A NOVA ORGÂNICA DA GNR
Por Miguel Machado • 22 Fev , 2010 • Categoria: 02. OPINIÃO PrintQuem escreve hoje no Operacional sem “papas na língua” sobre a recente reorganização pela qual a GNR está a passar é um profundo conhecedor desta força militar. Carlos Manuel Gervásio Branco, coronel de Infantaria da GNR, 54 anos de idade, iniciou a sua carreira militar em 1976 e é actualmente Juiz Militar nas Varas Criminais de Lisboa.
Prestou serviço em várias unidades do Exército e da GNR, nomeadamente: na Academia Militar e no antigo Instituto de Altos Estudos Militares, onde exerceu funções docentes; comandante dos Grupos Territoriais da GNR de Portalegre e de Faro; director de instrução da Escola Prática da Guarda. Carlos Branco é natural de Elvas, casado, licenciado em Direito pela FDL e pós-graduado em Estudos da Paz e da Guerra pela UAL.
Colaborador regular de várias publicações militares, como a revista “Pela Lei e Pela Grei” ou a “Revista Militar”, é autor dos livros “Desafios à Segurança e Defesa e os Corpos Militares de Polícia”, e “Organização das Forças e Serviços de Segurança”, espaços onde a problemática da natureza da “Guarda”, a sua organização ao longo da história e as comparações com forças congéneres são uma constante. Bem-vindo ao Operacional Coronel Carlos Branco!
A NOVA ORGÂNICA DA GUARDA NACIONAL REPUBLICANA
Advertência
O texto que se segue tem por base o artigo publicado na Revista “Pela Lei e Pela Grei” com o mesmo título, entretanto revisto e resumido para publicação online.
Introdução
A nova estrutura orgânica da Guarda Nacional Republicana, implementada a partir do início de 2009, decorre da aprovação da lei nº 63/2007, de 6 de Novembro e da subsequente legislação regulamentar.
Sobre a lei em si mesma, apenas referir que foi o culminar de um conturbado processo legislativo que entre outros aspectos, contou com um veto presidencial.
A estas premissas há a acrescer a pouca atenção dada pelo legislador ao facto da GNR ser um Corpo Militar, o que não foi minimamente tido em consideração, com os consequentes desajustamentos derivados de tal opção.
Foi neste pano de fundo que se implementou a nova estrutura orgânica da Guarda.
Na fase de concretização foi necessário recorrer a um redobrado e imaginativo esforço de, por um lado, tornar exequível e funcional uma estrutura cujo processo geracional foi no mínimo conturbado, e por outro, compatibilizar no respeito pela lei, a nova orgânica com os princípios enformadores da organização militar.
O Comando
O Comando da Guarda passou a ser constituído pelo comandante-geral e 2º comandante-geral, agora ambos tenentes-generais e pelos Órgãos Superiores de Comando e Direcção (OSCD) que são os três comandos funcionais. Estes, no âmbito da autoridade técnica, são responsáveis e detém as competências para administrar os assuntos das respectivas áreas, relativamente a todas as unidades, estabelecimentos e órgãos, dentro dos conceitos e normas gerais definidas pelo comandante-geral.
O Comando Operacional (CO), o Comando da Administração dos Recursos Internos (CARI) (pessoal, logística e finanças), e o Comando da Doutrina e Formação (CDF), vieram substituir o estado-maior coordenador e o estado-maior técnico da anterior estrutura (1), articulando-se em direcções de serviços, divisões e repartições.
Assim, as seis repartições do estado-maior coordenador e as doze chefias de serviço, do estado-maior técnico, deram lugar a doze direcções de serviço e a quarenta divisões ou equivalente (2) .
O CO é comandado por um TGeneral, o CARI e o CDF, por MGenerais, numa distribuição que a lei não explícita, nem fundamenta.
As direcções, as divisões e as repartições, são dirigidas e chefiadas respectivamente, por coronéis, tenentes-coronéis e majores, com a ressalva para as divisões de carácter técnico que poderão também ser chefiadas por coronéis.
Inspecção, órgãos de conselho e de apoio
Na directa dependência do comandante-geral, mantêm-se a Inspecção da Guarda que deixa de se designar por inspecção-geral, agora dirigida também por um tenente-general; o Conselho Superior da Guarda (CSG) que mereceu uma alteração substancial no seu funcionamento, passando a reunir em composição restrita, apenas com o comandante e o segundo comandantes-gerais, o inspector da Guarda, os comandantes funcionais e o comandante da Escola da Guarda, ou em composição alargada, numa configuração semelhante à anterior, mas com a particularidade de sempre que o assunto a tratar verse promoções, só poderem participar na discussão e votação, o pessoal de graduação igual ou superior à do posto para o qual a promoção se deve efectuar.
