AS FORÇAS ARMADAS E A SEGURANÇA INTERNA
Por Miguel Machado • 6 Jan , 2010 • Categoria: 02. OPINIÃO PrintO Coronel Gil Prata aborda esta questão que está na ordem do dia e nem sempre tem sido tratada publicamente com a devida profundidade. Não se está aqui perante uma opinião de “facção” nem eivada de preconceito como se verá. A participação das Forças Armadas em missões de segurança dentro das fronteiras nacionais é abordada com realismo e fundamentada quer em termos legais quer em práticas correntes, por todos consideradas tão naturais, que por vezes são esquecidas. Gil Prata defende que “Está na altura de se ultrapassarem complexos… …geradores de ambiguidades incompreensíveis” e explica porquê.
AS FORÇAS ARMADAS E A SEGURANÇA INTERNA
1. A Segurança é um direito constitucionalmente consagrado e constitui, juntamente com a Justiça e o Bem-estar, um dos três fins do Estado Social. Diremos mesmo que viver em segurança é uma necessidade básica dos cidadãos, que é um direito destes e uma garantia a ser prestada pelo Estado por ter celebrado o contrato social com os cidadãos.
Neste texto pretendemos analisar o alcance do conceito actual de ameaça externa, bem como saber se, fora deste âmbito, é admissível a eventual intervenção das Forças Armadas na segurança interna do Estado e em que medida pode ser feita essa intervenção.
Até à década de 90 do século anterior, a segurança era analisada no âmbito da confrontação entre Estados, ou seja, no sentido que actualmente é dado ao conceito de defesa nacional. Gradualmente, o conceito de segurança alargou-se passando a abranger, para além do militar, os campos político, económico, social, ambiental e de direitos humanos. Assim, as medidas que visam a segurança são de largo espectro, envolvendo, também, a protecção civil, a segurança pública, as políticas económicas, de saúde, educacionais, ambientais e as de garantia das instituições democráticas e da legalidade. No entanto, a defesa nacional permanece como missão principal das Forças Armadas, sendo estas o seu instrumento militar exclusivo.
O fim da Guerra Fria determinou a emergência de uma nova ordem internacional, mas o fim do confronto Leste-Oeste e do equilíbrio existente determinou, por sua vez, a emergência de um novo quadro de segurança internacional, marcado por um novo tipo de ameaças e riscos e um novo tipo de conflitos.
São cada vez menos as ameaças e os conflitos tradicionais de natureza inter-estatal e surge cada vez mais um novo tipo de conflitos infra-estatais e ameaças e riscos transnacionais. Podem ser conflitos de raiz étnica ou provocados por fundamentalismos religiosos; são também riscos ambientais, catástrofes humanitárias e as epidemias, que ameaçam a vida de milhões de seres humanos; são, ainda, as ameaças da criminalidade organizada e do terrorismo transnacional. Algumas delas são ameaças sem rosto, desterritorializadas, de actores não estatais que colocam desafios estratégicos à segurança internacional. O 11 de Setembro em Nova Iorque e Washington e o 11 de Março em Madrid marcam de forma trágica esse fenómeno de transnacionalização da ameaça e, correspondentemente, da segurança.
Neste novo quadro, o conceito de Segurança registou alterações fundamentais: deixou de ser, exclusivamente, a segurança dos Estados, passando a importar, também, a segurança das pessoas num quadro de Segurança Humana; e a resposta contra riscos, ameaças e conflitos transnacionais teve de passar a basear-se, essencialmente, na cooperação internacional, num quadro de Segurança Cooperativa.
A segurança, em linhas gerais, é a condição em que o Estado, a sociedade ou os indivíduos não se sentem expostos a riscos ou ameaças, enquanto defesa é a actividade efectiva para se obter ou manter o grau de segurança desejado. No entanto, não há ainda doutrina assente relativamente aos conceitos de segurança e de defesa nacionais.
Frequentemente segurança e defesa têm sido usados como realidades coincidentes, o que não é correcto. Elevado grau de segurança pode ser alcançado apesar de poucos recursos ou de instrumentos mínimos da defesa. É a situação de muitos Estados europeus que, apesar do desinvestimento na defesa, mantêm um grau de segurança elevado. Essa situação é possível porque foram criadas Alianças e celebrados Tratados entre Estados, e é demonstração da importância da segurança cooperativa.
