A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (II)
Por Miguel Machado • 27 Ago , 2015 • Categoria: 05. PORTUGAL EM GUERRA - SÉCULO XX PrintContinuamos a publicação de uma série de relatos sobre situações envolvendo combate no antigo Ultramar português. No final do artigo repetimos as considerações prévias feitas no primeiro artigo para quem só agora chega ao Operacional entender este relato. São factos reais passados em Angola, com militares do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas n.º 21, nos anos 70 do século XX.
…O primeiro elemento da fila, quando sentiu o arame de tropeçar e ouviu o disparo do percutor do artefacto, deu três ou quatro passos rápidos enquanto gritava ARMADILHA! Lançou-se ao chão, assim como fizemos todos os restantes elementos do grupo, menos o “Mike” Maçarico, elemento mais moderno no pelotão, que seria a segunda ou terceira operação que efectuava.
Seguia em segundo lugar na fila, ficou de joelhos a tentar localizar de onde surgiu o ruído. Mostrou que era valente mas inexperiente. Recordo que ouvi gritos para que ele se deitasse! São fracções de segundo.
Quando se apercebeu, ao atirar-se para o chão, o engenho explodiu-lhe na cara.
– Enfermeiro à frente ouvia-se. – Montar dispositivo de segurança avançado! Sabíamos que se existisse inimigo na zona, rapidamente vinha ver quem ou o quê activou a armadilha.
O camarada ficou desfigurado. O seu rosto perdeu a forma, os estilhaços rasgaram-lhe as feições e vazaram-lhe os olhos. Contorcia-se com dores e gritava: – Tenho a cara a arder, não vejo nada! E repetia com dores.
Não sabia que nunca mais voltaria a ver.
Os estilhaços e a areia levantada na explosão, junto com o sangue derramado formavam uma máscara.
Momentos de angústia em todo o grupo. O sargento de joelhos, agarrado a ele, pedia-lhe para ter calma, dizia-lhe que não via porque tinha os olhos cheios de areia, vendo que nos buracos das órbitas estavam apenas chagas, sangue, areia e restos de explosivo.
O enfermeiro fazia o que podia. Limpou as feridas, enrolou-lhe várias ligaduras na cara para tentar estancar a hemorragia. Injectou-lhe morfina para as dores e soro para compensar a perda de sangue.
Estavamos a viver aquele quadro angustiante, quando se ouviram os primeiros disparos.
Toda a gente, deitada no chão, procurava um refúgio numa qualquer saliência do terreno ou atrás dos pequenos arbustos.
O Mike continuava a gritar que não via nada, para não o abandonarmos, apercebeu-se do ataque que estávamos a sofrer. Não teve tempo de saber que os pára-quedistas nunca abandonavam um camarada…
Nota explicativa:
Aqui estamos longe dos considerandos de ordem política e estratégica que consomem – e ainda bem, note-se, são necessários – académicos e estudiosos, nacionais e estrangeiros, sobre a presença militar portuguesa em África. Esta é uma face da guerra, aquela que muitos viram olhos nos olhos, e que mais de 40 anos depois continua viva, por vezes demais, na sua memória.
É a guerra “com as botas no chão” na verdadeira acepção da expressão, a guerra da capacidade técnica individual muito aperfeiçoada nos mais baixos escalões da hierarquia, do espírito de sacrifício nas suas expressões mais dolorosas, da camaradagem, do heroísmo em combate, da dor dos ferimentos sofrido e causados, da sobrevivência e da morte. A dos amigos e a dos inimigos.
Não é fácil encontrar quem tenha experiência de combate real e ao mesmo tempo esteja disposto a escrever sobre os factos com esta sinceridade. Estamos agradecidos ao autor, esperamos com esta publicação dar o nosso contributo para a divulgação daquilo que foi a guerra sob o ponto de vista de quem fez.
As fotos que acompanham o texto, cedidas por amigos, ilustram situações de guerra reais das Tropas Pára-quedistas em África mas não têm outra ligação directa com estes relatos escritos.
Leia aqui o primeiro artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (I)
Leia aqui o primeiro artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (III)
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