Esta é sem dúvida, a reparação de um grave erro cometido em 2000, consequência de um despacho do MAI (3) que permitia que inferiores hierárquicos interviessem nos processos de promoção dos superiores.
Como órgão ex-nuovo, foi criado o Conselho de Ética, Deontologia e Disciplina (CEDD), órgão de consulta do comandante-geral em matéria de justiça e disciplina, constituído por membros por inerência e por membros eleitos, estes últimos, 3 oficiais, 3 sargentos e 5 guardas.
Aqui, ao contrário do disposto para Conselho Superior da Guarda e não obstante nesta sede, se tratarem assuntos relativos à ética militar, nada foi prescrito no sentido de impedir que inferiores hierárquicos discutam a aplicação de sanções a superiores, numa completa subversão dos princípios da disciplina e da hierarquia.
Na dependência directa do comandante-geral e para além do seu gabinete pessoal, passaram a estar a Direcção de Justiça e Disciplina (DJD); a Divisão de Planeamento Estratégico e Relações Internacionais (DPERI) e a Divisão de Comunicação e Relações Públicas (DCRP).
Como novidade que sob o ponto de vista da organização militar, se pode considerar extravagante, foi criada a Secretaria-Geral da Guarda (SGG) que pelas atribuições e competências que lhe foram adstritas, será tratada mais à frente no capítulo dedicado aos apoios. Dada a incongruência da designação desta “Secretaria-Geral” e face às funções atribuídas ao respectivo chefe que como referimos anteriormente, é o comandante do Comando-Geral, afigura-se mais digno e militarmente mais adequado, passar a designá-lo apenas, por comandante do Comando-Geral.
O Sistema de Forças
De uma estrutura assente em seis Brigadas e dois Regimentos, o novo Sistema de Forças complexizou-se numa proliferação de unidades com designações pouco consentâneas com a organização militar, de natureza e escalões diferenciados, cujo racional não é fácil compreender.
Assim, as unidades de reserva, os Regimentos de Infantaria e de Cavalaria, deram origem a duas grandes unidades de escalão brigada, a Unidade de Intervenção (UI) e a Unidade de Segurança e Honras de Estado (USHE), perdendo-se à letra da lei à polivalência de ambas.
A UI é uma unidade de escalão brigada, especialmente vocacionada para as missões de manutenção e restabelecimento da ordem pública, resolução e gestão de incidentes críticos, intervenção táctica em situações de violência concertada e de elevada perigosidade, complexidade e risco, segurança de instalações sensíveis e de grandes eventos, inactivação de explosivos, protecção e socorro e aprontamento e projecção de forças para missões internacionais.
A esta unidade cabe-lhe também, proceder à remonta de canídeos e a inspecção técnica e uniformização de procedimentos ao nível da valência cinotécnica.
A UI é herdeira e depositária das tradições e do espólio histórico e documental do Regimento de Infantaria, do qual mantém o Estandarte Nacional, a simbologia e o dia festivo.
A USHE é uma unidade de representação, de escalão brigada, responsável pela protecção e segurança às instalações dos órgãos de soberania e de outras entidades que lhe sejam confiadas e pela prestação de honras de Estado.
Esta unidade mantém em prontidão um esquadrão a cavalo, para reforço da UI em acções de manutenção e restabelecimento da ordem pública.
Cabe-lhe ainda, a responsabilidade de garantir a remonta, o desbaste e o ensino de solípedes, a inspecção técnica e a uniformização de procedimentos de unidades a cavalo e da equitação e de assegurar a instrução específica de cavalaria.
A USHE é herdeira e depositária das tradições e do espólio histórico e documental do Regimento de Cavalaria, do qual mantém o Estandarte Nacional, a simbologia e o dia festivo.
A Brigada Fiscal (BF), enquanto unidade especial responsável pela missão da Guarda no âmbito da prevenção, descoberta e repressão das infracções fiscais, deu lugar a duas novas unidades, a Unidade de Controlo Costeiro (UCC), de escalão brigada, com a responsabilidade pelo cumprimento da missão da Guarda em toda a extensão da costa e no mar territorial, com competências específicas de vigilância, patrulhamento e intercepção terrestre ou marítima em toda a costa e mar territorial do continente e das Regiões Autónomas, competindo-lhe gerir o Sistema Integrado de Vigilância, Comando e Controlo (SIVICC); e a Unidade de Acção Fiscal (UAF), de escalão regimento, com competência específica de investigação, para o cumprimento da missão tributária, fiscal e aduaneira cometida à Guarda.