Podemos, assim, distinguir entre segurança e defesa considerando aquela como um estado desejado ou como objectivo a atingir pelo Estado e esta como conjunto de meios ou politicas que prosseguem aquele fim. Nesta distinção o estado de segurança não se consegue unicamente com a defesa mas também com a actividade de segurança interna. Para melhor analisarmos este tema convém ter em mente alguns conceitos que aceitamos, que configuram o enquadramento da política de defesa e segurança.
Admitimos Segurança Nacional como a condição da Nação que se traduz pela permanente garantia da sua sobrevivência em paz e liberdade, assegurando a soberania, independência e unidade, a integridade do território, a salvaguarda colectiva das pessoas e bens e dos valores espirituais, o desenvolvimento normal das tarefas do Estado, a liber¬dade de acção política dos órgãos de soberania e o pleno funcionamento das instituições democráticas.
Na falta de conceito legal, entendemos a Defesa Nacional como o conjunto de medidas tanto de carácter militar como político, económico, social e cultural que, adequadamente coordenadas e integradas, e desenvolvidas global e sectorialmente, permitem reforçar a potencialidade da Nação e minimizar as suas vulnerabilidades, com vista a tomá-la apta a enfrentar todos os tipos de ameaça que, directa ou indirectamente, possam pôr em causa a Segurança Nacional. Aquela pode ser entendida enquanto sistema organizativo e funcional que concorre para a consecução da segurança nacional como fim de Estado ou enquanto actividade instrumental de segurança externa da República.
E Segurança Interna, nos termos legais, é a actividade desenvolvida pelo Estado para garantir a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas, proteger pessoas e bens, prevenir e reprimir a criminalidade e contribuir para assegurar o normal funcionamento das instituições democráticas, o regular exercício dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos e o respeito pela legalidade democrática.
Atendendo a estes conceitos, verificamos que a actividade de defesa nacional e a actividade de segurança interna visam, cumulativamente, a obtenção de um estado de segurança nacional. Podemos ainda dizer que a actividade de defesa nacional compete essencialmente às Forças Armadas e a actividade de segurança interna compete essencialmente às polícias. Para melhor entendermos a razão da fronteira que se criou entre os conceitos de segurança interna e da defesa nacional vamos analisar a sua evolução em termos constitucionais.
No Estado Novo a Instituição militar desempenhava um papel relevante na ordem política interna, não só pela natureza e origem do regime mas também devido á problemática colonial. Assim, a Constituição Portuguesa de 1933 cometia às Forças Armadas as tarefas de manutenção da ordem e paz públicas, pelo que, para além de instrumento de defesa, as Forças Armadas eram ainda garante da segurança, no âmbito interno, quando e se necessário.
Com a revolução de Abril, nova Constituição da República Portuguesa foi aprovada e a sua versão originária, de 1976, tinha o seu Titulo X com a epígrafe “Forças Armadas”. No art.º 273.º atribuía a estas as funções de defesa contra inimigo externo, de garantia da independência nacional e da integridade territorial, mas também as de garantia da ordem interna e da unidade de Estado. As Forças Armadas eram igualmente responsáveis por garantir o regular funcionamento das instituições democráticas, pela transição pacífica da sociedade para a democracia e por colaborarem nas tarefas de reconstrução nacional.
Podemos, assim, dizer que as Forças Armadas eram responsáveis pela segurança nacional, segundo o conceito que lhe atribuímos, ou então que havia um conceito amplo de defesa nacional coincidente com o conceito apresentado de segurança nacional.
Porém, em 1982 este conceito iria sofrer uma ruptura. A 1.ª revisão constitucional (Lei Constitucional 1/82) veio introduzir, nesta matéria, profundas alterações, atribuindo à Polícia a responsabilidade pela segurança interna (art.º 272.º) e remetendo os militares para os quartéis, com a salvaguarda de poderem contribuir para o apoio à valorização social das populações, contribuindo para a satisfação das necessidades básicas das populações, e, em situações de excepção (Estado de Sítio ou de Emergência), intervir na segurança interna para garantia da legalidade democrática.
Esta revisão de 1982 (que extinguiu o Conselho da Revolução e o Movimento das Forças Armadas e criou o Tribunal Constitucional) consagrou o conceito de Defesa Nacional (art.º 273.º) e parece ter restringido a função das Forças Armadas a pouco mais que o instrumento militar da defesa nacional, ficando a segurança interna garantida pelas forças de segurança.
