“DE ESPANHA…
Por Miguel Machado • 6 Ago , 2010 • Categoria: 09. ONTEM FOI NOTÍCIA - HOJE É HISTÓRIA, 14.TURISMO MILITAR Print…nem bom vento nem bom casamento“, assim reza o provérbio popular português tantas vezes chamado à colação, a propósito dos mais variados aspectos que se referem ao nosso vizinho Ibérico. Hoje no entanto proponho-me contrariar a sabedoria popular. A realidade é que deparei, em Espanha, com um bom exemplo, ilustrativo de um convívio são e descomplexado da história militar com o lazer, a preservação da natureza e o turismo.
Defesa da Costa
No limite sul da cidade da Corunha, na Galiza, funcionou durante anos, em área interdita, uma imponente bateria de artilharia de costa, integrada no sistema defensivo do importante porto da cidade. Para não recuar muito no tempo direi apenas que no final da 2ª Guerra Mundial, a chamada base naval Corunha-Ferrol era defendida por 14 baterias de artilharia de costa e 8 de anti-aérea. Este dispositivo foi sendo reduzido, gradualmente, até ser extinto em 1990.
Por esta altura, no dizer de muitos em Espanha, iniciou-se uma “página negra” da sua história militar. E porquê? Muitas destas baterias foram pura e simplesmente abandonadas, logo vandalizadas, e o material inutilizado e vendido “a peso”. O mesmo aconteceu em algumas baterias no Mediterrâneo nomeadamente junto a Cartagena.
Mas em boa hora o município da Corunha, devidamente assessorado pelo Museu Militar Regional da cidade, se apercebeu das possibilidades que uma destas baterias apresentava: a do Monte de San Pedro.
A história da defesa desta costa e as vicissitudes porque passaram as diferentes estruturas ali implantadas para essa finalidade estão muito bem documentadas, em pelo menos dois livros – profusamente ilustrados – que no final deste texto se indicam. Um deles, o mais recente, apresenta mesmo 4 rotas turísticas para quem queira tomar contacto não só com a bateria que está devidamente preservada mas também com o que resta das que foram abandonadas.
Peças Vickers 38,1 cm 45 calibres
As peças Vickers do Monte San Pedro foram fabricadas no Reino Unido, na Fábrica de Barrow, tendo sido entregues em 1929 a Espanha. Depois de complexos e demorados trabalhos de montagem fizeram fogo pela primeira vez em 1933. Serviram mais de 40 anos tendo feito fogo pela última vez em 1977.
As peças medem 17 metros de comprimento, têm calibre 38,1 cm, cada projéctil disparado pesava 885Kg e atingia um alcance de 35Km.
Segundo historiadores espanhóis “este argumento” foi um dos principais motivos pelo qual os navios alemães, no decurso da 2ª Guerra Mundial, se podiam abastecer nos portos da Corunha e Ferrol sem receio dos navios Aliados, cujas frotas não se aproximavam.
Monte San Pedro
Na altura da previsível destruição do local, em 1997, depois da decisão militar de desactivação total da artilharia de costa nesta região, município, museu e comandos militares locais, conseguiram que os materiais desta bateria fossem transferidos para a posse do município e assim preservados. E o que fez a “câmara municipal” da Corunha? Manteve as imponentes peças de 38,1 cm exactamente nos seus lugares, vedou o acesso às instalações subterrâneas para evitar acidentes, recuperou parte das casernas e outros edifícios para ali instalar elementos de interpretação e museológicos ou fechou outros por desnecessários. E no espaço envolvente de tudo isto, nasceu um interessante e bem cuidado espaço ajardinado de grandes dimensões.
Acresce que este local está junto a uma área que sofreu nos últimos anos uma grande expansão urbana, com edifícios de habitação e áreas comercias, sendo esta uma das maneiras que ali se encontrou de equilibrar a zona, com um autêntico pulmão verde.
