveis de interiores – mas, nas Forças Armadas, a disciplina constitui a raiz anti-sísmica do sistema. Há uma diferença abissal. E existem apenas duas formas de haver disciplina: ou se aceita ou se impõe.”

(*) Coronel de Infantaria na reserva, com a especialidade de pára-quedista, ingressou na Academia Militar em 1976, onde se licenciou em Ciências Militares tendo em 1993 frequentado o Curso de Estado-Maior.
Em 1995 licenciou-se em Direito, tem duas pós-graduações, uma em Problemas Jurídicos da Droga e Toxicodependência e outra em Criminologia. Em 2004 terminou fase curricular do Mestrado em Estratégia.
Ao longo da sua carreira desempenhou funções em diversas áreas e instituições tendo servido na Policia de Segurança Pública, no Serviço de Informações de Segurança, no Serviço de Informações Estratégicas de Defesa e Militares desempenhando as funções de Director-Geral Adjunto e na Policia Judiciária Militar onde foi Subdirector. Actualmente é Juiz Militar nas Varas Criminais do Tribunal da Boa-Hora.

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