No entanto, no mesmo ano foi publicada a Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas (LDNFA), segundo a qual o conceito de Defesa Nacional abrange as actividades militares mas não só. Abrange também outros sectores não militares que são igualmente relevantes em matéria de segurança interna, para os quais não existe a distinção artificial entre conceitos de defesa nacional e de segurança nacional.
Agora perguntamos: devemos considerar o conceito de Defesa Nacional agarrado apenas às ameaças e agressões externas? E qual o alcance actual do conceito de ameaça externa?
Algumas entidades se têm referido recentemente à ambiguidade existente quanto à intervenção de forças ou unidades militares das Forças Armadas na segurança interna.
O anterior Ministro da Defesa Nacional, Dr. Nuno Severiano Teixeira, referia numa sua intervenção que, face às ameaças e aos riscos com que hoje as nossas sociedades se debatem, era absolutamente obrigatório que encarássemos a segurança de um ponto de vista cooperativo e numa perspectiva integrada de segurança e defesa, à semelhança do que vários dos nossos aliados na OTAN e na UE já fazem. Concordando com estas declarações, o Comandante-Geral da GNR, Gen. Nelson Santos, numa afirmação que, injustamente, foi alvo de tanta celeuma, referiu que se torna desejável que todos os agentes que podem prevenir e fazer inflectir estas novas ameaças actuem com políticas dirigidas ao combate e contenção do fenómeno, não remetendo para as forças e serviços de segurança a exclusiva responsabilidade pelo grau de crescimento ou diminuição deste flagelo.
O Gen. Pinto Ramalho, actual Chefe de Estado-Maior do Exército (CEME), afirmou numa intervenção recente que “os meios policiais são insuficientes para dar resposta às novas formas de conflitualidade, e o Exército tem de cooperar”. E acrescentou que ‘”actualmente há uma fronteira difusa entre a segurança interna e externa. E há capacidades instaladas no Exército para responder a um determinado nível ou grau de ameaça. A primeira linha de resposta deve estar na PSP e na GNR, mas poderemos estar numa circunstância em que isso não chegue e então, naturalmente, o Exército poderá dar resposta, segundo o enquadramento constitucional”.
Ainda na opinião do ex-CEME, Gen. Loureiro dos Santos, é necessária uma revisão da Constituição, pois ‘”em caso de ameaças transnacionais podem surgir situações de indefinição quanto ao emprego de meios militares”.
Na verdade, actualmente, os Estados confrontam-se com a proliferação de ameaças de novo tipo que não o clássico, de natureza transnacional e caracterizado por novos riscos mais difusos. Estas novas ameaças ou agressões não assumem uma natureza militar do tipo clássico. Ora, em 1982, não era previsível esta alteração no sistema internacional, no que respeita aos seus actores e às ameaças com que agora se defronta. Assim, onde a Constituição refere agressões ou ameaças externas hão-de caber nesta expressão não só as clássicas mas também as novas realidades, justificando-se uma interpretação actualista destes conceitos. É que, se não fizermos uma actualização dos conceitos constitucionais adoptados em 1982, numa situação internacional que pouco tem a ver com a de hoje, teríamos então igualmente de entender que as forças de segurança estão impedidas de participar em operações humanitárias ou de apoio à paz fora do território nacional, porque essas missões constam apenas nas incumbências previstas constitucionalmente para as Forças Armadas.
Assim, é nosso entendimento, admitindo embora outras opiniões, que o facto de a Constituição não fazer referência expressa ao emprego das Forças Armadas na área da segurança interna em apoio às forças de segurança, não significa que não seja admissível esse emprego. Pelo que, no âmbito de actuação das Forças Armadas devem ser compreendidas também as ameaças cujas acções são desenvolvidas no interior do Estado, mas cuja origem está no exterior. Trata-se da vertente interna da defesa nacional que se distingue de segurança interna pela natureza externa da ameaça. Pelo que, assim o entendemos, para fazer face a uma ameaça transnacional, pode ser usado o instrumento militar complementarmente ao instrumento policial.
Tanto na versão de 1982 da CRP como na actual, incumbe às Forças Armadas a defesa militar da República. Ora, desta expressão não parece retirar-se que as Forças Armadas estão limitadas unicamente a ser componente militar da Defesa Nacional mas, tão apenas, que o instrumento militar de defesa nacional são as Forças Armadas em exclusivo. Aliás, tal encontra-se expresso no art.º 22.º da actual Lei de Defesa Nacional. E é por isso que a Constituição alarga as missões das Forças Armadas a outros âmbitos, nomeadamente ao apoio à política externa, ao apoio à política interna de protecção e socorro, à valorização social das populações e à intervenção durante estados de excepção declarados. Prevê, assim, expressamente a necessidade de emprego das Forças Armadas para garantir a segurança durante o período de decretação de Estado de Sítio ou de Emergência e, nesta situação, as Forças Armadas não operam no âmbito da defesa nacional e sim no da defesa da ordem constitucional democrática e da segurança interna, nos termos dos art.ºs 19.º e do n.º 6 do art.º 275.º da CRP.
