CHAIMITE V-200 (Parte I)
Por Miguel Machado • 3 Fev , 2009 • Categoria: 07. TECNOLOGIA PrintEstou convicto que a generalidade dos operadores da “Chaimite”, de ontem e de hoje, não imaginam estar a história desta viatura recheada de inúmeros episódios controversos onde a verdade e a mentira se cruzam a todo o tempo, e na qual muitos dos intervenientes têm um papel que só estamos habituados a ver nos filmes! Como muitas vezes acontece não há ainda consenso possível: Se para uns se tratou de um projecto arrojado destinado a “ganhar a guerra”, equipando as Forças Armadas Portuguesas com material moderno numa altura difícil para o país; para outros estivemos perante um conjunto de negócios pouco claros e de fraudes sucessivas que arrastaram alguns portugueses e estrangeiros pela justiça, dentro e fora de Portugal. Para nós este é o momento de abordar este assunto sem paixão, procurando junto dos vários intervenientes e nos arquivos oficiais, informação rigorosa, e deixar aos vindouros elementos que permitam “julgar” a Chaimite e os seus criadores.
Esta artigo é no essencial o mesmo que este mês de Janeiro o “Jornal do Exército” publica, embora aqui no OPERACIONAL tenha sido possível incluir mais imagens e alguns detalhes novos, inéditos até este momento.
Trata-se da síntese possível de um extenso e demorado trabalho de investigação que ainda está em curso e deverá dar origem a um livro muito completo sobre a história desta viatura e de outros assuntos e pessoas que lhe estão associadas.
Embora me recorde bem das Chaimites no 25 de Abril de 1974 como todos os portugueses da minha geração, só mais tarde, primeiro em Mafra pelos anos 80, mas sobretudo em 1995 e 1996 em S. Jacinto e na Bósnia, tive contacto directo com estas viaturas. Despertaram-me a curiosidade e atenção, nem sempre pelos melhores motivos, mas ainda assim não deixei de lhes seguir o rasto. Voltei a vê-las em acção na Bósnia em 1997, 2000, 2004 e no Kosovo em 2007.
Daí para cá a investigação acelerou, tive vários apoios importantes, muitos já referidos neste texto e outros que ainda o serão. A vontade de chegar a um resultado final tanto quanto possível “definitivo” levou-me a prolongar a fase de investigação e continuar a ouvir intervenientes das mais diversas origens, dentro e fora de Portugal, onde muitos e importantes factos desta história se desenrolaram, e, por incrível que possa parecer ainda se desenrolam.
Do Perú, Venezuela, Brasil e Equador na América do Sul, à África do Sul, Guiné Portuguesa, Angola, Moçambique e Líbia em África, da Malásia, Filipinas, Myamar, Tailândia, Irão, e Líbano na Ásia, passando pelos EUA e Canadá na América do Norte, e no “velho continente” por Espanha, França, Alemanha, Reino Unido, Suíça e Bélgica, em todos estes países há “pedaços” da história da Chaimite.
Espero que a leitura seja interessante e…o trabalho continua!
Miguel Silva Machado
Apontamentos sobre a história da
CHAIMITE o primeiro blindado português
«O Sr. Ministro (do Exército) quiz saber se não estaria em condições de fabricar em Portugal, uma viatura semelhante (à V-100 “Commando” da firma americana “Cadillac-Gage”).
…
O Sr. Ministro prometeu, caso aceitasse a proposta, pôr à minha disposição os Estabelecimentos Fabris do Exército, ou outros que escolhesse».
Major de Infantaria (Ref) João Batista de Souza Donas-Bôtto*
Necessidades operacionais em África
Assim nasceu segundo o seu criador o que viria a ser o primeiro veículo blindado produzido em série em Portugal.
Esta V-100 tinha sido escolhida para suprir a necessidade crescente de uma viatura blindada de transporte de pessoal, de rodas, moderna, que se fazia sentir nos teatros de operações em África. O material em serviço era de concepção ultrapassada, muito usado e estava-se à beira da rotura em alguns equipamentos. Mas nem tudo era mau, os militares estavam satisfeitos com o desempenho das AML Panhard mas faltavam-lhes outras gamas de veículos blindados, nomeadamente de transporte de pessoal. Já então a necessidade de protecção do pessoal – contra minas, flagelações, engenhos explosivos improvisados – tão em voga nas actuais “operações de paz” e com acrónimos diversos popularizados pelos media, era uma preocupação dos comandantes no terreno.
