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A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (III)

Por • 3 Set , 2015 • Categoria: 05. PORTUGAL EM GUERRA - SÉCULO XX Print Print

…Junto a ele só estava eu com o rádio, o alferes comandante de pelotão, o socorrista que tentava encontrar-lhe no braço uma veia para espetar a agulha do soro e morfina, um sargento muito experiente em combate, que com uma faca de mato, cortou o resto das calças e colocou um garrote no meu amigo Fontes para que ele não se esvaísse em sangue…

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Continuamos a publicação de uma série de relatos sobre situações envolvendo combate no antigo Ultramar português. No final do artigo repetimos as considerações prévias feitas no primeiro artigo para quem só agora chega ao Operacional entender este relato. São factos reais passados em Angola, com militares do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas n.º 21, nos anos 70 do século XX.

Ferido Ultramar 1 copy

Nota do Operacional: apesar de em todos os artigos desta série estar escrito que as fotos não correspondem aos factos relatados, esta levantou levou um dos nosso leitores a questionar a autoria e local/data. Segundo informação prestada por Vicente Maria Rosário, esta foto, da autoria de José Gamito, ilustra uma situação em Moçambique em 1965.

…Junto a ele só estava eu com o rádio, o alferes comandante de pelotão, o socorrista que tentava encontrar-lhe no braço uma veia para espetar a agulha do soro e morfina, um sargento muito experiente em combate, que com uma faca de mato, cortou o resto das calças e colocou um garrote no meu amigo Fontes para que ele não se esvaísse em sangue.

Os ferimentos foram estabilizados, mas as lesões eram tantas e tão graves que o sangue vivo do meu camarada continuava a empapar as areias quentes daquele maldito lugar, algures no Leste de Angola.

Segurei a mão do Fontes tentando amenizar-lhe as dores. O meu amigo não chorava, olhava para aquele corpo tão jovem e atlético e via todas as lesões que os estilhaços da mina lhe haviam provocado. Não tinha pé, o músculo da coxa estava golpeado desde o joelho até à zona pélvica, o próprio aparelho reprodutor estava ferido pelos estilhaços e por toda a areia preta projetada pelo explosivo da mina.

Com o resto da água que tinha no cantil, comecei a lavar-lhe as partes íntimas. O meu amigo olhou para mim e gritou: – Ó Ramón, a minha mãezinha vai ter um desgosto tão grande!

Não tinha palavras, não chorei para não o incomodar ainda mais, mas estava também destroçado!

Quando lhe mudei a posição do pénis ensanguentado para lavar a outra zona ferida e suja, o meu amigo disse: – Ó Ramón não me toques à punheta!

Confesso que não aguentei mais, chorei tentando rir e pensava; como é que o Fontes, sem um pé, com uma perna completamente destroçada, os órgãos reprodutores rasgados, o dedo mindinho de uma mão preso pela pele, não chora, pensa na mãe e no desgosto que esta vai sentir, e ainda brinca comigo por lhe estar a mexer no pénis ferido…

BCP 21 Viatura copy

Nota explicativa:

Aqui estamos longe dos considerandos de ordem política e estratégica que consomem – e ainda bem, note-se, são necessários – académicos e estudiosos, nacionais e estrangeiros, sobre a presença militar portuguesa em África. Esta é uma face da guerra, aquela que muitos viram olhos nos olhos, e que mais de 40 anos depois continua viva, por vezes demais, na sua memória.

É a guerra “com as botas no chão” na verdadeira acepção da expressão, a guerra da capacidade técnica individual muito aperfeiçoada nos mais baixos escalões da hierarquia, do espírito de sacrifício nas suas expressões mais dolorosas, da camaradagem, do heroísmo em combate, da dor dos ferimentos sofrido e causados, da sobrevivência e da morte. A dos amigos e a dos inimigos.

Não é fácil encontrar quem tenha experiência de combate real e ao mesmo tempo esteja disposto a escrever sobre os factos com esta sinceridade. Estamos agradecidos ao autor, esperamos com esta publicação dar o nosso contributo para a divulgação daquilo que foi a guerra sob o ponto de vista de quem fez.

As fotos que acompanham o texto, cedidas por amigos, ilustram situações de guerra reais das Tropas Pára-quedistas em África mas não têm outra ligação directa com estes relatos escritos.

Leia aqui o primeiro artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (I)

Leia aqui o segundo artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (II)

 

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