Cremos que, se a Constituição e a lei permitem que dada a intensidade da ameaça as Forças Armadas intervenham na segurança interna, para garantir a ordem constitucional democrática, fazendo-o com controlo das forças de segurança e das autoridades civis se necessário, não se entenderia uma restrição ao emprego de meios militares em reforço das forças de segurança, em actividades que não se enquadram na estrutura nem no quadro de intervenção da defesa nacional.
Isto é, no âmbito dos Estados de Excepção e principalmente do Estado de Sitio, as Forças Armadas, em obediência ao poder político, intervêm com a sua estrutura e cadeia de Comando e estado-maior no comando e controlo das Operações, apesar de ser uma intervenção no âmbito, embora não exclusivo, da segurança interna. Porém, pode haver situações de ameaças e riscos para a segurança interna que não justifiquem a decretação de Estado de Excepção mas que exijam a intervenção de forças ou unidades militares em apoio ou reforço das forças de segurança. Consideramos que, porque nestas situações não actuam no quadro da defesa nacional, estas forças devem actuar sob controlo das forças de segurança.
Em nosso entender, o recurso a meios militares em situação de necessidade pública que não implique, todavia, a declaração de Estado de Excepção pode ser possibilitada em reforço dos meios policiais, nos termos do n.º 6 do art.º 275.º, porque a segurança se situa entre as necessidades básicas da população. Esta intervenção será determinada pelas autoridades governamentais e sob a sua direcção, porque compete a estas, nos termos constitucionais, praticar todos os actos e tomar todas as providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades colectivas (art.º 199.º). E, como já referimos anteriormente, a segurança é uma necessidade colectiva e um direito dos cidadãos.
E se a Constituição permite a intervenção das Forças Armadas, com controlo das autoridades civis e das forças de segurança, em situação de perigos graves para o Estado e para a segurança das populações, não poderá deixar de permitir a intervenção de forças militares em reforço das forças de segurança e sob controlo operacional destas em situações cuja intensidade ou gravidade da ameaça não justifique a declaração de Estados de Sítio.
Pelo que, em casos de insuficiência ou de falência das forças de segurança, por exemplo no combate ao terrorismo, crime organizado ou controlo de fronteiras contra a imigração ilegal e tráfico de droga, parece pouco inteligente e insensato o não emprego de elementos ou Unidades militares das Forças Armadas em acções de segurança interna. Entendemos que, nestas situações, qualquer intervenção de recursos policiais e militares deverá ter em conta a necessidade, a subsidiariedade e a proporcionalidade destes recursos.
Assim, se as forças de segurança são suficientes para debelar tal ameaça não se justifica a intervenção das Forças Armadas; se a ameaça excede a capacidade de resposta das forças de segurança, a bem do interesse nacional, exige-se a intervenção de meios militares e, em último recurso, das próprias Forças Armadas, com a respectiva estrutura de comando e estado-maior. Porém, neste último caso, exige-se a decretação prévia do Estado de Excepção.
Outra questão que podemos colocar será relativa ao modo como se deverá processar o emprego de meios militares das Forças Armadas em complemento das forças de segurança.
Caso ocorram perigos graves que ponham em causa a ordem constitucional democrática e exijam a adopção de medidas excepcionais deve prevalecer o instrumento militar no combate a essa ameaça, pelo que deve ser decretado o Estado de Sítio e, assim, as forças de segurança passam a ser controladas pelas Forças Armadas. Nesta situação, as Forças Armadas intervêm na segurança interna para garantia da legalidade democrática. Missão que, não fossem os riscos graves à ordem constitucional, competiria às forças de segurança.
