A MISSÃO NA BÓSNIA EM 1996 E O ACIDENTE DE 24 DE JANEIRO
Por Miguel Machado • 21 Jan , 2011 • Categoria: 05. PORTUGAL EM GUERRA - SÉCULO XX PrintA Missão na Bósnia em 1996
Não foi pacífica a decisão de enviar uma unidade de combate para a Bósnia. Muitos defendiam a participação nacional apenas em missões no espaço Lusófono e de preferência com unidades “não-combatentes”.
Em 1996 um inquérito à opinião pública(*) mostrava claramente esta tendência: apenas 44,7 % apoiava a participação portuguesa na “Pacificação da Ex-Jugoslávia/Bósnia”; a percentagem subia para 60,5% no caso de um envolvimento em Angola ou Moçambique; e mais ainda, 64,7%, para o caso de Timor-Leste. Na Assembleia da República, os partidos de esquerda estavam frontalmente contra (alguns chegaram a fazer manifestações nesse sentido aquando da partida dos militares) e mesmo personalidades com intervenção pública, muito longe desta área política, se opunham a este envolvimento na Europa: Cavaco Silva, Loureiro dos Santos, Nuno Rogeiro, só para citar alguns. Assim tínhamos ido para Moçambique com uma unidade de transmissões em 1994 e para Angola com figurino semelhante em 1995, depois alargado a uma unidade logística e mais tarde a um hospital de campanha. Anulada uma prevista missão das Nações Unidas na Bósnia em 1995, a NATO avançava “em força” para a Bósnia com 60.000 militares para calar as armas de vez. A bem ou a mal. Portugal que tinha disponibilizado um batalhão para tal missão na ONU, manteve essa unidade na missão da “Implementation Force” (IFOR) da NATO. Esta força era constituída por:
Destacamento de Ligação às estruturas multinacionais nas quais nos iríamos integrar (uma brigada de comando italiano – Brigada Multinacional Sarajevo-Norte – que por sua vez dependia de uma divisão de comando francês – Divisão Multinacional Sudeste), com 21 militares;
Destacamento de Apoio de Serviço que apoiaria logisticamente todo o contingente com um efectivos de 225 militares, organizado em comando, 1 pelotão sanitário, 1 pelotão de comunicações, 1 pelotão de manutenção e 1 pelotão de comando e serviços ; o DAS foi sendo reduzido mas manteve-se na Bósnia até Dezembro 1996.
2.º Batalhão de Infantaria Aerotransportado, com 678 militares, organizado em comando e estado-maior, 3 companhias de atiradores, 1 companhia de apoio de combate e 1 companhia de comando e serviços.
Isto totalizava 924 militares, quase integralmente constituído por pára-quedistas vindos da Força Aérea 2 anos antes, umas dezenas de comandos que se tinham juntado à Brigada Aerotransportada Independente depois da extinção do Regimento de Comandos em 1993 e haviam feito o curso de pára-quedismo militar, e alguns especialistas de outras armas e serviços do Exército, a esmagadora maioria no DAS. Duzentas viaturas, 26 das quais blindadas, serviam esta força.
A Força Aérea apoiou esta força com aviões C-130 em voos regulares de sustentação Lisboa/Sarajevo, manteve durante um curto período um C-212 AVIOCAR em Itália também no âmbito da IFOR e enviou um Destacamento de Controlo Aéreo Táctico, composto por 8 militares, que apoiava no terreno o 2.º BIAT.
A Marinha apoiou a missão com uma viagem, em Maio, do NRP “Bérrio” para o porto de Ploce no transporte de mais viaturas e cargas pesadas que se vieram a revelar necessárias.
O batalhão português, integrado na brigada de comando italiano, assumiu a responsabilidade por um sector que abrangia territórios de ambos os lados da “linha de separação”. Na República Sérvia da Bósnia, instalou o comando em Rogatica, e quartéis em Kukavice (transitoriamente) Ustipraca e Praca. Na Federação Croato-Muçulmana ocupou quartéis em Sarajevo e Vitkovici (Gorazde).
A missão genérica da força portuguesa consistiu na criação do ambiente de segurança que permitisse a aplicação dos acordos de paz.
E isto traduziu-se na prática pela ocupação efectiva da zona de separação estabelecida para as duas entidades presentes na região (sérvios e muçulmanos), na gradual implementação da liberdade de movimentos para pessoas e bens em toda a região, na verificação do cumprimento das regras estabelecidas para o armazenamento de armamentos pesados e ligeiros e ainda prestando algum apoio de carácter humanitário.
No total participaram na missão IFOR (até Dezembro de 1996) 1.695 militares do Exército e 45 da Força Aérea.
Unidades participantes
Exército:
2º Batalhão de Infantaria Aerotransportado/BAI (Jan a Ago96)
Mobilizado pela Área Militar de S. Jacinto, CTAT/BAI
Tenente-Coronel Pedro Manuel Moço Ferreira
Destacamento de Apoio de Serviços/BAI (Jan a Dez96)
Mobilizado pelo Comando das Tropas Aerotransportadas/BAI
Tenente-Coronel Luís Augusto de Noronha Krug
Major José da Fonseca Barbosa
3º Batalhão de Infantaria Aerotransportado/BAI (Jul a Dez96)
Mobilizado pela Área Militar de S. Jacinto, CTAT/BAI
Tenente-Coronel Fernando Pires Saraiva
Força Aérea:
Destacamento de Controlo Aéreo-Táctico (Mar a Dez96)
Mobilizado pelo Comando Operacional da Força Aérea
Capitão Fernando Costa
Capitão Dias da Silva
C-212 “Aviocar”(Jan a Abr 96)
Pertencente à Esquadra 502/BA 1
1º Destacamento: Major José Carlos Faria Antunes
2º Destacamento: Capitão Albano José Maia Gomes Ribeiro
3º Destacamento: Capitão Rui Mendes Maria
O Acidente de 24 de Janeiro de 1996
Pela polémica que levantou na altura e pelas dúvidas que permaneceram aqui se deixa um resumo, o mais fiel que até hoje se conseguiu apurar, dessa brutal noite de Sarajevo.