Em Julho de 1966 o Chefe do Estado-Maior do Exército, General Luís Maria da Câmara Pina, envia uma mensagem «secreto» aos comandantes militares de Angola, Moçambique e Guiné, a informar que “Apareceu disponibilidade financeira aquisição autometralhadoras AML ou viaturas blindadas transporte pessoal. A fim fundamentar propostas agradecia indicasse prioridade que em seu critério julga estabelecer-se para fins operacionais acerca daqueles materiais podendo apenas adquirir um deles qual conviria comprar primeiro.”(1)
Depois do estudo e planeamento das aquisições de viaturas blindadas de transporte de pessoal, foi feita proposta à tutela. Foram estabelecidos contactos e foi mesmo firmado um contrato preliminar com a fábrica fornecedora nos EUA. Como aconteceu com outros equipamentos militares nesta época, o governo americano não autorizou a concretização do negócio uma vez que Portugal iria empenhar estes meios fora do âmbito NATO.
É então que o Ministro do Exército, Coronel Joaquim da Luz Cunha, através de um colega de curso, convoca para o seu gabinete o Major na situação de Reforma Donas-Bôtto, ligado ao meio empresarial e à venda de material militar, para uma reunião onde faz a proposta que inicia este texto.
Após algumas reticências iniciais e depois de contactos exploratórios com pessoas, militares e civis, que viriam a colaborar no processo, dentro e fora de Portugal, Donas-Bôtto aceita o desafio do Ministro do Exército. É o inicio de uma fascinante história, repleta de vicissitudes, de vitórias e derrotas, que levarão o primeiro veículo blindado produzido em série em Portugal a actuar em condições das mais diferentes possíveis, nos mais improváveis pontos do planeta. Ao serviço das Forças Armadas Portuguesas mas também, como veremos, de outras forças armadas e de segurança… até à actualidade.
Chaimite
Pretendeu Donas-Bôtto com a designação dada, escreveu mais tarde, homenagear uma geração de militares portugueses que haviam combatido em África no final do século XIX: “…Admirei as campanhas de Mousinho e dos seus companheiros, os majores Caldas Xavier, Paiva Couceiro, Aires Ornelas…”. Passados anos dos combates em Moçambique e nomeadamente em Chaimite, o então Alferes Donas-Bôtto constatou quando por lá andou no comando de uma brigada de caça, que foi “…auxiliado por régulos da região de Maputo, feitos por Mousinho, tenentes de 2ª linha” devido “…ao respeito e consideração (conseguidos pela geração de Mousinho), extensivos até ao final da década de quarenta…”.
Servindo-se dos seus contactos nos EUA onde se desloca de imediato, no Brasil – onde aliás tinha residência e interesses – e em Portugal no meio fabril, Donas-Bôtto cria as condições mínimas para iniciar o projecto. Logo em Março de 1967 funda a empresa “BRAVIA SARL, Sociedade Luso-Brasileira de Viaturas e Equipamentos” e em breve, estão concluídos os planos de uma viatura semelhante à V-100 “Commando”.
O primeiro protótipo da Chaimite foi manufacturado nas Oficinas Gerais de Material de Engenharia, em Belém, no então designado «pavilhão Chaimite», com acompanhamento de um engenheiro americano contratado, debaixo de medidas de segurança apertadas e muito segredo. Não só os tempos eram outros e os assuntos militares não eram propriamente discutidos na praça pública como o país estava em guerra e mesmo alguns dos tradicionais amigos de Portugal já o não eram.
Mais tarde este engenheiro que se fazia acompanhar por operários especializados, foi julgado e condenado nos EUA, visto ter colaborado neste processo não-oficial de “transferência de tecnologia” para Portugal.
Este protótipo fica pronto e o Exército encomenda 28 viaturas ainda em 1967. Apesar de alguma desilusão – o fabricante naturalmente queria vender mais – os cascos das Chaimites começam a ser fabricados na SOREFAME (Sociedades Reunidas de Fabricações Metálicas), que se dedicava à construção de locomotivas e carruagens para os caminhos-de-ferro. Seguia-se a montagem que decorria nas OGME, disponibilizadas para o efeito.
Mas o desenrolar da construção e montagem não decorria com a celeridade desejada e face a nova encomenda de 56 unidades para o Exército, em 1968, agora garantida pelo Secretariado Geral da Defesa Nacional e com a perspectiva de vendas no mercado internacional, a BRAVIA procura instalações próprias. Nesse sentido compra a totalidade do capital da “VM – Veículos Motorizados, SARL”, no Porto Alto (Samora Correia), firma que se dedicava ao fabrico de veículos para fins industriais e agrícolas. A área coberta é significativamente aumentada e criam-se as condições para ali fabricar e montar as Chaimites.