Caso não se verifiquem aqueles pressupostos, e depois de determinação do poder político, a intervenção das Forças Armadas em reforço das forças de segurança deverá ser articulada entre o Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna (SGSSI) e o Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, nos termos do art.º 35.º da Lei de Segurança Interna (LSI). A força militar a intervir ficará sob controlo operacional do SGSSI, quando este exerça a sua competência de comando operacional sobre as forças de segurança, ou do comandante da Unidade da força de segurança territorialmente competente (o Comandante nomeado como Gestor do Incidente). Esclarecemos que, quando as forças militares estão sob controlo operacional do SGSSI ou do comando da força de segurança, estes não poderão determinar missões à unidade militar, mas apenas coordenar e controlar a actividade desta no cumprimento da missão previamente fixada.
Convém recordar que o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA) integra o Conselho Superior de Segurança Interna, tendo este por competência a assistência ao Primeiro-Ministro na adopção das providências necessárias em situação de grave ameaça à segurança interna. Porém, não existe previsão legal para que um representante do CEMGFA ou do Chefe de Estado-Maior do ramo respectivo integre o Gabinete Coordenador de Segurança, se a situação grave o justificar, sempre que as forças de segurança sejam reforçadas com meios ou Unidades militares das Forças Armadas.
2. Voltando atrás, quando a Constituição diz que incumbe às Forças Armadas a defesa militar da República, não limita o emprego destas ao âmbito da defesa nacional. E daí o facto de atribuir missões que não se enquadram neste conceito. Aliás, o legislador constituinte não poderia prever, em 1982, as ameaças assimétricas que mais tarde passariam a ser tão relevantes. Nessa altura as ameaças menores eram essencialmente um problema de polícia porque se consideravam ameaças domésticas. Como exemplo, nessa década surgiu o terrorismo doméstico das “FP 25”, cujo combate e contenção esteve a cargo das polícias, apesar da colaboração das Forças Armadas, através da sua Divisão de Informações Militares, por inexistência, então, de serviços de informações internos. Aliás, foi este e outros casos de terrorismo ocorridos na mesma década que tornaram evidente a necessidade de se legislar sobre a Segurança Interna e sobre o Sistema de Informações da República Portuguesa.
Verificamos que, em quase todas as circunstâncias, as ameaças têm actualmente uma vertente interna e outra externa. Assim, em consequência delas dificilmente se poderem distinguir em ameaças internas e ameaças externas, entendemos que as ameaças à segurança interna são essencialmente uma questão das forças e serviços de segurança, mas não estritamente, tal como a concretização de uma ameaça externa não constitui estritamente uma questão militar.
Também o Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN), aprovado em 2003, no que respeita a ameaças relevantes refere que o crime organizado transnacional constitui uma forma de agressão externa e uma ameaça interna que é dirigida contra a vida das pessoas, a autoridade dos Estados e a estabilidade das sociedades. Na verdade todas as ameaças com origem no exterior se reflectem na segurança interna.
Um grupo terrorista financiado do exterior, com materiais e equipamentos fornecidos pelo exterior, que prepara e pratica um atentado internamente com agentes domésticos ou estrangeiros são um problema de segurança externa ou interna?
Esta questão demonstra que a criminalidade organizada de expressão internacional (terrorismo, tráfico de droga ou de pessoas, branqueamento de capitais, etc.) coloca em crise a distinção entre segurança interna e segurança externa. A criminalidade organizada utiliza a lógica e as potencialidades da globalização para o cometimento do crime, podendo acontecer que a ameaça ou agressão externa esteja no interior do país e os seus agentes sejam cidadãos nacionais. O que vem reforçar e tornar oportuno o debate sobre a colaboração das Forças Armadas em missões de garantia da segurança interna.
Em situações de normalidade institucional, a garantia do regular exercício dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos e do normal funcionamento das instituições e da legalidade, por se revelarem no domínio da segurança interna, competem às forças de segurança. No entanto, contra a nova criminalidade as forças de segurança podem não estar em condições de a combater isoladamente, o que justificará a necessidade de articular o emprego de forças militares e policiais.
Porém, será legalmente possível essa colaboração das Forças Armadas sem que haja alteração constitucional do actual conceito de Defesa Nacional e das missões das Forças Armadas?
A actual Lei de Defesa Nacional, que é uma lei reforçada, na al. e) do seu art.º 24.º, veio prever a possibilidade de cooperação das Forças Armadas com as forças e serviços de segurança tendo em vista o cumprimento conjugado das respectivas missões no combate a agressões ou ameaças transnacionais. Passou, assim, a estar legalmente salvaguardada a participação das Forças Armadas em acções de cooperação com as Forças de segurança para debelar ameaças à segurança interna, com origem no exterior.