Quando o acidente se deu a missão das Forças Armadas Portuguesas na operação da NATO naquele território estava nos seus primeiros dias. Parte importante do contingente ainda não tinha partido de Lisboa e outros estavam na Croácia (Ploce) a aguardar transporte para a Bósnia. Em Sarajevo estavam apenas o DL e uma dezena de militares do DAS a que pertenciam as vítimas; em Rogatica um pequeno grupo avançado do Batalhão.
O impacto mediático foi brutal e estava criado um ambiente capaz de provocar graves danos à imagem de Portugal no estrangeiro e dar razão aos que internamente se opunham a este envolvimento. O contingente reagiu de forma exemplar e a missão tomou o seu curso.
Este destacamento avançado do DAS, constituído por 10 militares, estava em Vogosca (arredores de Sarajevo) a limpar umas semi-destruídas e abandonadas instalações fabris. Essencialmente tratava-se de desobstruir espaços de destroços e entulhos e garantir “um tecto” minimamente protector da neve e chuva na área destinada a parte da componente logística das forças portuguesas e também italianas. Tratava-se de uma antiga fábrica de automóveis que ficava mesmo sobre a antiga “linha de confrontação” e tinha sido muito atingida pela guerra. Os militares do DAS limparam este espaço com as mãos e as poucas ferramentas disponíveis na altura, para receber mais de uma centena de camaradas que chegariam dentro de dias. Previamente tinham passado por ali os sapadores italianos em acção de desminagem e tinham dado a zona como “limpa” de engenhos explosivos, condição imprescindível para serem autorizados os trabalhos.
Os portugueses encontraram no meio de toneladas de lixo e detritos da guerra algumas “cluster bomblets” (ver imagem) e outros engenhos, munições e invólucros.
Nunca saberemos exactamente porquê, mas certamente como “recordação de guerra”, os nossos militares levaram para uma antiga escola transformada em camarata que portugueses e italianos ocupavam, em Zetra (Sarajevo), um destes engenhos. Assumiram-no como já rebentado dado o seu aspecto deteriorado e de só ter menos de meio cilindro de esferas. Foi ali que se deu o acidente.
Segundo as declarações de italianos (o Aquilino Oliveira – sobrevivente ferido – não viu, tinha entrado na camarata e nem ligou ao que estavam a fazer, só ouviu a explosão e depois sentiu os ferimentos), o engenho terá explodido quando alguém ao pretender explicar como funcionaria o accionou, estava nas mãos do Alcino Mouta. Não restam dúvidas no entanto que todos pensavam – dado o seu elevado estado de deterioração e por não estar completo – que o engenho estava inerte. A grande maioria nunca tinha visto tal objecto, também não há dúvida. O folheto sobre minas distribuído pela força multinacional aos militares de todas as nacionalidades que iniciavam a operação, tinha sido feitos ainda no tempo da ONU, e nele constavam 14 tipos de minas diferentes, mas não as “bomblet”. Só depois deste acidente a própria IFOR fez novos folhetos onde elas passaram a constar. Do mesmo modo o “Bosnia Country Handbook” feito para a IFOR em Dezembro de 1995 pelo Departamento da Defesa dos EUA e distribuídos aos milhares pela força (e também pelos portugueses) não falava na “bomblet”. A sua secção 9 – Minas, com 7 páginas (em mais de 400 que tinha o livro) apresentava desenhos de apenas 7 tipos de minas, das dezenas que estavam espalhadas aos milhões pela Bósnia-Herzegovina, especialmente sobre as antigas linhas de confrontação.
Muito se especulou depois do sucedido se a preparação dos militares em Portugal fora suficiente? A opinião de um profissional: por mais que se saiba, por mais que se treine, por mais que se antecipe, nas “coisas da guerra” haverá sempre insuficiências e nunca se está totalmente preparado.
Apesar do que acima está dito, e subscrevo, há desculpa para se ter recolhido a “bomblet” e, sobretudo, a ter transportado consigo? Não. Foi, obviamente, uma atitude dramaticamente irreflectida e errada.
Tal não nos impede de respeitar e homenagear os mortos e os feridos e de pensar que são uma de tantas circunstâncias da vida do militar em operações. Estas mortes constituíram uma tremenda lição inicial que salvou com toda a certeza a vida a outros.
Miguel Silva Machado
Bibliografia aconselhada sobre este tema:
BÓSNIA 96, publicado em 1997 pelo Exército. ISBN:972-97408-0-1
(*) PORTUGAL NO CONTEXTO INTERNACIONAL, Opinião pública, defesa e segurança publicado pelo Instituto da Defesa Nacional / Edições Cosmos, em 1998. ISBN: 972-762-112-0
O EXÉRCITO PORTUGUÊS NOS CAMINHOS DA PAZ, publicado pelo Exército em 2005. ISBN: 972-99810-0-0
PORTUGAL E AS OPERAÇÕES DE PAZ, UMA VISÃO MULTIDIMENSIONAL, publicado em 2010 pela Fundação Mário Soares. ISBN: 978-989-652-052-6
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