No final de 1970 estavam recepcionadas pelo Exército 18 viaturas V-200 Chaimite e reinava no ramo alguma expectativa sobre a evolução do desempenho operacional da viatura. Havia mesmo debate interno sobre qual a melhor organização das unidades que deveriam utilizar a V-200, muito dependente dos resultados em campanha. “Julga-se, no entanto, que embora as viaturas Chaimite possam ser feitas no país, as questões levantadas por Sua Ex.ª o Ministro da Defesa Nacional no despacho transcrito em 4. ainda não estão suficientemente esclarecidas, porquanto as viaturas blindadas Chaimite ainda não foram «testadas» em combate”(2), refere em documento «secreto» o Chefe da Repartição do Gabinete do CEME, coronel Manuel Nicolau de Abreu Castello-Branco, em Dezembro de 1970.
As questões a que o Ministro da Defesa Nacional aludia no referido ponto 4. diziam essencialmente respeito à opção entre adquirir mais viaturas blindadas AML no estrangeiro, ou comprar mais Chaimites nas versões armadas previstas em catálogo pela BRAVIA. Colocava o ministro a questão de saber se as Chaimites sendo muito mais baratas, podiam efectivamente cumprir as missões de que as nossas tropas lhes destinariam; se estariam fabricadas em tempo; se estaria assegurada a manutenção.
Nesta altura ainda reinava uma grande incógnita sobre a eventual normalização das viaturas blindadas de rodas no Exército. Tal parecia ser o desejo do Ministro da Defesa. No entanto não desejaria avançar para a solução Chaimite nas suas diferentes versões e consequente retirada do material “AML Panhard” e “Fox”, sem primeiro ter a garantia que a viatura V-200 correspondia ao desejado pelos utilizadores, as forças em campanha nas três frentes de guerra anti-subversiva.
Emprego operacional em África
No final do ano de 1970 as primeiras Chaimites são enviadas para a Guiné para serem testadas na guerra. Serão 4 na versão V-200 Auto Transporte de Pessoal Blindado (designação comercial dada pela BRAVIA), aquilo a que poderemos chamar a versão base, e 1 Cadillac-Gage V-100 “Commando”. Esta viatura “made in USA” que chegou a Portugal fruto dos contactos internacionais de Donas-Bôtto e da sua determinação que para muitos que o conheceram chegava a raiar o inimaginável, foi equipada com uma torre e canhão de 90mm de origem belga. No fundo era uma viatura de teste que deveria dar origem à versão da Chaimite V-400, designada Carro de Combate Ligeiro pelo fabricante. Como curiosidade note-se que este canhão, depois de utilizado pontualmente na Guiné e de ter regressado a Portugal, permaneceu na BRAVIA até ao seu encerramento, mais de 20 anos depois. As V-200 que rumaram à Guiné foram armadas com metralhadoras HK21 7,62mm que estavam em serviço no Exército.
Segundo nos relata o Major de Cavalaria João Luíz Mendes Paulo num interessantíssimo livro publicado em 2006(3), esta estreia da Chaimite não correu do melhor modo. Testadas brevemente em Alcochete antes da partida, pressionados pela urgência das necessidades que se faziam sentir na Guiné, vários defeitos foram detectados nas viaturas, nomeadamente a nível do armamento.
Carlos de Sousa Azevedo, Alferes Miliciano de Cavalaria que se encontrava na Guiné – na mesma unidade de Mendes Paulo – e fora nomeado para frequentar o primeiro curso de Chaimite no Regimento de Cavalaria 7 – a primeira unidade do Exército que as recebeu – reforça as avaliações do Major: “As novas viaturas criaram-nos enormes expectativas dado o estado lamentável em que se encontrava o nosso material blindado na Guiné e ainda a sua escassez. A primeira decepção ocorreu com as metralhadoras HK 21. Não eram claramente as armas para aquele tipo de suporte. Concebidas para operar com bipé, «ao alto», mesmo com o adaptador que havia sido criado, havia problemas.”
Note-se aliás que o próprio Donas-Bôtto aconselhou o uso de outras metralhadoras que não as HK21 e tanto assim foi que o primeiro manual elaborado pela BRAVIA para a V-200 previa diversos tipos de metralhadora de torre, mas não a HK21.
Os problemas encontrados e que tinham resolução lá se foram tentando ultrapassar e as viaturas permaneceram em serviço na Guiné até à Independência.
Emboscadas na Guiné
As Chaimites na Guiné, empregues sobretudo em escoltas em itinerários foram alvo de várias emboscadas e algumas com consequência fatais para os ocupantes. Além da referida no livro “Elefante Dundum” em Março de 1974 (e por nós no “Jornal do Exército”), já antes em 1972 a “V-400” foi atingida e de seguida evacuada para Portugal e em 1973 outra V-200 foi atacada e chegou mesmo a ser perfurada pelas munições do inimigo. Todas estas situações foram objecto de relatórios detalhados sobre o comportamento das viaturas e, ao contrário do que Donas-Botto refere em vários documentos, as conclusões não foram muito abonatórios para ambas.