No entanto, pode verificar-se uma situação de ameaça unicamente interna que, pela sua natureza ou intensidade, torne necessária a intervenção de forças militares das Forças Armadas. Convém não esquecer que actualmente nem se pode definir um estado ou situação de Crise cuja gestão justificasse essa intervenção. É que a legislação existente sobre o sistema nacional de gestão de crises foi revogada com a actual Lei de Segurança Interna, numa evidente confusão de conceitos de crise interna com o de gestão de incidente táctico-policial.
Podemos colocar ainda outra questão: Como entender as intervenções que actualmente são feitas por meios militares em colaboração ou apoio das forças policiais quando, por exemplo, fuzileiros participam em operações policiais na abordagem a embarcações suspeitas de tráfico de droga, ou quando meios aéreos e navais participam no seguimento de embarcações suspeitas?
Estas são intervenções de meios militares em missões de segurança interna e ninguém põe em causa a sua necessidade ou a sua admissibilidade, porque dita o bom senso que, na falta de meios, os órgãos de polícia criminal recorram ao apoio que as Forças Armadas podem prestar.
E as missões que têm sido atribuídas à Marinha e à Força Aérea, em períodos de eventos importantes que decorrem no nosso país, para patrulhar o estuário do Tejo ou a foz do Douro e o espaço aéreo? Não serão elas missões desempenhadas no interesse da segurança nacional, mas de âmbito interno?
E que dizer, ainda, do planeamento classificado existente para fazer face a ameaças representadas por aeronaves sequestradas com reféns civis, onde é estabelecida a cadeia de comando e de tomada da decisão para o caso de ser necessário o seu abate? Então, se não estamos em Estado de Guerra e não foi decretado Estado de Sítio, como justificar tal intervenção de meios militares no âmbito da segurança interna? Não devemos esquecer, também, que esta situação levanta a questão da responsabilidade penal do militar que cumpre essa ordem porque, por imposição constitucional, cessa o dever de obediência quando a sua execução conduz á prática de um crime. E não há duvida que o eventual abate de uma aeronave com reféns sequestrados terá como consequência necessária a morte de civis inocentes.
Ora, estas questões vêm confirmar a falência das teorias que defendem a inadmissibilidade de intervenção de meios militares das Forças Armadas no âmbito da segurança interna. É que esta intervenção é já um facto e é uma questão de bom senso que assim seja.
Também o Exército dispõe de recursos que poderão ser necessários e empregues na segurança interna. A sua capacidade para enfrentar ameaças NBQR não pode ser desprezada fora do âmbito da defesa nacional e podem, ainda, conceber-se situações em que, face ao grau de ameaça definido, se torne necessário o emprego de forças militares na defesa de pontos sensíveis ou de instalações críticas nacionais.
Não há qualquer pretensão das Forças Armadas em substituir as forças de segurança no cumprimento das missões destas, nem se pretende ver forças militares em patrulhamento de ruas ou na detenção de criminosos, como alguns críticos da intervenção das Forças Armadas parecem imaginar. Embora, diga-se em abono da verdade, algumas dessas missões sejam desempenhadas por unidades militares no âmbito das operações de paz que executam, para as quais recebem a instrução e formação devida. Mas, claro, ninguém quer ver as Forças Armadas a fazer o trabalho das polícias e muito menos o querem as Forças Armadas fazer, porque não estão vocacionadas para isso.
No que respeita a capacidades das Forças Armadas, o CEDN estabelece, numa visão realista e pragmática, que deve existir a capacidade para, em colaboração com as forças de segurança, prevenir e fazer face às ameaças terroristas na ordem interna; e a capacidade para participar na prevenção e combate a certas formas de crime organizado transnacional, especialmente o tráfico de droga, o tráfico de pessoas e as redes de imigração ilegal, e para participar na prevenção e combate contra as ameaças ao nosso ecossistema.
O caso é que as Forças Armadas terão de ter capacidade efectiva para colaborar com as forças de segurança e isso exige a previsão de meios e de instrução nesse sentido e planeamento para os diferentes cenários que se possam colocar. Como é sobejamente conhecido, os militares preparam-se e elaboram sempre planos de contingência para as situações prováveis de intervenção. E isso só é possível quando as orientações e definição de missões são claras. E esta clareza depende das entidades com tutela sobre as Forças Armadas.
Está na altura de se ultrapassarem complexos que eram justificados em 1982, mas que na actualidade e face às ameaças existentes já não fazem sentido e são geradores de ambiguidades incompreensíveis.
Gil Prata
Cor/Paraq (Res)
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