A UAF é herdeira e depositária das tradições e do espólio histórico e documental da Brigada Fiscal, do qual mantém o Estandarte Nacional, a simbologia e o dia festivo.
O A Brigada de Trânsito (BT), deu origem à Unidade Nacional de Trânsito (UNT) e aos Destacamentos de Trânsito dos Comandos Territoriais. A UNT não é mais do que o Grupo de Acção de Conjunto (GAC) da extinta BT, agora articulado num comando e estado-maior e em dois destacamentos de acção de conjunto (DAC), um em Lisboa e outro no Porto, tendo o restante efectivo ao nível dos destacamentos, mantido-se inalterado em todo o dispositivo, apenas com a diferença que foi integrado nas unidades territoriais, onde estava sedeado e às quais agora passa a pertencer integralmente, conseguindo-se desta forma, a unidade de comando, o fim da sobreposição de dispositivos e da duplicação de comandos da Guarda numa mesma área, sem ferir o princípio da especialização.
Quando se justifique, a UNT pode realizar, directa e excepcionalmente, acções especiais de fiscalização em qualquer parte do território nacional abrangida pela competência territorial da Guarda Nacional Republicana, sem prejuízo das competências das respectivas unidades territoriais.
Assim na prática, a UNT poderá considerar-se uma unidade de reserva do CO em condições de desenvolver acções especiais de fiscalização rodoviária ou outras, em qualquer ponto do território, em complemento ou reforço das unidades territoriais, relembre-se que estas possuem os destacamentos de trânsito, e não como tem sido propalado com intenções pouco claras, de que seria a unidade equivalente ou substituta da extinta BT.
As quatro Brigadas Territoriais (BTer) que agregavam 4 a 5 Grupos Territoriais numa determinada área regional, foram extintas, perdendo-se um importante escalão de comando, coordenação e controlo e de apoio administrativo-logístico das unidades subordinadas, com as consequentes dificuldades de comando e controlo que agora passam a existir relativamente a dezoito Comandos Territoriais no continente e dois nas Regiões Autónomas.
O Comando Territorial simultaneamente definido como comando e como unidade, é responsável pelo cumprimento da missão da Guarda na área de responsabilidade que lhe for atribuída, na dependência directa do comandante-geral.
Nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, os Comandos Territoriais têm sede em Ponta Delgada e no Funchal e, sem prejuízo de outras missões que lhes sejam especialmente cometidas, prosseguem, na respectiva área de responsabilidade, as atribuições da Guarda no âmbito da vigilância da costa e do mar territorial e da prevenção e investigação de infracções tributárias e aduaneiras, dependendo funcionalmente da Unidade de Controlo Costeiro e da Unidade de Acção Fiscal, relativamente às respectivas áreas de competência.
Estes últimos, dada a complexidade das suas dependências, não se enquadram minimamente nos princípios de simplicidade e clareza como devem ser definidas a hierarquia e a cadeia de comando numa organização militar.
Em regra o CTer tem quatro a seis DTer e um ou dois DTrans.
Para minimizar os problemas decorrentes da extinção das Brigadas Territoriais, foram tomadas ao nível da regulamentação, duas medidas. Uma no âmbito operacional e outra de natureza logística.
Assim, no Porto e em Évora, poderão vir a ser criados Subagrupamentos de Intervenção, constituídos por dois pelotões a cavalo e um pelotão de infantaria, como forças de reserva do CO em condições de intervir em reforço do dispositivo territorial.
Estas subunidades, sendo orgânicas da UI, estarão destacadas e serão apoiadas pelos CTer onde estejam sedeadas, intervindo à ordem do CO.
Ao nível logístico, foram criadas no Porto, Coimbra e Évora, Centros de Apoio de Área (CAA) dependentes do CARI, com a missão de prestar apoio no âmbito das juntas de saúde, manutenção 3º escalão, da assistência religiosa, da moral e bem estar e desenvolver actividades no âmbito social, às unidades e forças de mais de uma unidade sedeadas na área.
O Estabelecimento de Ensino
A Escola da Guarda é uma unidade (estabelecimento) na directa dependência do comandante-geral, especialmente vocacionada para a formação moral, cultural, física, militar e técnico-profissional dos militares da Guarda e ainda para a actualização, especialização e valorização dos seus conhecimentos. A EG colabora na formação de elementos de outras entidades, nacionais e estrangeiras.Na sua dependência funcionam os centros de formação de Portalegre e da Figueira da Foz.