Quanto a esta viatura com o canhão, continua Carlos Azevedo, “era na realidade melhor que a Chaimite mas também não a tivemos lá muito tempo. Ainda foi empregue em algumas missões – foi usada na reacção a uma emboscada com sucesso – mas em breve regressou à BRAVIA. Apesar disso ficou-nos a sensação que a arma quando abria fogo destabilizava a viatura e dificultava a precisão do tiro.”
Angola e Moçambique
De acordo com as encomendas nacionais feitas à BRAVIA – 84 V-200 – o EME faz um detalhado estudo para a sua distribuição pelas unidades das “Províncias Ultramarinas” e da “Metrópole”. No entanto poucas Chaimites acabam por chegar a pisar solo africano.
Além das 4 que serviram na Guiné a partir de 1970 a Moçambique, ao porto da Beira chegaram 3 V-200 em finais de 1972. Estas viaturas estariam destinadas numa primeira fase a reforçar a capacidade portuguesa de proteger as chamadas “cargas críticas” para Cabora Bassa. O então Alferes Miliciano de Cavalaria Carlos Vieira, embora não as tenha operado, recorda-se de as ver e fez-se mesmo fotografar junto a uma em Vila Pery (actual Chimoio).
Em Angola os “Dragões”, ou melhor a sua unidade em Luanda, recebem e operam 7 viaturas V-200. As Chaimites ainda executam trabalho operacional quer nas escoltas aos movimentos logísticos quer em operações autónomas tendo sido, segundo relatos de militares dos Dragões, sujeitas a algumas flagelações, sem consequências. Neste período em Angola a manutenção destas viaturas não apresentou grandes problemas. “A realidade é que muitas vezes exigia-se da viatura mais do que aquilo para que ela fora prevista, mas em termos de manutenção nunca tivemos problemas, quer de fornecimento de sobressalentes, quer outros.” Diz-nos o Capitão SM na reforma, Armindo Antunes, ao tempo sargento mecânico chefe da oficina dos “Dragões” em Luanda. Claro que algumas limitações da viatura foram detectadas, mas nada que as impedisse de cumprir as missões. A questão dos semi-eixos que partiam quando sujeitos a grande esforço e das embraiagens que se deterioravam, eram sem dúvida os problemas mais frequentes.
Na altura do processo de descolonização as viaturas foram empregues várias vezes em Luanda em acções de manutenção da ordem pública e estiveram operacionais até 10 de Novembro de 1975. “Depois do último arriar da Bandeira Nacional na fortaleza de S. Miguel, a coluna auto fortemente armada, composta por pára-quedistas, fuzileiros e todas as viaturas blindadas dos Dragões, dirigiu-se para o porto de Luanda, viaturas completamente municiadas com as peças viradas para a cidade”, recorda ainda hoje com emoção Armindo Antunes que havia feito toda a sua vida militar até essa altura em Angola (1961 a 1975). Chegados ao Porto houve que retirar milhares de munições das viaturas, deixá-las no cais, embarcar as viaturas em batelões e rumar ao “Uíge” que estava ao largo.
Assim terminou, em 10 de Novembro de 1975, o ciclo das Chaimites na antiga África Portuguesa.
* As passagens deste artigo referidas como da autoria do Major Donas-Bôtto, são parte de um conjunto de textos assinados pelo próprio, cujas cópias se encontram na posse do autor, e que foram endereçados a várias instituições, nomeadamente ao Ministério das Finanças, Provedor de Justiça, Tribunal Judicial de Benavente e Presidência da República.
Nota final: O Exército Português, bem assim como os cliente internacionais da BRAVIA, apenas utilizaram V200, as únicas produzidas pela fábrica. Embora esta divulgasse projectos com outras designações (V-300, V-400 V-500, V-600, V-700, V-800, V-900 e V-1000), nunca se concretizaram para produção em série. As viaturas que o Exército Português transformou para porta-misseis SS-11 e morteiro 81mm – por vezes erradamente designadas – nunca adoptaram estas designações da BRAVIA, mas mantiveram a de V-200 que eram na origem e a do novo sistema de armas:
– AUTO BLINDADO PORTA LANÇA MÍSSEIS CHAIMITE D 4×4 M/67-87 V-200;
– AUTO BLINDADO PORTA MORTEIRO 81 mm CHAIMITE D 4×4 M/67-87 V-200.
(1) In Arquivo Histório Militar, EME , Lisboa
(2) Idem nota anterior
(3) “Elefante DunDum”, ISBN: 989-8024-01-1
Leia aqui a 2.ª parte deste artigo:
CHAIMITE V-200 (Parte II, Conclusão)
E mais artigos no “Operacional” relativos à Chaimite:
KOSOVO: A ÚLTIMA MISSÃO DA CHAIMITE
KOSOVO: PORTUGUESES IMPULSIONAM NOVO CONCEITO DE EMPREGO TÁCTICO
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