O município orgulha-se mesmo, na informação disponibilizada aos visitantes, de ter conseguido para a sua população um Parque Municipal com vistas excepcionais não só sobre toda a cidade como por uma vasta franja da costa, e de ali se poder ter uma noção da história, do modo como aquela parte de Espanha se defendia e assim se “passar o testemunho” às novas gerações, em simultâneo com a possibilidade de tomar contacto com as espécies vegetais típicas dos ambientes costeiros e uma enorme quantidade de pequenas aves, tudo num ambiente paisagístico excepcional.
E não se julgue que o espaço é uma espécie de museu para historiadores ou biólogos. Como tivemos oportunidade de constatar, num sábado de manhã, o espaço é bastante frequentado por famílias inteiras e grupos organizados que ali desfrutam do espaço. O parque tem entrada livre, e dispõe de estacionamento grátis quer para ligeiros quer para autocarros.
O sucesso deste espaço é evidente e já está a sofrer melhoramentos, não só em termos de aumentar os seus equipamentos como para facilitar o acesso a peões. Assim vai incluir um novo observatório de toda a região, coberto, e está a ser construído um elevador panorâmico, que dará acesso pela falésia a um “passeio marítimo” que se estende por toda a orla marítima da cidade.
Museu Militar Regional
A memória militar da cidade está bem preservada no Museu Militar Regional (também de acesso grátis), e no espaço ajardinado que o envolve. Esta é aliás uma cidade onde a história militar está omnipresente! Avenidas e praças com nomes de militares espanhóis e ingleses (que ali combateram na guerra peninsular) e estátuas de vultos militares são presença constante.
O museu reflecte então a história militar da cidade e também naturalmente, a da artilharia de costa. Não só com mapas e réplicas do material, como com partes de peças e dos equipamentos utilizados no cálculo do tiro e ainda, com uma peça, 15,24 cm que simbolicamente continua a guardar o porto da cidade, apontado ao moderno centro de controlo de tráfego marítimo.
Bom vento!
Para quem gosta de história militar, a Corunha, e em particular estes dois locais, merecem sem dúvida uma visita.
A adaptação do Monte San Pedro é um exemplo que podia ser seguido. É aliás quase impossível estar junto a uma das peças do Parque Municipal e não pensar na nossa 7ª Bateria do extinto Regimento de Artilharia de Costa: na encosta do Outão, com a cidade de Setúbal e as praias da Arrábida ali tão perto…
O paralelismo é mais do que evidente e seria um bom complemento ao Museu da Artilharia de Costa que, mais a norte na Parede, deverá ser implantado. Se um terá uma vocação mais museológica e de estudo da História, este estaria mais voltado para o lazer e a natureza. A vegetação única da Arrábida, as vistas deslumbrantes de toda a península de Tróia, da cidade de Setúbal, do oceano e a orla marítima, certamente atrairiam visitantes.
Não seria ainda inédito, e em vários países europeus isso já existe, lançar uma rota turística regional dedicada a temas militares, constituída, entre outros, por estas baterias, o Museu Militar e outros locais em Lisboa, e alguns dos fortes das Linhas de Torres Vedras.
Para saber mais sobre este assunto:
“La Costa Inexpugnable” de Lucas Molina, Juan Vázquez Garcia e José López Hermida, La Coruña, 2002. ISBN 84-96016-01-3;
“Los Cañones de la Coruña” de Juan Vázquez Garcia e Lucas Molina Franco, La Coruña, 2004. ISBN 84-96016-32-3;
Clique aqui para ler o que a Câmara Municipal da Corunha diz sobre o Monte San Pedro.
Nota final: este artigo foi publicado, embora com muito menos fotografias, no “Jornal do Exército” em 2006, ano em que a reportagem foi feita. Note-se que a parte final quando se refere a Linhas de Torres Vedras, há de facto hoje em curso um importante (e inédito e Portugal), trabalho e curso, parte do qual já concluído.
Leia sobre as Linhas de Torres Vedras, no Operacional:
GUERRA PENINSULAR: 200 ANOS DEPOIS
Leia mais sobre Artilharia de Costa no Operacional:
OS ÚLTIMOS DISPAROS DO “MURO DO ATLÂNTICO” PORTUGUÊS
OS CANHÕES DA CASTANHEIRA EM PONTA DELGADA…
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