Apoios
Ao nível dos apoios, a nova lei orgânica inexplicavelmente apenas prevê uma Secretaria-Geral como órgão de apoio que entre outras funções típicas de uma secretaria, detém competências de apoio de serviços, controlo de instalações e de materiais, enquadramento do pessoal do Comando-Geral e ainda, de apoio a outras unidades da Guarda.
Perante esta dificuldade objectiva, a par do facto das unidades sedeadas em Lisboa, não disporem nos termos da lei, de subunidades de apoio de serviços, foi necessário ao nível da regulamentação interna, ultrapassar estes desajustamentos e prover os necessários apoios logísticos ao Sistema de Forças.
Assim, em sede de regulamentação, foram mantidos, o Centro Clínico na dependência do CARI e a Enfermaria Veterinária, agora com a designação de Centro de Medicina Veterinária, respectivamente para prestação dos cuidados de saúde aos militares e respectivas famílias e aos solípedes e canídeos da Guarda. Foi criada a Unidade de Apoio Geral (UAG), como unidade de apoio logístico, para integrar os actuais Serviço de Intendência e Agrupamento de Apoio de Serviços, ao que se acrescentou um Centro de Reabastecimento. Aquela unidade articula-se num comando e secção de comando, em secção de justiça e recursos humanos e secção de recursos logísticos e financeiros. As suas subunidades são a Companhia de Transportes, a Companhia de Manutenção, a Companhia de Intendência e um Centro de Reabastecimento.
Por último, a já referida Unidade de Apoio de Serviços (UAS), dependente, por força da lei, da Secretaria-Geral da Guarda, é uma unidade de escalão batalhão, articulada em comando, secções de justiça, de recursos humanos, de recursos logísticos e de recursos financeiros, com a missão de apoio e sustentação do CGeral (Carmo), do CARI (Barbadinhos) e das restantes unidades de Lisboa, através de subunidades de apoio de serviços de constituição modular, a destacar e atribuir àquelas unidades.
Conclusões
Em síntese, pode afirmar-se que a legislação que reestruturou a Guarda se enquadra perfeitamente no estilo de técnica legislativa a que o Presidente da Republica aludiu recentemente, o que só por si é suficiente para explicar as dificuldades colocadas a qualquer intérprete. A este facto acresce ainda, a situação de esta ser a maior reforma da organização da Guarda ao longo da sua história.
A nível da estrutura interna das unidades pode verificar-se como o legislador não teve a mínima consideração pela organização militar, o que constitui um sério constrangimento ao funcionamento da Guarda.
Assim, as unidades ditas especializadas, articulam-se em destacamentos (companhias), o que significa que no caso da UCC, um oficial general comanda directamente comandantes de companhia e nos casos da UAF e da UNT, o mesmo sucede, mas desta feita sendo o comandante coronel.
Do mesmo problema padecem os CTer. Falta pois o escalão batalhão, o que para uma visão pouco esclarecida acerca de enquadramento, hierarquia e relações de comando, poderá parecer uma questão menor, mas nem por isso deixa na realidade, de ser um constrangimento à acção de comando e à eficácia da força.
Um outro elemento dificultador para uma fácil percepção de nova estrutura, foi a utilização de termos e conceitos não conformes com a doutrina militar, o que obrigou a que na regulamentação interna se tivessem que explicitar alguns, instalando-se no entanto a confusão relativamente a muitos outros.
Um terceiro elemento da maior relevância que importa destacar, é o facto da nova orgânica ter suprimido um importante e indispensável escalão – a brigada territorial, cujo papel se repartia, não só em termos operacionais, no âmbito do comando e controlo das unidades subordinadas, mas também no apoio logístico às mesmas, para além da representação da Guarda numa determinada região, por sinal quase coincidente com as NUTS-II (4).
A sua extinção, provocou naturais dificuldades em todos os aspectos citados, para além de que a subsequente proliferação de unidades a nível distrital, poderá ameaçar a coesão interna e a estrutura hierarquizada da Guarda, factores que numa próxima revisão da LO, deveriam ser considerados e corrigidos.
(1) -DL. 231/93, de 26JUN.
(2) – Lei 4/2004, de 15JAN.
(3) – Despacho nº 3/2000, de 20OUT.
(4) Sub-regiões em que se divide o território (Norte, Centro, Lisboa, Alentejo e Algarve).
Miguel Machado é
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